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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/01/2023

A vasculhar nos arquivos.

Holuzam: “Esta música era incrível? Não. Esta música é incrível! E é por isso que nós estamos a pegar nela”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/01/2023

Em 2018 a Holuzam nasceu com o (re)lançamento de Belzebu, obra que os Telectu de Vítor Rua e Jorge Lima Barreto originalmente editaram em 1983, através da etiqueta Cliché. Exactamente quatro décadas depois desse lançamento, que foi o último da editora que operou durante dois anos, eis que a Holuzam lança Cliché Música, um livro/monografia/fanzine/documento (não riscar nada, porque tudo interessa) que resguarda para memória futura a história de uma aventura criativa que à entrada dos anos 80 ajudou a sintonizar a modernidade portuguesa com a que agitava as mais interessantes “águas” internacionais.

Amanhã, a Cliché volta a ser celebrada com um evento informal que decorrerá durante a tarde, na Flur, momento em que novos e velhos admiradores do histórico selo poderão cruzar-se, com música em fundo. Esse será um encontro que pretende celebrar a importância de uma editora que teve uma vida curta e um catálogo reduzido, mas em que cada lançamento foi meticulosamente escolhido. É também uma ocasião em que a Holuzam de André Santos, Márcio Matos e José Moura se mostra ao mundo. A esse propósito, visitámos André santos e José Moura no quartel general da Holuzam – na verdade o “back office” da loja Flur, que é a base desta operação – paa conversarmos sobre a vida desta editora, antecipando um pouco do futuro que ja começou a desenrolar-se à sua frente.

Com cerca de três dezenas de lançamentos num catálogo iniciado há pouco mais de quatro anos, a Holuzam afirmou já um lugar sólido e distinto no panorama editorial nacional. Lançou música de arquivo – dos Telectu, de Vítor Rua, do projecto DWART de António Duarte, entre outros – mas também música nova, urgente, contemporânea e viva de artistas como Ondness, Tiago Sousa, Molero ou, entre vários outros, Polido e Funcionário. E quando se toma esse acervo na sua totalidade, obtém-se um retrato possível de uma cena musical que de facto resulta de um continuum, que busca no passado estímulos para desbravar o futuro, que encontra no presente algumas das mais interessantes e desafiantes propostas artísticas que é possível escutar por cá – ou em qualquer outro lugar. A Holuzam pode ter nascido em Santa Apolónia, Lisboa, mas habita um universo digital que não conhece fronteiras.



Estive a fazer contas ao vosso Bandcamp e, se os olhos não me enganaram, há 30 quadradinhos na vossa página. Portanto, a Holuzam tem 30 lançamentos no Bandcamp desde 2018. Em quatro anos, isto dá uma média interessante.

[José Moura] Eu não os contei. O número de catálogo já ultrapassou os 30, mas há alguns empatados, lá para trás, que estão ainda para acontecer. Estão na “linha de montagem”.

A quatro anos de distância do arranque, com algumas dezenas de lançamentos já feitos, qual é o balanço que vocês, internamente, fazem desta aventura?

[José Moura] Acho que falo por nós: digo que é obviamente positivo. Primeiro emocionalmente, porque pusemos no terreno um projecto que tínhamos muita vontade de colocar no terreno. Temos a oportunidade de trabalhar com artistas que admiramos, que são escolhidos por nós. Portanto, todas as edições da Holuzam são coisas em que acreditamos. Outra motivação são os resultados, obviamente. Como muitos outros negócios, tivemos aqui um percalço com a pandemia. Por acaso, prejudicou-nos bastante com um disco em particular, que foi o da Joana Gama, Luís Fernandes & Drumming GP [Textures & Lines]. Estava prontíssimo para ser lançado a coincidir com o concerto de apresentação do disco e, entretanto, foi tudo cancelado.

[André Santos] Mas editámo-lo à mesma, no dia em que o país “fechou” [risos]. Mas nessa questão dos resultados, que o José falou, é importante explicar que nós começámos por pensar na Holuzam como uma editora de reedições. Os nossos planos eram só Telectu, DWART e outras coisas que, sobretudo o Zé, se ia lembrando. Acabámos por fazer o Ondness [Not Really Now Not Any More] um bocado por não estarmos a conseguir desempatar os discos dos Telectu [risos]. “Deixa só fazer aqui uma coisa para avançar com as edições.” Depois percebemos que fazia muito sentido para nós, até porque temos a loja de discos, começar a editar, também, coisas do presente. Entretanto tornou-se na maioria daquilo que editamos [risos].

Vocês, nesta altura, ao fim de 30 edições, já têm uma percepção ou um entendimento do que consideram que, esteticamente, é o campo da Holuzam?

[André Santos] Não temos [risos]. Não temos estética nem género. É como acontece com a loja [Flur Discos], que se rege pelo nosso gosto pessoal e, sobretudo, pelo que nós gostamos, que é um bocado diferente. É o que nós sentimos que gostamos no momento. A editora funciona assim também. Vamos à procura de qualquer coisa e se gostamos, editamos. Mandam-nos qualquer coisa e se nós sentimos que gostamos, editamos. Nunca nos preocupamos se é assim ou assado, se corresponde ao que nós fizemos para trás e ao que projectamos para a frente. Há uma vantagem no facto de nós os três fazermos aquilo que queremos, que traz a desvantagem às pessoas que estão do outro lado de ser uma linguagem muito estranha e que não lhes comunica nada.

[José Moura] Por muito que acreditemos nesta fluidez e nesta naturalidade, não é aquela aura que tinham as editoras míticas, a que as pessoas conseguem associar um som. Algumas ainda têm isso. Estava há pouco a fazer umas encomendas e vem-me à cabeça a Tresor. A Tresor tem uma identidade muito definida, que nós dificilmente teremos.

Mas há-de haver um fio condutor.

[José Moura] Como o André disse, há o “defeito” de trabalhar numa loja e de termos acesso a vários quadrantes de música. Obviamente que o nosso gosto vai um bocado para todo o lado.

[André Santos] Há uma coisa que eu queria completar, relativamente ao que o Zé falou há pouco, da pandemia. A pandemia teve o efeito contrário em nós, só nos fez querer editar mais [risos]. Desde que a pandemia começou, até mesmo por uma questão de sobrevivência, quisemos editar mais. O ano de 2020 deve ter sido aquele em que editámos mais. Já tínhamos algumas coisas a andar e, depois, decidimos mesmo forçar isso. Outra coisa, mas que pode ser “defeito” meu: há muitos discos que editamos e que eles [José e Márcio Matos] não gostam muito. Eu forço essas edições porque acredito… Pode haver um ou outro disco que saia mais do espectro daquela electrónica mais “estranha” que nós editamos, ou costumamos editar. Mas isso, se calhar, comunica às pessoas que gostam mais desse género de electrónica — mais contemporânea, modern classical — que esta editora existe e que edita este tipo de música. Pode suscitar curiosidade para irem ouvir o resto. Isto é a minha utopia. Só que nunca acontece. As pessoas ouvem aquele disco e acabou. Bate no poste e fica ali [risos].

Mas não sentem que têm um público que já compra por ter o carimbo Holuzam?

[André Santos] Muito pouco.

[José Moura] Temos esse público, mas é o mesmo público da loja.

[André Santos] Uns três ou quatro clientes estrangeiros.

[José Moura] Os estrangeiros são fieis a um núcleo de editoras portuguesas, que eles provavelmente identificam como algo substantivo e representativo daquilo que acontece na música contemporânea portuguesa. Isso também inclui a Príncipe, por exemplo. Temos clientes em comum, digamos assim.

Há uma palavra que, para o bem e para o mal, tem sido usada e abusada por pessoas que, como eu, escrevem sobre música. A palavra em que estou a pensar é “exploratória”. Ela dá muito jeito, a verdade é essa e é por isso que nós a usamos. À falta de outro termo, não diriam que esta é uma palavra que define bem o vosso catálogo?

[André Santos] Nunca pensei nisso assim. Estou como tu. A música acaba por ser exploratória. E torna-se mais acessível. A pessoa lê “exploratória”, ouve, e acaba por perceber. Mas eu não vejo isso assim, mesmo. Não te consigo explicar, mas não vejo mesmo como música exploratória.

[José Moura] Se calhar, o “exploratória” até acaba por se aplicar mais à editora, enquanto entidade que está a explorar qualquer coisa, do que propriamente à música. Obviamente que podes ouvir ali certas coisas e considerar que é música exploratória. Mas, tal como tu deixaste no ar, é um termo tão vago que…

Serve para tudo e para nada.

[André Santos] Se pudéssemos… Nós gostávamos muito de editar discos com guitarras de rock, só que é o tipo de música que não nos chega. É mais difícil para nós, num certo ponto, produzir um projecto desses.

O Vítor Rua tem guitarras.

[André Santos] Tem, claro. Estou a falar mais no sentido de banda clássica. Nós não temos isso no catálogo, mas não é por uma questão de filosofia ou de estética. É porque não se adapta ao sistema que temos aqui montado. É mais fácil chegar e pegar em discos de artistas que gravam no computador ou que têm X dias num estúdio e gravam esse disco, do que uma banda que tem de ir para estúdio durante umas quantas semanas. É toda uma coisa muito mais complexa à volta.

Como é que é o processo? Isto é uma democracia? Cada um manda à vez? Como é que um disco encontra o seu caminho para o catálogo da Holuzam?

[André Santos] À falta de melhor palavra, é democracia. Mas se um de nós acreditar muito num disco, essa vontade supera o voto dos outros dois, a não ser que alguém tenha algo contra. Dou-te um exemplo: há discos que sei que fui eu que puxei, mas há discos que o Zé teve a ideia de editar e que eu não gostava nada, na altura, mas agora gosto. Não gosto por termos editado. Só que já os ouvi demasiadas vezes e gosto. Mas se dependesse de mim, nunca tínhamos feito esse disco.

Podem dar-me um par de exemplos? Que discos entraram para o catálogo pela tua mão e quais entraram pela mão do Zé e do Márcio?

[André Santos] O Márcio, por exemplo, não gosta de muitas coisas. Não gosta, no sentido em que se dependesse dele não as editávamos. Mas ele gosta. No meu caso: tanto o Zé, como o Márcio e o Tomás gostavam muito do Nocturnal Emissions e eu não gostava nada. Ainda hoje não gosto assim tanto. Gosto de alguns temas. Mas estava numa [de o editar].

[José Moura] Mais do que a democracia, o principal é o respeito pelo entusiasmo dos outros. Se o André vê que um de nós está mesmo muito empenhado em editar determinada música, o caminho abre-se, obviamente. Nós não vamos bloquear esse entusiasmo que nasce do amor pela música de um projecto.

E são vocês que vão ao encontro dos artistas e lhes dizem, “gostávamos muito de lançar um projecto teu?” Ou são os artistas que vos contactam, “tenho para aqui isto no computador e gostava de ver isso ser lançado”?

[José Moura] Já aconteceu das duas maneiras. E continua a acontecer. Quando mais a editora progride, mais propostas recebemos que não são provocadas por nós. Mas as duas coisas acontecem de igual modo.

[André Santos] Mas isso [de receber propostas dos artistas] acontece desde sempre. O Tiago Sousa mandava-nos e-mails há anos com discos dele que estavam por editar. Eu nunca percebi se ele mandava aquilo a toda a gente — amigos ou agentes, porque eu depois via-os editados — ou se os estava a mandar para mim, enquanto editora. Um dia perguntei-lhe, “estás a enviar isto para nós com alguma intenção?” Ele disse que não, “mando para outras pessoas.” E eu: “mas se algum dia quiseres editar connosco, manda um disco.” Passado uns meses, mandou-nos o disco que editámos em Novembro passado. Foi um processo muito rápido. Uma coisa que nasceu de… Gosto da música dele, sempre quis trabalhar com ele. Só que ele tem sempre editora, nunca pensei em perguntar. Mas continuava a receber aquilo e lembrei-me, “porque não?” E é um nome que todos nós gostamos.

[José Moura] No meu caso, aqueles em que estive mais envolvido ou que partiram de mim, acabam por ter um ponto de união, que é a recolha de material disperso. O caso do DWART, por exemplo. Há um conjunto de músicas e eu construo um disco a partir daí.

