Foi uma semana recheada de novidades para Herlander. O cantor e produtor começou por anunciar a sua ligação à Sony Music Entertainment Portugal, sendo depois confirmado no palco Coreto do próximo NOS Alive (onde actua a 11 de Julho). Hoje volta aos lançamentos em nome próprio com “deixa-me em paz”, o primeiro single pela editora major, três anos após a pegada sonora que tinha deixado em “daZona” (2022).
Conhecido pela sua linguagem artística multidisciplinar, o artista do Seixal vinha a protagonizar uma verdadeira metamorfose diante os ouvidos do público. Começou desordeiro, numa perspectiva de exploração sónica que o levou a percorrer trilhos lo-fi, por vezes com recurso a glitch, batidas desconcertantes e efeitos de saturação — como escutámos em alguns temas de 199 (2018) ou nos singles “quem diriaiaia” (2020) e “Gisela” (2021) —, mas aos poucos tornava a sua sonoridade mais limada e aprumada, com maior foco na subtileza do detalhe, como indicavam aquelas que eram as suas duas canções mais recentes até ao dia de hoje — “whoohooo!!!” (2021) e a já mencionada “daZona”.
Completamente saído do casulo, surge aqui a confirmar essa trajectória que lhe prevíamos, mais nu do que nunca — não no corpo, mas na intenção. “deixa-me em paz” marca uma ruptura em definitivo com a bagunça sonora dos seus trabalhos iniciais e abraça uma vulnerabilidade profunda, a um nível que é raro detectarmos na música pop contemporânea, despindo-se de de camadas, artifícios ou escapatórias. O futuro de Herlander adivinha-se promissor e o entusiasmo com este seu presente levou-nos a trocar algumas impressões sobre o momento que atravessa.
Apesar da estética doce e cheia de cores, “deixa-me em paz” é um statement bastante forte, sugerido desde logo pelo próprio título. O que te motivou a escrever este single?
O “deixa-me em paz” nasceu há 2 anos, fruto de um culminar de várias coisas, maioritariamente uma experiência pessoal pela qual estava a passar naquela altura, em que me sentia idealizado por alguém e não humanizado. Era algo que, inconscientemente, também estava a fazer comigo próprio durante imenso tempo, e isso acabou por dar abertura a que outras pessoas fizessem o mesmo, dentro e fora da minha arte. Na altura, estava a tentar desenvolver um álbum para a trilogia que tinha criado com a “Gisela”, “woohooo!!!” e “daZona”, e sentia-me muito preso a uma personagem que tinha criado. Todo o layering e experimentação acabaram por tornar-se no meu símbolo, mas isso não estava a ser sustentável, pelo menos para mim, mentalmente, sendo que escrevo, produzo e gravo todas as minhas músicas, e tenho uma obsessão tóxica com perfeição. A “Gisela” demorou 6 meses a ser completada em 2021, e foi dos processos de criação mais desgastantes e excruciantes que alguma vez vivi. No fim valeu a pena e hoje olho para essa música com muito orgulho, amor e gratidão pelas portas que me abriu. Mas jurei que nunca mais me ia destruir tanto mentalmente por uma só música, especialmente quando o que me faz amar música é a simplicidade e a naturalidade com que ela nasce. O tempo a trabalhar nesse projeto ia passando e, assim como o tempo muda, eu também mudava de gostos e como pessoa. Ao levar três anos a trabalhar num projeto, inevitavelmente tornas-te uma pessoa completamente diferente da que eras no início, principalmente quando estás nos 20. Já nada me satisfazia. Nenhuma das músicas que estava a criar nessa altura surgia “naturalmente”, porque eu não as aceitava nem achava que elas eram suficientes como elas se apresentavam a mim. Queria sempre complicá-las, matematizá-las, embelezá-las. Isso era uma metáfora forte para mim como pessoa naquela altura. Não me aceitava a mim próprio sem me matematizar, embelezar e complicar. Isso refletia-se também na forma como não era aceite noutros âmbitos pessoais, sendo visto como um conceito em vez de um ser humano com falhas, traumas e a capacidade de errar. Foi nesse processo de desistência da perfeição que nasceu esta música.
E como é que essa mensagem tão reivindicativa se transforma numa canção tão recheada de groove? Parafraseando o ditado popular: “Quem dança, seus males espanta”?
Sempre fui a pessoa que lida com trauma com humor ou ritmo. Mesmo nos meus sons antigos, se formos ver bem, algumas letras são bem messed up, só que com essa cobertura colorida e rítmica. Também adoro dançar quando estou em palco, e mexer-me imenso acaba por, inconscientemente, influenciar o meu processo criativo. Na minha lógica, quanto mais calma for uma música, mais feliz e pacífica ela é. Quanto mais rítmica, mais peso carrega. Dançar e mexer o corpo é a melhor forma de me lembrar que estou vivo. Preciso sempre de uma batida para sacudir os meus males.
