É difícil definir Hermeto Pascoal. A forma que criava era o mais puro reflexo do brasileiro — já nasce improvisando). Para fazer música, usava tudo que tinha à disposição. Não se limitava. Dava o seu jeito. Isso não aconteceu por acaso. Teve infância pobre em Lagoa da Canoa, no Agreste de Alagoas. Num período em que crianças tinham que trabalhar na roça para ajudar a família, ele foi impedido por ser albino e não poder se expor ao sol. Nesses tempos “vagos”, passava inventando sons a partir de elementos da natureza. A inspiração musical vinha de casa. Seu pai, Pascoal José da Costa, tocava um acordeão de 8 baixos. Essa habilidade foi adotada pelo o irmão mais velho, José Neto, e, por curiosidade, Hermeto também experimentou o instrumento para ver se levava jeito.
Os irmãos passaram a tocar juntos em festas e casamentos. Um tempo depois, José partiu para tocar profissionalmente nas rádios de Pernambuco. Pascoal foi depois, ficou um tempo, mas disseram que ele não levava jeito para música. Não acreditou e seguiu. No meio do caminho encontrou o também acordeonista Sivuca, o qual, junto com o irmão José Neto, fez o trio de forró O Mundo Pegando Fogo. Sua função era no pandeiro. Porém, queria mesmo tocar acordeon. O grupo não vingou, e a partir das bases da sanfona começou a tocar piano.
Desse instrumento aprendeu a tocar outros, criou seus próprios e continuou usando elementos naturais e do dia a dia para tirar seus sons. Felizmente, alguns desses momentos criativos foram registrados. Um deles é o trecho do filme Sinfonia do Alto Ribeira, de Ricardo Lua, em que Hermeto e Grupo desenvolvem um instrumental dentro de uma lagoa com garrafas e flauta. Essa longa-metragem mergulha poeticamente nesse processo criativo de um artista que tem a surpresa como ingrediente principal do seu tempero.
Outra cena, que para os desavisados pode parecer inusitada, é ele usando um sugador de dentista para tocar “Trem das Onze”(Adoniram Barbosa) e “Cidade Maravilhosa” (André Filho). Esses são alguns exemplos da inventividade daquele que foi apropriadamente apelidado de “O Bruxo”. Suas bruxarias transformavam qualquer coisa em sonoridades. Uma forma, mesmo que inconscientemente, de mostrar que a música é acessível a todos. Para fazê-la não precisa, necessariamente, ser um virtuoso em determinados instrumentos. Isso não quer dizer que Hermeto não dominava alguns deles.
No Quarteto Novo, ao lado de Heraldo do Monte, Airto Moreira e Théo de Barros, ele se tornou um dos responsáveis por criar uma identidade de música instrumental com características puramente brasileiras. A intenção deles, com o álbum homônimo de 1967, era criar um tipo de improvisação que tivesse o “sotaque, acentuações, até com escalas nordestinas quando o tema pedia. Era a primeira vez que se fazia isso aqui”. A originalidade os levou para voos altos. Fora do Brasil, ganharam notoriedade.
A aproximação de Miles Davis não foi por acaso. Entretanto, quando citam o encontro deles, sempre relembram o fato (ou lenda) do brasileiro ter “nocauteado” um dos trompetistas mais aclamados da história da música. Porém, quase não se fala de suas composições “surrupiadas” por Davis. Muito menos que os vocais e a bateria de “Selim” e “Nenhum Talvez”, presentes no álbum Live – Evil (1970), são dele; assim como a composição de “Little Church”, música em que também foi o baterista, tocou piano e até assoviou. Para se ter uma ideia da sua genialidade, nesse disco tinham outros standards impactantes do mundo do jazz, assinados por Chick Corea, Herbie Hancock, Keith Jarrett ou Ron Carter. Ali, estava em casa.
A parceria com Miles só não se estendeu por mais tempo porque, depois que Live – Evil saiu, Hermeto Pascoal não encontrou seu nome nos créditos. Então, decidiu entrar com um processo judicial para ter seus direitos. Afinal, trabalho não é caridade. Sete anos depois do ocorrido, entrou definitivamente no mercado estadunidense com Slaves Mass(1977), tendo Ron Carter no baixo acústico, além de Airto Moreira e Flora Purim, onde fundiu o jazz-rock com MPB, psicodelia e, como sempre, outros experimentos. Não posso afirmar que a partir desse momento consolidou seu nome na indústria porque o tipo de música que fazia estava bem longe de ser aquele que queriam vender, inclusive no jazz. Mesmo assim seguiu autêntico, fazendo o que queria, como queria.
Talvez até tenha sido o precursor dos samples e dos sintetizadores. Afirmar isso não seria nenhum tipo de loucura. Antes mesmo dos recortes usados (principalmente) no rap, o Bruxo gravava e usava sons de animais e de todo e qualquer barulho gerado pela natureza para inserir em suas composições. O próprio não rotulava o que fazia — “Comum? Eu não gosto de nada comum”, disse certa vez — e preferia dizer que fazia world music — uma linguagem universal, um tipo de música que todos poderiam ouvir, e até fazer, sem restrições. Era popular, no sentido mais amplo da palavra, apesar de ser pouco reconhecido pelas massas. Não ter mais alguém tão destemido e comprometido com a arte musical fará muita falta.