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Publicado a: 29/12/2015

House: A História XII

Publicado a: 29/12/2015

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

 

Penúltima publicação periódica no Rimas e Batidas dos capítulos do livro “House – A História” assinado por Rui Miguel Abreu e editado em 2006.

Revejam todos os capítulos da série aqui.

 


 

[OS ANOS 90]

Em Julho de 96, François Kevorkian desabafava nas páginas da revista Urb: “Aquilo a que as pessoas chamam house hoje em dia é na verdade o resultado de uns bons anos de evolução e a música tem vindo a fechar-se cada vez mais. E eu começo a ficar muito cansado do estado corrente das coisas que leva as pessoas a aceitar passivamente a forma como o house lhes é apresentado e a dizer disparates como ‘eu não ouço house, a menos que tenha vozes ou a menos que tenha este tipo de batida ou que seja feita por este ou por aquele produtor.”

A declaração de François K pode ser lida de várias formas. Só os mais cínicos poderão pensar que aquelas palavras foram ditas por um veterano cansado. Na verdade, o homem por trás do clube Body & Soul referia-se às múltiplas gavetas em que a indústria discográfica foi tentando meter o house, numa tentativa de encontrar novos ângulos que duplicassem o tremendo impacto do rótulo acid no final da década anterior. Mas mais do que uma ou duas novas ideias de marketing, o que o house descobriu foi um mundo inteiro de sons, todos eles válidos, todos eles significantes. A década anterior tinha dado origem ao house num ambiente fechado – uma cidade, um par de clubes, meia dúzia de produtores, alguns milhares de seguidores. Depois de 88, o house espalhou-se por todo o mundo e nesse preciso momento abriu-se à influência e intervenção de factores e criadores exteriores. Nos anos 90 o house cruzou-se com tudo: com soul, funk, reggae, salsa, jazz, flamenco, música brasileira, música africana… Ao fazê-lo, o house assumiu-se como uma linguagem universal, uma língua franca dançante passível de ser entendida em todos os cantos do planeta.

Um dos nomes mais vibrantes dessa nova década foi o dos Masters At Work (na foto acima). Kenny ‘Dope’ Gonzalez e Little Louie Vega tinham ambos uma larga experiência no efervescente mundo de Nova Iorque. Kenny ‘Dope’ tinha ligações ao hip hop e chegou mesmo a editar vinil com o nome de Masters At Work durante a década de 80. Vega, por outro lado, vinha do mundo do latin freestyle, espécie de derivação latina do electro. Gonzalez conheceu Todd Terry quando este o abordou para que começasse a passar alguns dos seus temas nos clubes e depois chegou mesmo a emprestar-lhe o nome Masters At Work para um single de 87 com o título “Alright, Alright”. O favor foi devidamente recompensado – ainda antes da década de 80 terminar, Terry apresentou Gonzalez a Vega. O resto, quase se poderia dizer, é história: os Masters At Work introduziram as suas raízes latinas no house que produziram e assinaram alguns dos maiores clássicos do género. O auge da carreira destes dois verdadeiros estetas do house poderá encontrar-se no projecto Nuyorican Soul com que se ligaram à editora Talkin’ Loud de Gilles Peterson no final dos anos 90. Com uma perspectiva pan-cultural e histórica da Nova Iorque musical, Vega e Gonzalez usaram o house para ligar géneros como a salsa, o hip hop, a soul e o disco num grandioso projecto para que convocaram músicos de diversas gerações. Estas experiências dos Masters At Work tiveram igualmente eco nas movimentações de Joe Claussell que através da sua Spiritual Life Music orientou o house para cruzamentos com cores latinas e africanas criando assim um híbrido sofisticado que alargou o horizonte rítmico típico do House para novas latitudes. Com os veteranos Danny Krivit e François Kevorkian, Claussell criou depois o influente clube Body and Soul onde estas novas experiências foram aprofundadas.

 


 

 


Paralelamente a este sublinhar da sofisticação, o house também desenvolveu um lado mais musculado, apoiado nas carreiras de DJs e produtores como Danny Tenaglia, Junior Vasquez, Roger Sanchez, Armand Van Helden ou, entre outros, David Morales, nomes que não tardariam muito a entrar para uma extremamente bem paga primeira divisão de DJs que olhavam para o mundo – e não apenas para uma cidade – como o seu clube.