No final do tema colaste um soundbite que procura dar uma dimensão ainda maior ao que relatas na letra. Sentes que tiveste de fintar uma certa pressão/expectativa que te estava a ser imposta para seguires numa determinada direcção? E queres revelar-nos quem escutamos a dizer aquelas palavras no fim da faixa?
Hahahaha, esse final para mim é muito especial. É a voz de uma das minhas melhores amigas, a Tânia (@tsunamicarvalho). Conhecemo-nos desde a escola, então há zero filtros entre nós. Quando terminei o “deixa-me em paz”, foi como se o transe de criar algo casual tivesse sido quebrado e me tivesse levado de volta ao medo, à expectativa e à fome por perfeição, porque eu sabia que era uma música com muito potencial apesar de ter nascido de forma extremamente casual. Tinha sido um processo super fácil. Nada era fácil para mim na altura, muito menos criar. Acho que escrevi tudo em menos de 20 minutos. Era uma música muito específica, um vómito, e relatava acontecimentos que eram muito recentes. Toda a gente a quem mostrei sabia exatamente sobre o que era ou para quem era. Sou uma pessoa muito privada e que odeia ser “messy”, principalmente publicamente, e já estava a ser “vilanizado” o suficiente por pessoas que me conheciam e outras com quem nunca sequer tinha falado. Por mais ressentimento que estivesse a sentir naquela altura, não queria dar um target a ninguém nem alimentar fofocas, dar assunto ou expor a minha vida pessoal dessa forma. Sonoramente, também senti que foi quase um 360° em relação a tudo o que já tinha feito. Era uma nova sonoridade, um novo começo, e eu tinha acabado de desistir de um projeto em que já estava a trabalhar há 3 anos. Quando mostrei à Tânia, falei-lhe de todo esse medo e perguntava-me se era sequer boa ideia lançar aquilo. O soundbite que ouvimos no fim foi a resposta dela. Obviamente, convenceu-me. Por isso, obrigado Tânia, hahaha. Esse soundbite tirou-me qualquer dúvida ou medo que ainda tinha. Não consegui não o incluir. Tanto ela como todos os meus amigos que me deram essa reassurance abriram-me um mundo de possibilidades, onde ser ainda mais específico, pessoal, desconfortável e vulnerável liricamente era algo bom. Todo o meu processo criativo mudou desde então.
A canção é inteiramente creditada a ti. Ela soa muito orgânica e assente em instrumentação real. Queres falar-nos do processo de criação da música? Como é que isto se ergueu tudo em estúdio?
Foi tudo muito rápido, como já disse. Acho que estava sem expectativa de criar algo que fosse bom. Só queria criar algo para provar a mim mesmo que ainda sabia fazer uma música com voz e letra depois de tanto tempo sem lançar nada e de, no meu projeto antigo, estar a focar-me demasiado em layering e overproduction. Queria só dizer algo e precisava de um som simples para acompanhar. Se repararem, é uma música muito minimalista na produção. Queria poder ouvir-me e ouvir o que estava a dizer, porque tinha muito para dizer e esse era o foco. Preciso sempre de uma base sonora para criar melodia. As keys foram a primeira coisa. Quando tenho uma base que me coça um lugar específico da orelha, consigo ouvir o resto da música, e tudo vai fluindo. As drums vieram a seguir. Adoro drums punchy, mas queria espaço. O tema geral para mim era o espaço. Queria ouvir-me a respirar, se fosse preciso. Durante muito tempo foi só keys, drums e voz. Depois fui adicionando algumas coisas aqui e ali.
Anunciaste a tua ligação à Sony Music Entertainment Portugal no início desta semana e lanças agora o primeiro single por lá. Apesar de ser tudo muito recente, soa a um plano já bem delineado por ti. Este “deixa-me em paz” pode deixar antever a vinda de um projecto maior? O que podemos esperar do Herlander para os próximos meses?
Digamos que estes 2 anos em que não lancei nada foram muito intensos, e tenho muitas mais histórias para contar. E não, não tenciono ficar outros 2 anos fora. Isso de certeza.
Foste também anunciado para o palco Coreto do Festival NOS Alive’25. Creio que esta será a tua primeira vez a solo num festival mais virado para uma corrente mainstream. Como é que olhas para esta oportunidade e quais os contornos que planeias dar a essa actuação? Vais estar sozinho, com banda? Que repertório tens na calha para essa data?
Estou super pumped para essa performance. Ainda há muito que tem de ser decidido e planeado, mas estou muito grato pela oportunidade e entusiasmado por voltar ao palco. Como vocês já sabem, performance é a minha praia, então vou dar tudo o que tiver para dar, seja qual for o formato. Vai ser também uma boa maneira de revisitar algumas músicas e dar-lhes um novo take, sem dúvida.