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Publicado a: 02/11/2018

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[TEXTO] Miguel Santos

O mito de Orfeu tem alguns paralelismos com a vida de Ka, rapper norte-americano nascido em Brownsville, no seio de Brooklyn. Orfeu era um músico grego de enorme talento que perdeu a mulher Eurídice para sempre depois de a tentar salvar do submundo. No caso de Kaseem Ryan, o desfecho é outro.

Depois de um período nos anos 90 como membro da crew Natural Elements, grupo de hip hop underground que nunca chegou a lançar um álbum, a vida de músico parecia ter acabado para Ka. Frustrado e desapontado, arranjou trabalho “a sério”, como bombeiro, e continuou a sua vida. Mas a música nunca se perdeu dele, voltando à superfície em 2008 com Iron Works e quatro anos depois com Grief Pedigree, altura em que despertou o interesse da crítica musical com os seus versos honestos sobre um percurso conturbado, difícil, um reflectir dos seus quarenta anos sob a forma de monólogos com batidas produzidas pelo próprio.

Ka não é um rapper parado no tempo, é um homem que o viveu e que sempre teve as rimas dentro de si, aprimorando nas sombras uma arte sua e que bebe da golden age do hip hop. Batidas lo-fi esparsas e minimalistas acompanham a sua entrega rouca e grave, cuspindo verdades cruas e suas com esquemas rimáticos aventurosos e intrincados. No panorama musical do hip hop actual, dominado pelo trap e pelas brilhantes batidas digitais, Ka apela à degustação numa sociedade de consumo rápido. E fá-lo destoando desse ambiente, reverberando por um mundo musical só dele.

E isso é algo que lhe permite explorar a sua arte ao seu ritmo e abraçar os mais variados horizontes, como no seu mais recente projecto Orpheus vs. the Sirens. Ka une esforços com o produtor Animoss — surgem como o duo Hermit and the Recluse — num longa-duração inspirado pela mitologia grega. Animoss traz uma abordagem musical diferente, mais preenchida que a habitual sonoridade de Ka, mas que se mantém como um bom contrapeso às letras do rapper. Ao longo deste trabalho, as suas palavras relacionam-se com escritas doutros tempos sobre heróis, mitos e lendas. “Sirens” abre o álbum citando com critério vários personagens do universo mítico grego, uma introdução digna que culmina num segundo verso confessional:

“For years accepted this living prison, just thought we was cursed
If mommy couldn’t buy me nothing, why she bought me to earth?
All this uncertainty was hurtin me, I fought it from birth
I’m here writing this priceless, they just reportin’ they worth”

O sample que se ouve é pensativo, urgente, repete-se pela música sempre com a mesma intensidade, igualando a entrega monotónica e assertiva de Ka. O MC usa histórias fantásticas para caracterizar a sua vida mundana, estabelecendo relações sem nunca se esquecer que a sua existência é o foco principal desta viagem musical. Em “Golden Fleece” perde-se pelas ruas sob uma das batidas mais animadas do projecto, à procura do velo de ouro, que surge com uma prece pelo meio da música, enterrada entre dois versos de vívida descrição da realidade de Brownsville:

“If love is the message, then the message was late
‘Cause by and large buying firearms, investing in hate
Was born where a wrong turn on this difficult pavement
Can be the difference if you live in riches or a vagrant
All fight this poor righteous, only wicked get the payment
And listen, you were missed if you think this is entertainment”

Mas apesar das dificuldades durante a sua juventude, Ka seguiu um caminho diferente daquele escolhido por tantos outros em Brownsville, descrito em “Punishment of Sisyphus”, palavras duras enaltecidas por uma bateria expressiva e guitarra cortante. Ka encontrou nas rimas um propósito, vê a sua escrita como maneira para conseguir contar a sua verdade e para evitar que o mesmo aconteça a outros. Em “Argo” assume-se como um dos poucos mentores na sua arte: nesta música de batida profética e submersiva, Ka compara o hip hop ao barco que transportou heróis e descreve-se como alguém disposto a guiar os próximos com a sua música:

“I might touch illustrious, even though I started wack
Mind you a smarter rap what I rhyme for my cardiac
Spoke for grimy, hope you find me timely, when you need it
They rappers bad for the hatchlings, Im tryna’ supersede it”

“Oedipus” ouve-se num dos últimos momentos do curto álbum e remonta para a história do herói grego que não conseguiu escapar a uma terrível profecia. Mas o esperançoso sample de sopros e a letra resoluta mostram que a profecia de Ka acaba em triunfo. Abraçou o seu destino de MC, que lhe está no sangue, uma caminhada que começou há mais de vinte anos e que nenhum hiato iria quebrar. É um Orfeu de hoodie, uma versão real do músico imaginado, com um discurso rouco de versos complexos e meditativos. Diz-se que a História não se repete mas rima. E, no caso de Orpheus vs. the Sirens, rima de forma única e estupenda.

 


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