pub

Publicado a: 11/08/2015

Hip hop: do Bronx para o mundo

Publicado a: 11/08/2015

[FOTO] Direitos Reservados

 

As origens do hip hop estão gravadas bem fundo no concreto da zona sul do Bronx, um bairro de Nova Iorque martirizado por crime, por destrutivos actos políticos e pobreza. Apesar de estar ligado ao continente por terra (os outros boroughs de Nova Iorque, como Manhattan, são ilhas no delta do Hudson) o Bronx nem por isso deixava de ser na década de 70 o mais isolado. Nelson George, importante cronista da cultura negra norte-americana, cita no seu prefácio do livro “Yes Yes Y’all – Oral History Of Hip Hop’s First Decade” um estudo estatístico que indicava que no sul do Bronx, berço desta cultura, a média de rendimentos anuais de uma família era de 5 mil e 200 dólares enquanto nos restantes bairros de Nova Iorque esse número subia para perto dos 9 mil e 700 dólares. Junte-se a isto a epidemia de fogos postos no ano de 1975 (mais de 13 mil…) por senhorios sem escrúpulos à procura de compensações das companhias de seguros, cortes no orçamento municipal que faziam do Bronx a zona menos policiada da cidade e uma história de progressivo abandono político daquela área e facilmente se entenderá que o hip hop nasceu numa zona à beira do abismo. No entanto, para se perceber como o hip hop floresceu no Bronx é necessário dar um salto até Kingston, na Jamaica, local de origem de um dos primeiros arquitectos da revolução hip hop.

Nascido e criado em Kingston, na Jamaica, Kool Herc cresceu a ouvir o glorioso trovão libertado pelos sound systems que, batalhando pela atenção do público na Beat Street, iam aumentando o volume das montanhas de colunas de graves até à beira da explosão. Na Jamaica o volume era muito importante no contexto das competições entre sound systems e Kool Herc nunca se esqueceria disso. Durante a primeira metade dos anos 60, a rádio jamaicana debitava James Brown durante o dia e depois do Sol se pôr os sistemas de som locais ofereciam ao povo a sua própria versão do R&B americano. Foi esta a educação de Kool Herc que em 1967 emigrou com a sua família para Nova Iorque em busca de uma vida mais folgada impossível de conseguir na época naquela ilha das Caraíbas. Antes ainda da década terminar haveria de iniciar a sua carreira de DJ.

 


 


Inspirando-se nos poderosos sistemas de som de Kingston, Herc construiu as maiores colunas que conseguiu e graças ao poder do seu som – Herculords – começou a adquirir uma reputação sólida no Bronx, na primeira metade dos anos 70. Com uma educação musical completamente diferente, Kool Herc foi obrigado a um processo de tentativa e erro, que começou com os discos trazidos da Jamaica que pouco ou nenhum efeito surtiam sobre as pessoas que se acumulavam nos centros comunitários do Bronx onde normalmente estas festas tinham lugar. No Bronx da primeira metade dos anos 70, o já referido abandono das autoridades possibilitou o crescimento de uma aguerrida gang culture retratada, por exemplo, no filme clássico Warriors que recentemente foi transformado num popular jogo de computador. Por isso não era incomum estas festas servirem de palco à afirmação da força e da identidade de gangs como os Savage Skulls ou os Black Spades. E foi deste último gang que emergiu uma figura que se haveria de revelar decisiva na imposição do hip hop – Afrika Bambaataa.

 


 


[OS BREAKS]

Não obtendo qualquer tipo de reacção com os singles de rocksteady e reggae que tinha trazido na bagagem desde Kingston, Kool Herc não demorou muito tempo até perceber que a multidão preferia funk a qualquer outro tipo de música e que se agitava mais durante as partes das músicas onde pouco mais do que baixo e bateria se faziam ouvir. Por alguma razão, essas partes muito peculiares dos discos de funk injectavam energia na pista de dança obtendo respostas entusiásticas dos bailarinos que se agitavam em acrobáticos passos. Kool Herc começou então a procurar os discos com breaks de percussão, o que o obrigava a carregar toneladas de discos para as festas pois limitava-se a tocar apenas excertos de 20 ou 30 segundos de cada disco. Isto, claro, até ter percebido que com duas cópias iguais de um mesmo single poderia alternar entre as partes de percussão de cada uma delas e manter a batida constante na pista de dança. Esse fornecimento generoso de breaks surtia especial efeito junto de alguns rapazes e raparigas que respondiam à cadência oferecida pelo DJ com passos espectaculares que chegavam a desafiar as leis da física – inicialmente conhecidos por Break Boys, pois dançavam sobre os breaks, estes bailarinos ficaram conhecidos na história como B-Boys e a dança que encenavam como Breakdance ou B-Boying.

