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Rodrigo Brandão

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Tamanha é a magia.

Hermeto Pascoal foi a música em pessoa

Existem músicos, e existe, existiu, existirá sempre, Hermeto Pascoal. Como o próprio afirmou inúmeras vezes, ele é música. Sua pessoa transbordava tanto som, constantemente, que em determinada altura o soberbo músico multi-nstrumentista, compositor, arranjador e bandleader nascido em Lagoa da Canoa, distrito de Arapiraca, no estado de Alagoas, região nordeste do Brasil, há 89 anos, passou a presentear as pessoas com canções. 

Literalmente. Por onde passava, ele distribuía partituras de músicas criadas no ato. Existe inclusive uma conta de Instagram dedicada a coletar e compartilhar o máximo possível de toda essa vasta gama de composições inéditas, a @hermeto.music. Na mesma rede social, o saxofonista Jota P, que integrava a banda Nave Mãe, que acompanhava Pascoal em toda a fase mais contemporânea, reafirma esse fato, algo que também acontece frente às câmeras de Lírio Ferreira e Carolina Sá no documentário O Menino d’Olho d’Água.



Por essas e outras, era conhecido como Bruxo. Mas ele também tinha algo bem infantil, bem lúdico, batoteiro mesmo, no seu jeito de ser, de enxergar a música e a vida, extraindo melodias dos mais diversos objetos, abordando chaleiras, garrafas, a água de um lago e o próprio corpo como ferramentas musicais, assim como fazia com os instrumentos tradicionais. 

Fora da curva desde o início, Hermeto participou do cultuado LP instrumental Brazilian Octopus, mas não foi convidado para a sessão fotos, por conta de sua aparência, considerada estranha, ou… simplesmente feia, na época, por ser albino e estrábico. Outro virtuoso que também toca nesse disco, mas aparece na capa, é o guitarrista Lanny Gordin, famoso pelos solos alucinados junto à Gal Costa nos anos 1970. 

O encontro não é obra do acaso. Durante certo período, Hermeto foi contratado da boate Stardust, no largo do Arouche, centro de São Paulo, cujo coproprietário e diretor musical era o pai de Gordin, e os dois tocaram juntos em muitas ocasiões. Foi nessa mesma fase paulistana que Pascoal conheceu o baterista e percussionista Airto Moreira, com quem formou, primeiro, o Sambrasa Trio, que lançou a pérola de samba-jazz Em Som Maior (1965); e depois o Quarteto Novo, junto ao baixista/violeiro Theo de Barros e o guitarrista/violonista Heraldo do Monte, parceiro de Pascoal desde os anos 1950, quando ambos cortavam os dentes na noite do Recife, Pernambuco.

O Novo teve breve duração, mas participou de momentos históricos, ao fornecer a instrumentação ideal para o crooner Jair Rodrigues triunfar no Festival de Música Popular Brasileira em 1966, com a canção de protesto “Disparada”. No ano seguinte, no 3º Festival de Música Brasileira, viveram outra vitória, junto a Edu Lobo e Marília Medalha, com o hino “Ponteio”. Também acompanharam o futuro mártir da militância musical Geraldo Vandré, no álbum Canto Geral (1968). No entanto, entre hip hop heads, DJs e crate diggers em geral, o grupo é conhecido por outra razão. Seu único álbum próprio, lançado em 1967, era uma paixão declarada do saudoso produtor J Dilla, que até fez questão de incluir a capa do disco em fotos promocionais registradas no seu estúdio.

Pouco depois, na contramão da ditadura militar que atingia ali o auge da opressão, Airto e sua, nossa, amada Flora Purim partiram para os States, onde chegaram chegando no disco e grupo Return To Forever, do peso-pesado Chick Corea. Foram abraçados pela nata do jazz. Airto alcançou o topo da cadeia alimentar musical quando ingressou na banda de Miles Davis a tempo de participar da obra-prima Bitches Brew (1970).  

Assim que pôde, o casal convocou Hermeto, que gravou nos dois primeiros álbuns de Airto como líder, Natural Feelings e Seeds On The Ground, e lançou sua estreia individual, Hermeto, pelo selo Cobblestone. Já no ano seguinte, não só participou como integrante da banda de Miles Davis do concerto registrado no LP Live – Evil, como teve duas composições suas incluídas no repertório. Se aproximou de Miles a ponto de ser convidado para uma disputa amigável de boxe — contradição em termos — no ringue particular do trompetista. Hermeto contou, em entrevista, que usou estrategicamente seu estrabismo e acertou um jab no meio da fuça do Dark Magus!

Importante mencionar um aspecto agridoce dessa relação: quando o disco foi lançado, Hermeto Pascoal estava creditado como músico, mas seu nome não constava como autor de “Little Church” [aka “Igrejinha”] e “Nem Um Talvez”. Já vi o Bruxo contar, em entrevista mais ou menos recente, que quando reclamou diretamente, Davis deu um jeito da omissão ser retificada a partir da próxima prensagem, e assim se manteve, corrigido, até a morte de Miles. Depois disso, disse, o descrédito voltou a entrar em vigor.



De saco cheio do showbusiness internacional, retornou ao Brasil e lançou, logo depois, o marco A Música Livre de Hermeto Pascoal, em 1973. Mas acabou passando pela Terra do Tio Sam um par de anos depois, quando gravou seu clássico Slave Mass e participou de Open Your Eyes You Can Fly, de Flora.

Outra viagem frutífera ocorreu em 1979, quando se apresentou no Montreux Jazz Festival. Acompanhado por uma banda da pesada que incluía tanto o talentoso saxofonista e flautista Nivaldo Ornelas, integrante do Som Imaginário e parceiro de Milton Nascimento, quanto o fiel escudeiro Itiberê Zwarg, que empunhou o contrabaixo até ao fim, Hermeto foi aclamado em grande estilo: cada vez que se despedia, o público não arredava pé, batia palmas sem parar, pedindo mais, num total de quatro encores!

Na mesma ocasião, realizou um dueto improvisado com Elis Regina, que se tornou lendário. Excelentes, ambas as apresentações foram lançadas em LP: primeiro Ao Vivo Montreux Jazz, dele, no mesmo ano do show; depois Montreux Jazz Festival, dela, já postumamente, em 1982.

Daí em diante, o nome de Hermeto Pascoal era conhecido globalmente, e ele pôde passar a totalidade desse tempo na Terra trazendo seu talento ímpar para o deleite do público planeta afora. Era só parar para ouvir.

Obrigado, Bruxo, por tamanha magia!


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