Outra palavra que tem sido abusada é “curadoria”. Mas é exactamente isso que tu fazes: tu olhas para um depósito de obras e decides que, “estas vão sair do depósito e vão estar expostas”, de alguma maneira. No teu caso, é através de uma edição. Tens essa dupla condição, de editor e de curador.

[José Moura] No fundo, tu sentes que há qualquer coisa ali, num “bloco” de material, e que pode ser lapidada uma obra final, de acordo com tua sensibilidade e esperando que ela coincida com a das pessoas que vão receber a obra. É um outro lado do trabalho que, pelo menos a mim, dá muito gozo.

[André Santos] Voltando aos Nocturnal Emissions: esse disco foi todo feito assim, pelo Zé.

Peças que andavam dispersas.

[José Moura] O do DWART veio de peças que ele me enviou, de épocas diferentes. Tentámos encontrar alguma união entre elas, mesmo apesar de ser um EP só com três faixas. Está para sair outro, do Nuno Rebelo, que já foi anunciado, mas que tem tido atrasos técnico-logisticos. É um álbum que nunca foi editado. Aí houve um mínimo de curadoria ao seleccionar as faixas para o LP. O CD vai ter todas, mas para o LP teve de ser feito um alinhamento que fizesse sentido.

[André Santos] Não é só uma questão das escolhas. O próprio alinhamento do disco…

[José Moura] Sim. Há o lado A1, A2…

[André Santos] Eu só estou a dizer isto porque o Zé é muito modesto! Nem eu nem o Márcio fazemos nenhum desse trabalho e ele faz isso muito bem. Consegue ver a ordem das coisas.

É olhar para o caos e encontrar uma lógica.

[André Santos] Sim. Ele é fantástico.

[José Moura] É uma coisa intuitiva, que ou bate ou não bate. Pegas num monte [de faixas], ouves os princípios e os finais… Esse primeiro trabalho é mais básico, ver o que é que cola com o quê. Não tem de colar perfeitamente, mas tem de haver um flow, uma energia, uma vibe qualquer que larga da anterior e pega na seguinte. É um trabalho que me dá gozo fazer. Há um disco — não vou falar muito sobre ele — em que voltei a fazer esse trabalho e que está nos nossos planos para as edições que esperamos concretizar em 2023. Tem a ver com… É uma cena obscura, muito localizada, pós-punk, new wave americano, ali à volta do Elliott Sharp.

Há uma coisa que me agradou na Holuzam desde o início, que é significativamente diferente da Príncipe, por exemplo. A Príncipe tem uma linha expressa até no suporte principal das suas edições, que é o vinil e que tem ajudado a cimentar a identidade da editora. Mas a Holuzam está all over the place: tem edições digitais, em cassete, vinil, CD, agora papel… É interessante, o facto de vocês nunca terem sido fundamentalistas no que aos formatos diz respeito. Antes pelo contrário: valorizaram o CD, que é um formato que, a dada altura, com a nova febre do vinil, as pessoas parecem ter descartado e que é um suporte fantástico, não é?

[José Moura] Falo por mim: eu continuo a comprar CDs de determinados estilos de música, especialmente aqueles que eu acho que fazem sentido estar na minha colecção. Enquanto suporte, continuo a achar simpático e prático.

E barato e rápido de produzir.

[José Moura] Pronto. Já ia chegar aí. Tem essa vantagem, tal como as cassetes. Depois, há música que, se pensarmos bem, dificilmente a colocaríamos em vinil. Não só por uma questão de casar aquele som, aquela estética, com o formato do vinil, mas também pelas questões de custos e pela dose de risco envolvida, que é muito maior quando fazes uma edição de vinil. É o custo, é o lastro que deixa caso não corra bem. Fisicamente, é um peso literal, como tu sabes [risos]. Mais uma vez: a loja é uma influencia importante para a editora e nós nunca sentimos que o CD estivesse a decair. Obviamente que decresceu, mas chegar ao ponto de nós considerarmos deixar de investir em CDs na loja, como outras lojas o fizeram… É uma frustração que a Holuzam não consiga vender CDs a outras lojas. É raríssimo. Dizem-te logo, “não quero saber.” Nunca sentimos que fosse desaparecer e foi lógico escolhermos e editarmos música em CD, também colada a essa motivação de ser mais rápido e mais económico para meter a música dos artistas no terreno. Isso não aconteceria com o vinil, ou aconteceria mas muito mais tarde.

Tocaste num assunto que é incontornável quando estamos a falar de uma editora: distribuição. Até agora, só encontrei os vossos discos à venda, além da Flur, em Serralves. Como é que vocês gerem esse lado da coisa? E adicionando uma outra camada à pergunta: que percentagem diriam estar associada à venda em espaços físicos e através das vossas plataformas digitais?

[André Santos] Tirando um caso ou outro, tipo o disco do Molero [Ficciones Del Tr​ó​pico], vendemos muito no Bandcamp. Mas também fizemos duas prensagens. Tirando esse caso, é muito ela por ela. Vendemos muito aqui, na loja, depois há uma parcela mais pequena que é através do Bandcamp. O resto do que fazemos vai, quase tudo, para distribuição. Devemos ter vendido para aí 70% em distribuição.

Quando falas em distribuição, falas internacional?

[André Santos] Sim. Neste caso a Rush Hour e a More. Foi assim.

[José Moura] Tentámos, no início, vender directamente às lojas. Começámos por aí. Ninguém queria saber, basicamente. Ficámos bastante frustrados e irritados. Comparámos com o nosso caso, com a postura que costumamos ter na loja, que é uma loja que, para além de estar atenta a novidades, sempre se preocupou com o arquivo e com o património. Se determinados nomes — editoras, artistas — são importantes para nós, então fazem parte da identidade da loja e, como tal, sempre que esgota, nós mais dia menos dia tentamos repor essas editoras e esses artistas, para continuar a mostrá-los. No fundo, estamos a mostrar a nossa personalidade enquanto curadores, vá. O que acontece lá fora é que parece não existir essa atitude. Isso deixou-nos um bocado zangados, até, no início. E frustrados e tristes. Porque, obviamente, não nos estão a reconhecer importância. Houve até confusão com a Príncipe, [acharam que éramos] uma sub-label da Príncipe… “Não, não, não! Não é nada disso!” Há pessoas da Príncipe envolvidas aqui, mas não tem nada a ver com a Príncipe. Tivemos até de desfazer um par de enganos, que chegaram a ser publicados e que davam a Holuzam como sendo um offshoot da Príncipe. Mas essa questão das lojas… Arriscam pouquíssimo, pouquíssimo. Deixou-nos frustrados e um bocado desanimados em relação ao panorama da nossa exportação. Tivemos de nos virar para o óbvio, que é a distribuição por um intermediário, lá fora e cá dentro é a mesma coisa. Não há lojas… Quer dizer, a Matéria Prima compra-nos ocasionalmente, há as lojas online.

[André Santos] A Peekaboo também costuma ter do nosso stock. Mas é residual. Como o Zé diz, é mesmo muito frustrante. Ou nós os quatro somos muito especiais, temos um negócio e decidimos arriscar nas coisas pouco óbvias… Há vezes em que arriscamos mesmo à grande! Ficamos com dezenas de discos que não fazemos puto de ideia se vai vender ou não. É aquela fezada. Na maior parte das vezes resulta, porque acreditamos nas coisas. Não quero soar a capitalista por estar aqui a falar em números, mas nós, às vezes, pedimos dezenas de discos a editoras de cá ou de fora e nunca sentimos o mesmo tratamento. E eu estou a dizer-te isto e, se calhar, até parece que nós vendemos imenso. Mas não! Não vendemos. Isto é um negócio que sobrevive de mês a mês. E estou a colocar zero exagero nisto. Se calhar, há alturas em que sobrevivemos de semana a semana. Mas nós decidimos fazer as coisas assim, a arriscar. Até porque o nosso trabalho é, também, divulgar música. Não é só vender. E tu para divulgares tens de ter cópias para vender.

[José Moura] Pegando na fanzine da Cliché, ela acontece porque nós não queríamos só vender os discos a que tivemos acesso do catálogo deles. Esses discos ficaram parados um ano, quando o óbvio seria “vamos já vendê-los e recuperar dinheiro.” Quisemos apresentá-los, de alguma maneira, com algo que honrasse esse património. Para nós, não faz sentido esfumar-se assim, numa troca comercial pura e dura.

