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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/06/2022

Uma relação intensa com a língua portuguesa que é agora retomada.

Hazel Scott: “As misturas de ritmos no Brasil são o máximo. Não há igual!”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/06/2022

O disco de capa laranja de Hazel Scott é, há vários anos, uma das mais cobiçadas edições portuguesas nos leilões da soul e funk obscuros gravados em terras lusas. Talvez a sua limitada tiragem não o torne propriamente num objecto de culto no mercado da memória discográfica, pois foram poucos os coleccionadores que alguma vez o tiveram na mão. Um disco que até 2022 ficou circunscrito a um circuito de vendas e trocas especializadas e que tem agora (através da Groovie Records) uma nova oportunidade de alegrar uma nova geração. Conversámos com a intérprete para perceber como uma adolescente londrina a viver no sul de África passa a dominar a língua portuguesa pela música brasileira após ouvir a “Garota de Ipanema” na rádio.



​​A Hazel nasceu em Inglaterra?

Sim, eu nasci perto de Londres, mas os meus pais foram para África quando eu era criança e fui criada no Zimbabué.

E onde surgiu a sua paixão pela música do Brasil?

É engraçado porque quando tinha 18/19 anos ouvi uma música brasileira na rádio, “Garota de Ipanema” na primeira versão de Astrud Gilberto. Adorei logo o tema e passei a ouvir muito mais música brasileira. 

Ao mesmo tempo estava a começar a cantar com músicos de lá e a dar pequenos concertos quando conheci um trio brasileiro recém-chegado. Falei com eles, disse que tinha começado a cantar e eles [como Hazel Scott & The 3 Brazilians] convidaram-me imediatamente para cantar com eles. A partir daí fiquei sempre com eles. Viajámos juntos para Moçambique, África do Sul.

O pianista [Izio Gross] acabou por ser o meu primeiro marido. Ele tinha muita música diferente do Brasil para tocar connosco, mas sempre com a formação a mudar. Às vezes o pessoal não podia tocar ou estava com problemas… sabes como é, “músicos”.

Claro [risos]!

Fizemos contratos para tocar em vários lugares na África do Sul e criámos o grupo Ipanema 5 quando conhecemos a Rosinha de Valença, que estava em tour na África do Sul com um grupo grande de brasileiros. Como era o fim da tour, ela ficou uns seis meses a tocar connosco. Quando ela foi embora, nós fomos para a Cidade do Cabo e aí formámos o grupo [Hazel Scott & the] Braza Brazil. Tínhamos um agente e conseguimos muitos contratos, principalmente com restaurantes e hotéis, de durações de três e seis meses, todas as noites, e aí tocávamos com orquestras mesmo.

Onde aprendeu a cantar na língua portuguesa?

Tudo de ouvido, sempre gostei muito de línguas. Ao cantar não pensava em inglês, sabes? Acho que não podes pensar na tua própria língua quando cantas numa língua diferente. Mesmo quando me mudei para o Brasil, mesmo tendo sotaque, pensavam que já lá vivia há muitos anos apesar de estar lá só há um mês. Aprendi latim na escola, e daí foi fácil aprender português.

Li na imprensa da altura que a Hazel também aprendeu piano. Também tocava ao vivo ou só cantava?

Piano não. Eu só cantava e tocava instrumentos de percussão brasileira, como o pandeiro, tanto nos Ipanema 5 como nos concertos onde nos contratavam.

Alguma vez teve problemas por ter o nome Hazel Scott, tal como a pianista trindadense, mundialmente conhecida?

Só em Portugal, uma vez quando o Izio [Gross] — o meu marido na altura — enviou a publicidade e alguém aí não gostou muito. Queria que mudássemos o meu nome [risos!]. Mas acabou por dar tudo certo e mantivemos, claro.

A Hazel veio duas vezes a Portugal, a primeira em 1971, onde tocou em casinos.

A primeira vez tocámos mesmo em casinos. No Casino da Figueira da Foz, em Espinho e num casino temporário no Algarve. Cheguei a tocar também num programa de televisão da RTP.

Tocava vestida de baiana. Era uma expressão do seu amor pelo Brasil?

Sim, nós tocávamos também músicas de Carnaval, pois os nossos concertos eram para as pessoas dançarem. Todas as noites fazíamos aí uns 15 minutos de samba e músicas de Carnaval, num número em que eu vestia-me de baiana e tocava pandeiro a dançar com o contrabaixista.

O repertório era composto por covers mas também por originais, não?

Algumas músicas eram compostas pelo Izio Gross e ele tocava só ao piano acompanhado pelo grupo, mas a maioria eram covers, sim. Sempre que podíamos, a nossa música ficava muito jazzística, que nós também adorávamos jazz. Mas não era permitido tocarmos jazz em muitos lugares.

Porquê?

Porque as pessoas não entendiam. Era música demasiado sofisticada. Tínhamos sempre de ter uma mistura de músicas populares, que eu pessoalmente não gostava muito mas para agradar ao público era preciso tocar o que estava popular na época. Fazia parte do trabalho.

No final de 1971, muda-se para o Brasil?

Foi uma experiência muito boa para mim para saber mais sobre a música do país e ficar mais envolvida. Trabalhávamos principalmente no Rio, mas tivemos um contrato longo também no Hilton Hotel de São Paulo. Cheguei a aparecer um pouco em televisão, mas só durou dois anos. Quando, em 1973, voltámos para África do Sul vindos do Brasil, também com contratos para tocar, gravámos finalmente um LP com os Braza Brasil.

Neste regresso do Brasil, vem uma segunda vez a Portugal para tocar uma semana inteira numa boîte em Lisboa.

Sim, na Nau do Porão [junto ao Saldanha]. Acho que acabámos por ficar mais três meses aí para gravar o EP agora reeditado.

O que se lembra sobre este disco?

Lembro-me de gravar mas não me lembro onde estávamos [foi no Estúdio Polysom em Campolide], mas recordo-me que o baterista era brasileiro e de termos contratado um contrabaixista. Foi há muito tempo! E, para ser sincera, não me lembro da recepção, pois não tínhamos contacto com ninguém aí. Eu nunca me envolvi muito no lado burocrático dos discos, sabes? Mesmo com os discos que gravámos na África do Sul, a editora é que nos pagava uma quantia pela gravação e ficava com os royalties. Sempre estive à parte disso.

E que sensação lhe dá saber que uma nova geração irá ouvir o seu disco pela primeira vez?

Eu fiquei muito surpreendida quando o Edgar [Raposo, editor da Groovie Records] enviou-me mensagem, porque pensava que aquela parte da minha vida tinha acabado e nunca mais pensei que teria de voltar àqueles tempos outra vez.

Eu voltei para Inglaterra em ’76 e acabei a minha vida musical naquela época. Quando voltei ainda pensei em começar de novo, pois tinha-me divorciado, mas decidi que não queria mais problemas com música, contratos e viagens. Mudei a minha vida completamente e parece que a vida anterior foi separada desta, sabes?

O curioso é que quando regressei para Inglaterra, vim para Southampton. A companhia de barcos local construía barcos militares para o Brasil e estava a contratar muitas pessoas imigrantes de lá. Fiquei amiga de muitas dessas pessoas e comecei a trabalhar na comissão naval brasileira porque falava o português que tinha aprendido com a música.

Regressou ao Brasil desde então?

Sim, ainda voltei lá uma vez no ano 2000, mas o país tinha mudado muito. Muita criminalidade. É uma pena. Mas, à parte disso, sempre me dei bem com o país, tenho muitos amigos brasileiros. Continuo a falar regularmente via Skype com o contrabaixista que hoje vive no Japão. E claro, a música — as misturas de ritmos — é o máximo. Não há igual!


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