Pode dizer-se, no entanto, que mesmo com uma nova paleta de influências, o house nunca esqueceu o disco. Na Europa, depois do primeiro impacto do acid house, uma nova geração de clubbers, produtores e DJs partiu à descoberta das raízes desta cultura e não tardou muito a apresentar os resultados dessa procura na música que entretanto começou a gerar. Em Inglaterra, editoras como a U-Star, Nuphonic, Glasgow Underground, Afro Art, Disorient ou Noid e artistas como Faze Action, Ballistic Brothers/Black Science Orchestra/Black Jazz Chronicles, Idjut Boys, DJ Q ou DJ Harvey aprofundaram a relação do house com o lado mais sofisticado do disco introduzindo na equação toques de jazz e dub e reclamando para si o epíteto “deep”. Mais ao menos ao mesmo tempo, França descobriu que tinha um conceito para exportar – o “french touch”. Daft Punk, Dimitri From Paris, Motorbass, Etienne de Crécy, Cassius, I:Cube, Laurent Garnier, St Germain e, como é óbvio, Bob Sinclair acrescentaram sotaque gaulês ao house e criaram uma escola que cresceu, certamente, muito para lá das expectativas iniciais dos seus criadores. Que o digam os muitos milhares (milhões?) que compraram recentemente “Love Generation” em CD, MP3 ou… toque polifónico.

 


 


 

É importante, enfim, deixar claro que Chicago não desapareceu quando o house se tornou um ritmo global. Muito pelo contrário. Uma nova geração de gente apostada em manter a chama acesa deu igualmente o seu contributo para reforçar a presença de Chicago na história e afastar a ideia de que seria apenas uma referência distante. A editora Guidance é um bom exemplo. Formada por Ivan Pavlovich e Rob Kouchouks (ambos dissidentes de uma outra etiqueta de referência dos anos 90, a Cajual), a Guidance conseguiu impôr-se muito rapidamente graças a um single que tomou de assalto tabelas de vendas por toda a Europa – “Remember Me” de Blueboy ainda hoje é tocado em clubes. Depois da euforia de finais dos anos 80 ter levado o som de Chicago aos quatro cantos do mundo, na década seguinte assistiu-se a um regresso às raízes e editoras como a já mencionada Cajual ou a Prescription contribuíram para a maturidade da cena de Chicago, mas contaram essencialmente com uma projecção local. A Guidance expandiu-se, recrutou talento fora da cidade e criou mesmo alguns conceitos de sucesso com base no estrondo conseguido com Blueboy – como foi o caso da compilação High Fidelity House. Outras marcas intimamente ligadas a Chicago durante esta década foram a Relief (editora de Cajmere) ou a Radikal Fear (comandada por Felix Da Housecat), ambas portos de abrigo para talentos que ajudaram a aproximar o house de Chicago das novas tendências que marcaram a década de 90.

 


 


 

No que aos produtores/DJs diz respeito, é obrigatório mencionar Derrick Carter, outro dos nativos de Chicago que durante a década de 90 ultrapassou as margens da sua cidade natal. Educado nos clubes e na atmosfera de Chicago durante os anos 80, Carter desenvolveu uma carreira extremamente interessante apoiada num estilo clássico. Os seus sets tornaram-se famosos por incorporarem, além de house, algum disco, soul e até jazz. Talvez por isso não seja de espantar que tenha sido Carter a estabelecer a ponte entre a tradição house de Chicago e a comunidade post-rock também oriunda da mesma cidade ao remisturar os famosíssimos Tortoise.

Mas, de todas as conquistas que o house registou na década de 90, talvez nenhuma seja tão significativa como a elevação do seu mensageiro – o DJ – à condição de super estrela. Essa transformação é apenas um dos factores numa mais complexa equação que colocou a música de dança no centro de uma poderosa e rentável indústria. Nos anos 90, o DJ deixou de ser “propriedade” de um só clube para adoptar o estilo de vida das estrelas de rock e passar a viajar por todo o mundo, aumentando de forma drástica o seu público. Os grandes DJs passaram a ser vistos em revistas ao lado de estrelas do rock ou de super modelos. O DJ, enfim, transformou-se ele próprio num produto, relegando a música para segundo plano – os discos e os sons neles contidos deixaram de ser tão importantes quanto o dono da mala em que eles se encontravam arrumados. Mesmo para os DJs que não eram igualmente produtores, a indústria inventou uma maneira de ter os seus nomes nas lojas de discos – o Mix CD, conceito que se espalharia como uma praga durante o final da década de 90. O DJ, em suma, foi elevado à condição de uma divindade. E super DJs, claro, necessitavam de super clubes. A aprovação em 1994 das leis que tornavam a vida difícil aos organizadores de raves em Inglaterra abriu caminho à popularização do conceito de super clube. E espaços como o Ministry of Sound ou o Cream ultrapassaram rapidamente as margens da sua condição física para se imporem no mundo corporativo como marcas agressivas. Big DJs, big clubs, big money! Francis Grasso não podia ter imaginado um futuro assim.

 

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