Já colocaram esse stock da Cliché à venda?

[André Santos] Já. Foi quando anunciámos isto. Mas não havia o Belzebu [risos].

[José Moura] Era o único que eles não tinham. Os abutres do “em segunda mão” foram sempre, sempre fazendo rodar os discos fora do olhar público. E tu conheces alguns. Não estou a falar de duas ou três cópias. Até porque um coleccionador pode comprar duas ou três, depois vende porque só vai querer ficar com uma. Pronto. Eu estou a falar de pessoas que compram lotes e que têm 10 ou 20 cópias do mesmo disco. E nem sequer fazem nada em relação à música…

É apenas especulação.

[José Moura] Exacto. E é um bocado contra isso que nós iniciámos esta operação.

Fala-me sobre esta edição em papel em torno da Cliché, que eu acho incrível. É mesmo importante que estas coisas ganhem este formato e que se possam arrumar numa prateleira, para que alguém, daqui a 20 ou 30 anos, as possa consultar. Como é que surgiu a ideia e como é que foi o processo de construir esta fanzine?

[José Moura] Foi uma casualidade. Apareceram aqui o João e o Rui Pavão, que eram dois dos sócios da Cliché, por via de um amigo que é nosso cliente. Eles queriam ver-se livres do stock que tinham parado lá em casa. Dissemos “claro que sim.” E como mencionei há pouco, “mas como é que é? Vamos só vender os discos ou vamos fazer alguma coisa com eles ou à volta deles?” A ideia começou a formar-se e acabou por se fixar no que algumas pessoas designam como monografia. Primeiro pensámos fazer um insert gráfico qualquer, a partir das capas dos discos. Mandámos fazer um saco, vamos fazer uns packs. Começámos por entrevistá-los, depois vieram várias conversas subsequentes.

Começaram-se a abrir gavetas e a saírem de lá arquivos.

[José Moura] Exactamente. Há aqui pormenores muito importantes para contar a toda a gente que se interesse pela marcha da música popular mais alternativa em Portugal. Quanto mais escavávamos, mais ouro descobríamos. Persistimos até não pudermos mais, junto das pessoas que foram compondo este núcleo de entrevistados. Não conseguimos espremer mais informação nenhuma e foi preciso cruzarmos muita informação. As memórias são antigas e às vezes não coincidiam entre uma pessoa e outra. Tens de cruzar factos, falar com uma terceira pessoa, ir à net ver o que há — que é pouquíssimo, como tu sabes; não encontras quase nada. Consegues, surpreendentemente, encontrar trabalhos académicos disponíveis em PDF nos confins da net, com algumas informações importantes sobre coisas que deviam estar visíveis em blogues ou em publicações mais acessíveis. Algumas informações foram colhidas dessa forma, através de trabalhos de fim de curso, de teses.

[André Santos] Nós já tínhamos feito coisas mais ou menos semelhantes com os Telectu, para o Camerata Elettronica. “Nós temos aqui os discos, faltam as capas.” Foi o Márcio que refez a capa toda à mão. Há esse tipo de coisas que nós preferimos fazer assim.

[José Moura] Podíamos pôr os discos à venda na mesma, sem capa. É Telectu e as pessoas iam querer. Aqueles discos que valem 80 euros, sem capa vendes, se calhar, por 20.

[André Santos] E não tens chatices [risos].

[José Moura] Só que isso não é interessante. Foi o que aconteceu com a Cliché: achámos muito mais interessante acrescentar àquilo que já estava feito e prolongar o legado que ficou esquecido. Esfumou-se.

Se formos a ver bem as coisas, é quase como um ciclo que se completa. A Cliché é um óbvio antepassado da Holuzam, não é?

[André Santos] Sim.

[José Moura] E isso foi uma coisa que só nos bateu mais para o final do processo. Mas há uma coisa que esteve sempre presente: a nossa primeira edição foi a última da Cliché. Belzebu, dos Telectu. Há essa coincidência cósmica que não foi planeada.