 

[ZULU NATION]

Entretanto, em 1973, Bambaataa, cansado da violência da vida nos gangs, decidiu criar a Zulu Nation, uma organização com propósitos de auto-afirmação através da cultura, que elegeu uma forma mais positiva de combater, através da dança, primeiro e, mais tarde, do graffiti, do DJing e do MCing. Quando passou por Portugal pela primeira vez o ano passado, Bambaataa comentou a sua passagem pelo universo dos gangs: “Eu entendia os gangs como uma forma de comunidade, como uma forma de te inserires numa estrutura que era organizada e tinha objectivos. Essa disciplina veio a revelar-se muito importante, mais tarde.” De facto. Foi esse o mesmo espírito que Bambaataa utilizou para erguer a Zulu Nation. Algures durante o ano seguinte as condições devem-se ter reunido para que se pudesse declarar o nascimento do hip hop. Bambaataa vai mesmo mais longe e indica a data de 12 de Novembro de 1974, a data do primeiro aniversário da Zulu Nation e de uma hoje mítica festa de celebração, como o dia do nascimento do hip hop, um nome cunhado pelo próprio Bambaataa em flyers que anunciavam The Hip Hop Beeny Bop e que Lovebug Starski, um dos primeiros MCs de serviço nestas festas, popularizaria em rimas como “Welcome to the Hip Hop beeny Bop! That’s Right ya’ll, hip hop til you don’t stop!” A palavra, uma vez mais, a Afrika Bambaataa que nos explicou assim o nascimento da Zulu Nation: “A Universal Zulu Nation começou em 1973 e o objectivo principal foi acalmar a violência dos gangs e muito do pensamento destrutivo que as pessoas tinham na comunidade afro-americana. Depois começámos a organizar-nos e a ter aquilo a que chamávamos Infinity Lessons, aproveitando para estudar uma série de professores, do honorável Elijah Muhammad até Malcolm X, Martin Luther King. O objectivo era congregar uma série de culturas, ideologias, nacionalidades e religiões sob um mesmo tecto. À medida que fomos viajando e a estabelecer-nos noutros países começámos um movimento internacional, promovendo a troca de informação. Por exemplo, se a Zulu Nation se estabelecesse em Portugal alguns irmãos viajariam depois para França, conheceriam Zulus de lá e trocariam experiências. E, ao mesmo tempo, todas estas pessoas se apoiavam, oferecendo lugares onde outros Zulus pudessem ficar, trocavam informações, partilhavam os seus pensamentos e reflexões sobre os mais variados assuntos.”

Ao primeiro pilar lançado por Kool Herc – a identificação do ritmo primordial que curvaria toda uma nação perante o mesmo groove – Bambaataa acrescentou um conhecimento profundo da história da música, ao ponto de ser considerado um Master of Records, ou alguém cujo conhecimento de breaks era assombroso. O toque final seria dado já na segunda metade dos anos 70, quando um jovem habituado a frequentar as festas de Herc e Bambaataa finalmente emergiu – Grandmaster Flash.

 


 


Flash completaria a trilogia dos DJs pioneiros ao aperfeiçoar as capacidades de mistura que tornaram a batida de facto contínua. Flash começou por acrescentar de forma artesanal à sua mesa de mistura um botão (crossfader) que lhe permitia passar de um disco para outro sem haver quebras de som. Tendo aprendido com Herc que os breaks de funk eram o combustível preferido dos B-Boys e com Bambaataa onde os ir buscar, Flash incendiou em definitivo as pistas ao trazer para o palco os skills ou capacidade técnica de misturar os discos e fazê-los fluir de forma irrepreensível. Quando Grandwizard Theodore, algum tempo mais tarde, inventou o scratch quase por acidente, estavam lançadas as bases em cima das quais seriam construídas as 3 décadas seguintes de hip hop!

 

[COMUNICAÇÃO]

Bambaataa compreendou muito cedo que a única forma que tinha de combater a mentalidade dos gangs residia em oferecer como alternativa um mundo igualmente estruturado onde cada pessoa poderia representar um papel específico. Daí que se tenham estabelecido quatro vertentes para o hip hop, reunindo sob um mesmo tecto práticas distintas como o graffiti, o B-Boying, o DJing e, claro, o MCing. O MC começou por ser uma mera sombra do DJ, limitando-se a enaltecer ao microfone as capacidades do tipo que lhe pagava o ordenado e funcionando quase como public announcer ou mestre de cerimónias que não só usava o microfone para comunicar à multidão qual a última ghetto celebrity a entrar no clube (“hey ya’ll, my man Timmy T is in the house!”) como deixava toda a gente saber que havia uma mãe à espera do seu filho à porta (“yo, Little Jimmy, stop spinnin’ and head to the door!”). Com o tempo, as rimas foram ficando mais elaboradas, mais complexas e, tal como os skills do DJ lhe granjeavam popularidade, também as capacidades do MC no microfone começaram a ser decisivas para arrancar aplausos à multidão.

