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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/05/2023

Uma experiência auditiva fora do comum.

Hoje há Constelações Acusmáticas no TBA: para se ouvir de corpo inteiro

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/05/2023

Um título bastante feliz com referência a constelações constituiu o ponto de partida para uma entrevista com a Mariana Vieira e a Marta Domingues, ambas com ligações muito fortes ao Lisboa Incomum, ao Projecto DME, ao Ensemble DME e, naturalmente, ao que irá ser apresentado, este Sábado, dia 27 de Maio, no âmbito do ciclo Escuta Cruzada, organizado pelo Teatro do Bairro Alto.

Um convite inicialmente dirigido à Mariana, mas que ela com a subtileza que lhe é reconhecida estendeu à Marta. Um momento extremamente gratificante, em que naturalmente falámos de música, da voz e da escuta como actos políticos, de livros e poesia, da Clarice Lispector, da ligação ao cinema e ao FRÁGIL. Um retrato, muito parcelar é certo, de uma geração do hoje. Esperemos ouvi-la de “corpo inteiro”, sempre!



[O convite]

“O concerto surge numa iniciativa que o TBA organiza que se chama ‘Escuta Cruzada’. De uma forma resumida, eles tentam criar algumas pontes com instituições mais pequenas digamos assim, dedicadas à música experimental e música contemporânea. Nesta edição convidaram o Lisboa Incomum. A ideia era um pouco mostrar o trabalho que fazemos, que sendo um espaço está muito associado ao projecto DME, que é no fundo quem desenvolve as actividades no Lisboa Incomum, um dos espaços em que o projecto apresenta as suas actividades. Pensámos num programa, bastante discutido em conjunto entre nós e também com o Yaw Tembe (programador de música do TBA), que tentasse mostrar um pouco do nosso trabalho de uma forma geral. O concerto chama-se ‘Constelações Acusmáticas’, este título vem, porque parte substancial do concerto é dedicada à música acusmática. Convidámos a Annette Vande Gorne, uma compositora belga, com quem já temos colaborado várias vezes – em workshops de espacialização sonora e no mês passado participou no Festival Imersivo. No programa consta também uma peça acusmática da Marta Domingues, que é uma estreia nacional – ‘Instantes’. A Marta fez a estreia desta peça num concerto promovido pela Annette, na Bélgica. Além disso, temos em estreia absoluta a peça do Pedro Junqueira Maia, compositor que vive no Porto, professor na Universidade do Minho, que foi uma encomenda do Projecto DME para recitante e electrónica. Não é uma peça acusmática, pois a música acusmática pressupõe que seja só uma música para colunas, digamos assim, mas tem a vertente da electrónica e da performance. Há também uma peça do compositor francês Philippe Hurel, para flauta solo – ‘Eolia’ – que vai ser tocada pela Mafalda Carvalho, uma das solistas do Ensemble DME. Uma peça instrumental, mas que tem envolvimento na voz. É uma peça muito física na sua performance e que resulta como um elo de ligação entre todas as peças. Ou seja, este programa acabou por mostrar um bocadinho as várias vertentes que trabalhamos. No Lisboa Incomum dedicamos muito tempo à música acusmática. Estamos equipados com os nossos sistemas imersivos para a difusão da música acusmática. O Ensemble DME, que faz 10 anos este ano, dedica-se maioritariamente à música erudita e contemporânea. Também fazemos as nossas encomendas, maioritariamente a compositores portugueses. A peça do Pedro Junqueira Maia vai nesse sentido. É uma espécie de ‘resumo’ das nossas actividades.”

[O programa]

“São quatro peças que constituem um só concerto. Tentámos que as peças tivessem uma lógica em comum. São peças independentes, mas que têm em comum a voz. A voz vai estar muito presente em todas elas. Há um lado mais conceptual em todas, mas também a preocupação na construção do concerto, a passagem entre peças, as luzes e todas essas questões.”

[Annette Vande Gorne]

“Como decidimos que a música acusmática iria ter um papel muito importante, a Annette Vande Gorne é um nome absolutamente incontornável, não só como compositora, pois tem feito um trabalho teórico bastante importante. Escreveu o ‘Tratado de escrita para suporte’, que resume alguns princípios da música acusmática, também dirige o Musiques & Recherches, na Bélgica, onde organiza concertos, um festival, fazem encomendas, residências artísticas e investigação. Neste momento, é um nome muito relevante. E damo-nos muito bem, o que naturalmente ajuda.”

[Marta Domingues em discurso directo]

“Tirei a licenciatura em composição na Escola Superior de Música de Lisboa. Neste momento estou a tirar o mestrado em composição, cujo orientador é o Jaime Reis, director artístico do Lisboa Incomum, e também estou a estudar com a Annette, que está a co-orientar o meu mestrado. Insiro-me em termos académicos, entre estes dois mundos, Lisboa e Bruxelas. Eu própria trabalho no Lisboa Incomum e no Projecto DME. Estou no último ano do mestrado, que espero acabar agora, onde abordo os métodos de composição próprios, uma estética própria, que ainda está em construção. Tem a ver com a música acusmática e como a teoria da música acusmática pode ser útil para mim, para toda a minha composição, não só acusmática, mas também instrumental. Como é que posso pensar a música instrumental com o ouvido acusmático, por assim dizer. Com a Annette, tenho feito um grande trabalho relativamente à questão do espaço. Ela defende uma teoria sobre o espaço como um parâmetro musical expressivo e na música acusmática, que é algo que ela aplica regularmente nas suas peças. Na peça que se vai ouvir neste concerto ela explora precisamente esta questão e faz também essa ponte com o texto. Ou seja, como é que ela pode enfatizar o significado do texto através do espaço.

O que vou apresentar no TBA vem um pouco destas aprendizagens que tenho vindo a fazer com ela, sobre o espaço como parâmetro musical expressivo. A Annette faz isto muito com peças acusmáticas multicanal a partir de 08 colunas, no meu caso é só stereo. Por exemplo, tentei fazer a mesma coisa, mas de uma forma mais simples. No concerto faremos espacialização em tempo real, temos a consola com vários faders e distribuo a minha música pelas várias colunas da sala do TBA. Vou, igualmente, enfatizar o texto através do espaço.

O curioso nestas apresentações é que consoante o espaço a música ganha sempre uma outra dimensão e as pessoas ouvem-na sempre de uma forma diferente, não só pelo espaço físico, como pelo tipo de colunas, por exemplo.”

[A voz]

“Foi uma ideia para construir um concerto. Nós tínhamos vontade em estrear a peça da Marta em Portugal e como essa peça tinha a característica da voz, teve essa influência. A peça do Pedro Junqueira Maia tem recitante e electrónica. Começámos a perceber que se estavam a juntar uns pontos e acabámos por seguir esta linha, neste concerto.

[Marta] “A minha peça tem um texto da Clarice Lispector. Um texto muito íntimo. A primeira frase é ‘Ouve-me então com o teu corpo inteiro’. A peça da Annette é de Kamal Ben Hameda: ‘Fragments de lettre à un habitant du centre’, que também tem esse lado de construção política e de um apelo ao ‘ouve-me’. De uma voz que tem de ser ouvida. É um texto extremamente forte. Vai ser lido em francês. Haverá uma tradução para português para que as pessoas compreendam o conteúdo.

Voltando à minha peça, escolhi a Clarice Lispector, por ser uma escritora que admiro imenso. Penso que os temas que ela trabalha, como são tão íntimos e introspetivos, são sempre muito curiosos. A própria escrita e a forma como compõe as frases, para mim, tem uma sonoridade extremamente musical. Já tinha feito uma peça a partir de um texto dela, há dois anos, para ensemble, electrónica e uma actriz.”

[Ensemble DME]

“Quando o Ensemble DME surgiu, em 2013, ainda não estava a trabalhar no Projecto DME. O projecto em si, que antes se chamava Festival DME, surgiu em 2003. Entretanto, alterámos o nome para Projecto DME porque não se trata somente de um festival. A iniciativa parte do Jaime Reis, com um primeiro festival na Polónia. Mais tarde começa a desenvolver um conjunto de actividades em Seia, que ainda hoje é a nossa sede principal. Actualmente, temos o Lisboa Incomum, que serve como uma das bases do projecto DME, além do Conservatório de Música de Seia. A nossa actividade desenvolve-se nestas duas cidades, mas também um pouco por todo o lado.”

[Lisboa Incomum]

“É um espaço que tem várias funções. É onde trabalhamos, além disso tem duas salas que estão equipadas com um sistema imersivo cada. No rés-do-chão há uma sala que serve muitas vezes como estúdio, de apoio a muitas residências que já acolhemos, mas que pode servir como sala para um concerto mais intimista ou para conferências, mesas redondas. Na cave há outra sala, a black box como lhe chamamos, um pouco maior, com um sistema imersivo de 16 canais e é onde realizamos a maior parte das actividades. Temos as nossas edições, do Ensemble, que realizamos anualmente desde 2017, ano em que editámos uma monografia do compositor Mário Mary (edição CMMAS – Centro Mexicano para la Música y Artes Sonoras). Compositor argentino, que vive em França e ensina no Mónaco.”

[A teoria e a prática]

“Na nossa área as coisas cruzam-se. É uma área muito especializada e quanto mais nos especializamos mais vamos descobrindo sobre questões teóricas. Digo isto, porque também fiz um mestrado, no meu caso mais sobre o ensino, tem uma vertente mais pedagógica, uma investigação sobre o que constitui uma criação musical pedagógica e como isso pode ser aplicado no contexto real.”

[Marta] “A ligação com o meio académico e de investigação surge naturalmente. A maior parte das instituições da nossa área acaba por fazer um pouco das duas coisas. Procuramos muito esse tipo de trabalho como conferências, simpósios que a Mariana falou. Por exemplo, a instituição da Annette tem uma colecção de publicações científicas que incluem artigos dedicados ao espaço na música acusmática. A música contemporânea, e não exclusivamente a música acusmática, está muito ligada ao mundo académico. A criação de identidades passa muito por aí.”

[A rede]

“Há várias instituições em Portugal a trabalhar nesta área, seja na música experimental, erudita-contemporânea, electroacústica que criaram recentemente uma rede, a rede Rizoma, que pretende que estas entidades estejam de facto mais ligadas. Tem vários objectivos, como comunicar a uma só voz, quando se sentir que é necessário fazer um comunicado mais público em nome destas instituições, mas também objectivos um pouco mais práticos, como por exemplo, coordenar as nossas actividades. Sabemos que organizamos concertos que não têm muito público, e como tal, criámos um calendário comum, em que nos tentamos coordenar para que as actividades no panorama nacional se organizem de um modo que faça sentido. A rede foi criada em 2020 de uma forma muito informal. Não é uma entidade legal, antes um grupo de pessoas que comunica e que tenta fazer alguma coisa em conjunto.”

[FRÁGIL]

“É muito importante criar ligações e sair das bolhas onde cada um de nós está inserido. Isso foi sempre o que tentámos fazer no Lisboa Incomum e com o Projecto DME, que no fundo, é levar a nossa prática (que é o que é e que gostamos dela tal como ela é) a outros sítios, ir ter com as pessoas, talvez desconstruir um pouco e adaptarmo-nos aos públicos. Ter essa preocupação de não fazermos só música, para quem já gosta, para quem pratica e estuda, mas também diversificar um pouco a tipologia de públicos e apresentações e de formatos de apresentação. Especificamente, e no contexto do Frágil, é muito engraçado porque se trata de uma série de coincidências, porque quem fez a música ou o design de som, não tenho presente, é grande amigo do Pedro Henrique (Eça), o Diogo Baptista, que estudou composição connosco na Escola Superior de Música de Lisboa, e que foi meu colega há 10 anos no conservatório. Há uma espécie de ligações pessoais engraçadas. Acabei por também gravar o som do saxofone para o filme. Eu tocava saxofone. Acho que foi nesse contexto que conheci o Eça. Um pouco por esta ligação que se foi criando, eu fui acompanhando as coisas que ele faz e creio que ele também vai acompanhado o que nós fazemos, por esta ligação ao Diogo. O Eça acabou por me convidar para a programação que estava a preparar para a apresentação do filme na SMUP. Para mim tudo o que seja criar ligações é algo que faz sentido.”

[A geração do hoje]

“Não sei se vou entrar num lugar comum, mas o facto de sermos uma geração que já cresceu com os computadores acho que, em grande medida, contribuiu para haver uma equipa tão jovem no Lisboa Incomum e a trabalhar nesta área. Se calhar é só um ponto. Houve um grande boom na oferta no acesso ao ensino especializado de música em Portugal, que a nossa geração pode usufruir e que, provavelmente, a geração anterior não. Basicamente é o acesso ao ensino da música gratuitamente, através do ensino articulado.”


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