[André Santos] O mesmo aconteceu com o DWART. Quando começámos a falar com ele, não sabíamos que ele era assim tão amigo dos Telectu nem que era ele que tinha todo o material que os Telectu tinham usado para gravar o Belzebu.

O que é que vem aí em 2023? Há pouco falavam-me de um projecto em que o Elliott Sharp está envolvido. Há mais algo que possam revelar?

[José Moura] [O projecto com o Elliott Sharp] é um EP de material largamente inédito, sendo que há, para aí, uma faixa que saiu em cassete, na altura, em ’81/’82. Aquilo foi um núcleo que se gerou em Northampton, uma cidade no Massachusetts, onde havia várias universidades e, como tal, um polo de agregação de juventude e de culturas alternativas. Desse caldeirão sairam vários projectos.

Mas essa é apenas uma das coisas que querem fazer ao longo do ano, certo?

[André Santos] Em 2023 vamos focar-nos só no vinil por uma razão: temos muitas coisas “empatadas”. Empatadas no sentido… Por exemplo o Off Off [de Telectu]. Não quero dizer que sai em 2023, gostávamos muito que saísse, só que temos muita coisa que está parada desde o início. Essas edições são em vinil, em princípio. Queremos focar-nos nisso. A excepção são os artistas que já estão connosco e que tenham discos novos. Não faz sentido editar em vinil se já existe noutro formato. Também podemos editar alguma coisa extraordinária que nos chegue. Mas planeados…

[José Moura] Há o Nuno Rebelo, Improvisações Cristalizadas.

[André Santos] Isto que o Zé está a falar.

Nunca ninguém vai conseguir descalçar a bota do A Sagração do Mês de Maio?

[André Santos] Nós gostávamos [risos]. O problema é que os masters…

São da Valentim de Carvalho, não é?

[André Santos] Ele tem-os, mas a situação está algo delicada.

[José Moura] Acho que ele já não gosta muito do disco, também.

Mas há quem goste [risos].

[José Moura] Ainda não chegámos a essa parte.

[André Santos] Nós queremos fazer este primeiro.

[José Moura] Mas há outra coisa que, pelo menos na minha cabeça, se coloca em relação a esse disco: não sei se ele se vai traduzir muito bem na contemporaneidade, especialmente lá fora. Vendes 20 cópias em Portugal e, se calhar, acabou.

É um disco que eu vejo muita gente mencionar, especialmente lá fora.

[André Santos] Nós também!

[José Moura] Não sei. O Belzebu também não foi nenhuma loucura e é um disco incrível. O Belzebu demorou. E nós achávamos que ia ser automático.

[André Santos] Eu gostava. Só não é uma prioridade.

[José Moura] Para 2023 não é, de certeza.

E a ideia em relação a Telectu é continuar a pôr a discografia no presente?

[José Moura] Sim. À medida do curso da editora e, também, das outras edições. Não queremos ser a editora de Telectu apenas. Nós bloqueámos um pouco o processo conscientemente. Estávamos muito no início e, às tantas, podíamos ficar demasiado identificados com Telectu. Adoramos aquele período todo de Telectu, mas queríamos explorar outras avenidas.

Outra das coisas que eu achei muito interessante prende-se com um fenómeno ao qual temos assistido em diversas frentes neste ecossistema das edições: a reedição tem o poder, o condão, de trazer de volta ao presente músicos que estavam há muito esquecidos. Vimos isso acontecer no funk, no rock e até na música africana. Vocês conseguiram fazer isso com o Vitor Rua e com a “marca” Telectu, de uma forma muito positiva, bem feita e construtiva — nada “predatória”. Era bonito ver isso a acontecer, também, com outros projectos.

[José Moura] Nós não vamos nunca trabalhar para a nostalgia. “Naquele ano é que era bom” ou “naquela década é que foi”. Esta música era incrível? Não. Esta música é incrível! E é por isso que nós estamos a pegar nela. Essa será sempre a mensagem que nós queremos passar com todas as reedições que fizemos. Aquela música, para nós, é importante no agora e vai despertar umas ligações cerebrais que, se calhar, são inesperadas para algumas pessoas. “Nesta altura já se fazia isto?!” Seja como for, para nós, isto é música que conta para o agora. É por isso que a reeditamos.


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