Nesta época o disco sound reinava supremo, estabelecendo um domínio sobre toda a Manhattan. Claro que o hip hop floresceu também porque oferecia uma alternativa de diversão nocturna aos menos desprovidos de fundos para frequentarem lugares como o Studio 54. Foi aliás essa aura marginal que proporcionou uma aliança ao punk, havendo registo de inúmeros eventos em clubes como o Roxy ou o Negril onde Bambaataa, os Funky 4 Plus One More, os Cold Crush Brothers, Grandmaster Flash e os Furious Five se cruzavam com grupos punk na mesma noite. Quando o hip hop começou a abandonar a forma de vestir mais típica dos grupos de funk dos anos 70, com roupas extravagantes, o visual punk foi a sua primeira influência.

 


https://www.youtube.com/watch?v=9lDCYjb8RHk

 


[A INDÚSTRIA]

Numa época em que o disco sound sucumbia estética e comercialmente, a complexa rede de editoras independentes que alimentava o mercado nova-iorquino viu no rap uma espécie de tábua de salvação. Paradoxalmente, foram executivos veteranos como Sylvia Robinson (que fundou a Sugarhill de propósito para editar hip hop, mas que tinha carreira na indústria da soul desde a década de 50) ou Bobby Robinson (outro veterano, sem relação com Sylvia, que desde meados dos anos 40 trabalhava no mundo da música negra e fundador da Enjoy) os primeiros a perceber o potencial de uma revolução em curso de que foram tomando conhecimento através das cassetes que os seus familiares mais jovens traziam das festas que animavam o Bronx. Nesse clima, não tardaria muito até que alguém tivesse a feliz ideia de editar o primeiro disco de hip hop. Tal honra caberia à Sugarhill de Sylvia Robinson com Rapper’s Delight dos Sugarhill Gang (1979), um tema que tomou o mundo de assalto e que, seguindo o hábito dos clubes em que o MC cantava em cima de excertos musicais conhecidos, usou parte do clássico “Good Times” dos Chic para suportar as ainda incipientes rimas do trio. A fase old school do hip hop começou aqui e caracteriza-se, no essencial, por possuir um som ainda muito preso à influência do funk e do disco sound, usando-se músicos em estúdio para recriar os excertos que se queriam usar. A citação a Trans Europe Express dos Kraftwerk em Planet Rock de Bambaataa não foi conseguida através de um sampler, como já se escreveu inúmeras vezes, mas retocando a melodia, trabalho que coube a Arthur Baker que ajudou Afrika nessa produção. O ponto final definitivo na old school foi colocado pelos Run DMC, o primeiro grupo verdadeiramente moderno do hip hop que trouxe para esta cultura uma forma essencialmente street de vestir, rimas mais elaboradas e, sobretudo, batidas criadas de forma sintética, com caixas de ritmos e alguns dos primeiros samplers do mercado.

 


 


A indústria, como é óbvio, retirou desta cultura o elemento que realmente poderia vender, o MCing, quase ignorando os restantes elementos basilares do hip hop. A verdade é que em cima das obras de pioneiros como Herc, Bambaataa, Flash, os Sugarhill Gang e os Run DMC puderam florescer as carreiras de revolucionários como os Public Enemy e De La Soul, de mestres líricos como Rakim e KRS One, de verdadeiros devotos do funk como Dr. Dre e os N.W.A., de profetas como Tupac e Biggie Smalls, de ninjas urbanos como os Wu-Tang Clan e de pensadores conscientes como Talib Kweli e Mos Def, conduzindo-nos até ao momento actual em que gente como os Neptunes e Kanye West dominam o planeta com actualizações surpreendentes de uma semente lançada há 30 anos. Não é novidade nenhuma. Houve outras culturas, como o surf ou o skate, transformadas em indústrias multimilionárias e moldadas à imagem das flutuações de mercado. Mas o hip hop e a sua globalização têm outro tipo de implicações. Bakari Kitwana, no livro “Why White Kids Love Hip Hop”, explica que a popularização desta cultura e a sua profunda influência se fica a dever ao facto de, “ao contrário do que se passou com o jazz ou o rock and roll, as pessoas se ligarem a muito mais do que apenas a música.” De facto, o que impressiona no caso do hip hop é que, em pouco mais de três décadas, esta cultura nascida no Bronx se alastrou a todo o planeta, gerou administradores para as grandes editoras, influenciou a indústria da moda e do desporto, forneceu hits para Hollywood, criou ícones, mártires e heróis. E no processo, reuniu quantias inimagináveis para os pioneiros que no Bronx primeiro colocaram este comboio a andar. Hoje, o hip hop é, de facto, a banda sonora do planeta. DJ Premier, metade dos Gang Starr, comentou este facto quando passou por Lisboa: “Hoje o hip hop é uma indústria, uma das maiores no mundo do entretenimento, e as regras do jogo mudaram. As corporações interferem mais na própria arte, pedem aos artistas para mudarem a música de acordo com o que o público quer ou pensa que quer. E os artistas cedem porque não querem perder a mansão de dez milhões de dólares. Eu recuso esse estilo de vida.” Há, felizmente, ainda muitos que recusam esse estilo de vida. E que mantêm o espírito do Bronx bem vivo em cada novo beat, scratch ou rima que debitam.

*Texto originalmente publicado em 2006.

pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos