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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/05/2025

Novas cores e texturas em palco para a obra editada em 2023.

Hania Rani: “A música de Ghosts agora é mais livre”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/05/2025

É já amanhã, dia 22 de Maio, que o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, recebe Hania Rani e o seu ensemble para um concerto em torno de Ghosts, o seu mais recente álbum a solo, que será interpretado na íntegra e com uma formação alargada de nove músicos, incluindo dois dos seus colaboradores de longa data — Dobrawa Czocher (violoncelo) e Ziemowit Klimek (baixo).

Editado em 2023, Ghosts é um trabalho onde Hania Rani surge como uma viajante entre mundos — o da composição clássica e o da electrónica meditativa. Recorrendo à mesma estética minimalista que a definiu em Esja (2019) e Home (2020), mas com uma profundidade emocional mais densa, marcada pela presença da sua frágil, mas encantatória voz, o disco progride como uma paisagem que nos é lentamente revelada, pintada com vários sintetizadores sintetizadores. Inspirada por uma temporada nos Alpes suíços, num antigo sanatório onde se diz habitarem fantasmas, Hania fez de Ghosts uma meditação sobre o limiar entre a vida e a morte — mas sem dramatismo —, onde nos oferece uma reflexão serena e poética sobre os fins inevitáveis, como quem se senta à beira de um abismo e, em vez de temer, decide escutar o vento e contemplar a altitude.

Este concerto em Lisboa representa o culminar de um longo percurso de estrada iniciado no ano passado, pautado por uma abordagem diferente das habituais apresentações a solo. Ao lado da compositora polaca estará um ensemble que integra cordas, sopros e elementos electrónicos, dando nova vida às já densas texturas do disco ao longo de 70 minutos de espectáculo.

Foi esta nova vida de Ghosts nos palcos que nos motivou a contactar Hania Rani via Zoom para a esclarecedora entrevista que vão poder ler já de seguida.



Para começar, poderia descrever brevemente seu caminho académico? E durante os seus estudos de piano clássico, quais os compositores ou eras que tinha como preferências?

Então, eu comecei a aprender a tocar piano quando eu tinha 6 ou 7 anos. Fui para uma escola de música meio profissional para crianças. Nós temos uma forma muito diferente de ensino musical. Como a educação de música na Polónia é ainda bastante tradicional, há essas escolas para, digamos, crianças talentosas. Elas são gratuitas, não é nada de exclusivo, mas é preciso fazer exames. E se a criança tem alguns talentos e um bom ouvido, então pode entrar nesse tipo de escola. Havia uma dessas escolas na minha cidade e então eu estive lá durante 12 anos, até que decidi ir para uma cidade maior, Varsóvia, e lá estudei na Chopin University of Music. Depois mudei-me para Berlim para continuar a estudar. Foi um processo muito longo. E assim como o que estou a fazer agora, acho que o que está mais próximo do meu coração são os compositores que são bastante efémeros. Aqueles cujo som é suave, mas cheio de vida e animado, mas basicamente muito abstracto. Adorava nomes como Maurice Ravel e Debussy, obviamente Frederic Chopin também, muito Bach e Schubert. Também gostava muito de Rachmaninov e Scriabin, mas por causa da forma do meu corpo — das minhas mãos — eu definitivamente não toquei muito a música deles, embora goste. Acho que, por causa das minhas características físicas, me encaixo melhor em música que é um pouco mais ligeira, talvez mais contemporânea, de algum modo, eu acho. E ainda admiro esses compositores. Maurice Ravel ainda é um dos meus compositores favoritos, definitivamente.

Eu já ouvi músicos formados em música clássica dizer que aperfeiçoar a técnica é quase tão difícil como desaprendê-la, quando você decide seguir o seu próprio caminho. Como foi para você? O treino clássico foi, de algum modo, um fardo, ou vê isso como um activo muito bom para o que faz agora?

Não. Eu sei que há imensas pessoas que, tal como eu, tiveram este tipo de educação, e sentem-na como um fardo ou como algo que eles gostariam de desaprender. Mas para mim, eu sempre considerei extremamente útil ter esse background. A técnica, as habilidades e a capacidade de escrever rapidamente minhas ideias e de organizá-las, isso sempre me ajudou, mesmo agora, especialmente porque estou muito envolvida com música para filmes. Isso inclui, obviamente, muita música que não é só para piano, então eu arranjo e componho muito para outros instrumentos. E graças à minha educação, às horas passadas a analisar música e a tocar em ensembles de música de câmara, eu tenho muito conhecimento sobre isso, o que definitivamente me deu muita confiança. Isso é bom, porque ser um músico ou um compositor é um trabalho muito difícil, é preciso uma pessoa se saber motivar, porque ninguém lhe vai dizer o que fazer — é preciso saber fazer. Isso é algo que se pode aprender na escola de música ou na universidade. Nós não temos muitas disciplinas, não temos muitas aulas, nem temos necessariamente coisas para preparar todos os dias. Nós sabemos é que precisamos de, dentro de um certo número de meses, preparar e alcançar uma peça muito difícil. Temos de a aprender, adquirir a técnica… Isso leva tempo. Então, eu sempre dei valor ao que aprendi e tenho a sensação de que muitos amigos que também tiveram o mesmo tipo de educação — mesmo aqueles que mudaram para diferentes estilos de música — também valorizam as qualidades adquiridas neste tipo de educação.

Pode falar-me um pouco sobre o Ghosts? Como é que sente que ele se posiciona por entre a sua discografia?

Especialmente agora, porque já passou mais de um ano desde que foi lançado e já o toquei muito ao vivo — foram mais de 100 espectáculos em diferentes lugares — eu sinto que ele é quase como o fecho de uma trilogia. O Ghosts foi uma versão mais maturada do que tinha começado em 2019, com Esja. Mas eu acho que ele agora está num lugar muito diferente, porque eu já o toquei muito, já fiz outros arranjos, e a sua música agora é mais livre. Eu sinto que esta música ganhou a sua própria vida e se tornou num objecto diferente. O que eu agora noto com esta música é que ela é extremamente flexível, e é maravilhoso ver como as coisas podem mudar de forma para algo diferente.

O disco assumia um compromisso muito grande com a electrónica, mas toda essa experiência em cima dos palcos fez com que se rodeasse de outros músicos para interpretar essa música consigo. Você já tinha essa visão de ter músicos a ajudá-la a tocar estes temas?

Não. No início começámos a tocar apenas como um duo em palco, eu e o Ziemowit Klimek, que toca contrabaixo e Moog. Esse álbum foca-se principalmente nos teclados, em diferentes tipos de teclados — há sintetizadores, piano, piano de cauda… E também muitos vocais. Eu percebi que podia facilmente executar esse álbum sozinha no palco, e foi o que fiz na maior parte da turnê. Mas para a parte final achei que seria maravilhoso poder fazê-lo com uma banda, porque é muito raro eu tocar com outras pessoas no palco. Eu prefiro estar sozinha. Tenho essa particularidade [risos]. Não é que eu me sinta embaraçada por estar com outros músicos, consigo sentir-me livre na mesma. Também tenho um lado que genuinamente adora ter outros músicos à volta, porque obviamente eles trazem mais cor, trazem mais carácter e tantas outras coisas que fazem a música tornar-se em algo diferente. Mas eu pensei que gostaria de terminar esta tour — que foi uma aventura maravilhosa e uma grande oportunidade para mim — com essa ideia de ter outros músicos e instrumentos em cena. Obviamente, o que eu tive que fazer foi rearranjar um pouco essa música, porque, por exemplo, este ensemble já inclui saxofone, flauta, fliscorne, trompete… São instrumentos que não existem no álbum, portanto a música teve de ser reorganizada e reimaginada. Diria que os instrumentos que introduzi neste ensemble ajudam a expandir o álbum. Tenho andado a ouvir algumas gravações que fizemos no mês passado, em que a maioria dos espectáculos foram com o ensemble, e tenho realmente notado que esta mistura de instrumentos é bastante bela. O fliscorne, o trompete e o saxofone soam quase como sintetizadores, com os todos os efeitos e pedais. Esta música adquiriu uma cor maravilhosa e agora estou tentada a manter-me com esta sonoridade [risos]. Eu quero fazer mais datas destas e estou realmente muito triste que estes serão os últimos dois concertos desse álbum. Mas às vezes é preciso dizer adeus a certas coisas, embora fosse um capítulo maravilhoso da minha vida.

Você escreveu todas as partes ou tem alguma improvisação no palco?

Sim, tem muita improvisação. Geralmente, eu escrevo para o lado clássico do ensemble, como a secção de cordas, mas ainda assim eu deixo alguns momentos em que eles podem improvisar um pouco — pode ser dentro de uma escala, ou talvez um ritmo, o que for. É interessante, porque eu nunca toquei com tantas pessoas vindas de contextos tão diferentes ao mesmo tempo. Eu já fiz coisas com músicos de jazz e outras com cordas. E agora decidimos combinar esses dois mundos. Então temos pessoas que vêm da clássica mais tradicional e músicos de jazz — todos juntos. Obviamente, os músicos de jazz têm certas formas de tocar, certas ideias, pequenos motivos, mas eles não usam pautas. Eles têm, basicamente, uma versão um pouco mais simples da música escrita. E a cada espectáculo tende a haver mais e mais improvisação envolvida, porque nós começámos a entender-nos e ouvirmo-nos melhor. No começo, todos estavam muito cautelosos e cuidadosos, mas especialmente nas últimas datas da digressão na Europa, nós sentimo-nos tão confortáveis que as próprias pessoas já estavam a apresentar algo novo, o que eu obviamente admiro também.

Podemos esperar que essas gravações de que falou sejam lançadas em algum momento no futuro?

É uma grande questão. Eu já editei um álbum ao vivo e há sempre uma tentação de lançar algo mais, até porque tem um valor muito sentimental para nós. Foi tanto trabalho envolvido, as pessoas preparam-se ao longo de várias semanas e depois tocam, digamos, umas 15 vezes. Tornámo-nos numa grande família, todos gostamos muito uns dos outros e formámos um grupo maravilhoso. Então, neste momento eu estou a produzir e misturar um concerto de Londres, que também filmámos. Espero poder lançar algo pelo menos no YouTube, esse é o meu plano. Mas de qualquer forma, nós gravamos todos os espectáculos e faremos o mesmo com as datas em Lisboa e em Barcelona.

Que tipo de piano você pediu para este concerto? Eu percebi que você vai usar um piano de cauda, mas também haverá um piano vertical?

Sim, haverá piano vertical. Eu uso sempre dois deles. Então, o vertical é um pouco mais suave, um pouco mais aveludado. O piano de causa é maior e o som também é um pouco mais forte. Eu gosto de trocar, porque os pianos têm diferentes temperaturas, então é por isso que temos dois deles.

Presumo que, antes da actuação, você tem de passar algum tempo a estudar cada um deles, pois em cada cidade encontra pianos diferentes e eles podem ter as suas próprias personalidades, certo?

Sim, embora já há algum tempo estarmos a trabalhar apenas com a Kawai, que é uma marca muito boa. Eles são bastante específicos e nós estamos a trabalhar com eles há pelo menos um ano, ou talvez até mais. Eu comecei a conhecê-los um pouco melhor e eu sei o que esperar. E na verdade, acontece muito frequentemente usarmos os mesmos modelos. Eu não tenho a certeza sobre qual o piano que vou ter em Lisboa, mas eles são instrumentos de alta qualidade, muito fiáveis, então isso torna a minha vida um pouco mais fácil. Mas você está certo, especialmente no passado, era frequente encontrar sempre pianos diferentes. Às vezes isso pode ser difícil, mas isso também é um desafio bonito, porque o instrumento está a introduzir algumas novas possibilidades. Às vezes, mesmo que o som não seja extremamente bonito, eu posso usar isso a meu favor de alguma forma, seja tocando de uma forma mais percussiva ou rítmica; outras vezes o som pode ser tão aveludado, que isso acaba por me motivar a tocar de forma um pouco diferente. Portanto, isso pode ser uma desvantagem, mas também pode ser uma bela surpresa. Eu acho que ser pianista obriga a que se esteja apto a explorar, pois é preciso uma pessoa se ajustar e ser bastante flexível.

Além dos instrumentos, eu sei que os espaços em que vocês estão a tocar são muito importantes também. Para esta digressão você escolheu lugares específicos para actuar. Quais os que você gostou mais até agora?

Eu preciso dizer isto. Especialmente nesta turnê com o ensemble, queríamos enfatizar essa parte da música de câmara, para que todos estivessem juntos no palco e que as pessoas se sentassem, o que é um pouco diferente dos meus outros espectáculos a solo, que são geralmente com plateia em pé. Nós basicamente tocámos em muitos auditórios filarmónicos pela Europa. Tocámos numa sala lindíssima em Londres, a do Barbican Centre, gostei muito de Amesterdão… Bem, eu devo dizer que fomos todos muito mimados nesta digressão [risos]. Eu diria que para o engenheiro de som a tarefa não é tão fácil, porque os espaços, as salas, são projectadas para receber instrumentos acústicos e nós, obviamente, temos amplificação para os sistemas de som, e há também os sintetizadores… Então é meio que um desafio para o engenheiro de som, mas as salas acabam por ser uma influência tão bonita para o que estamos a fazer no palco, todo aqueles cenários… Nós podemos até começar de forma acústica, apenas com um ensemble de cordas, com todo aquele som a ressoar na sala. Obviamente que isso não se consegue num clube de música electrónica. Por isso, esta experiência tem sido muito especial. Depois, tocar neste tipo de salas dá um pouco mais de seriedade à coisa, sente-se algo de espiritual, que eu também gosto. O próprio público também se veste diferente, as pessoas vão mais aperaltadas porque vão estar num local bonito. Já não há assim tanta beleza no mundo hoje em dia, então eu acho que isso afetca todos os músicos.

Você mencionou antes que estava a compor para cinema. Eu questono-me: será que já começou a receber telefonemas de Hollywood?

Não, não [risos]. Mas também não sei se estaria interessada em filmes de Hollywood, porque eu acho que a minha personalidade é um pouco… O meu coração está sempre mais próximo do cinema de arte. Eu tive uma oportunidade bonita, acabei de fechar um projecto para trabalhar com um dos meus realizadores europeus favoritos, o Joachim Trier, e o seu filme vai ser apresentado em Cannes como parte da competição principal. Na verdade, isso acontece no mesmo domingo em que eu vou estar a tocar em Barcelona [risos]. Foi uma oportunidade tão bonita para mim, tão maravilhosa. Espero que mais pessoas como Joachim me chamem. Acho que estou mais inclinada para o cinema artístico europeu. Estaria muito feliz em fazer mais.

No final do ano você vai estrear o espectáculo “Non Fiction” no Barbican. Pode-me falar um pouco sobre isso? Eu li algumas coisas sobre o assunto, mas ainda não existe muita informação. Li que será a sua declaração musical mais política até à data.

Sim, ainda não partilhámos muita informação, acho que isso acontecerá muito em breve. Primeiramente, é a minha primeira peça sinfónica, porque será um concerto para quatro pianos acompanhados de orquestra sinfónica. Foi uma peça que me foi encomendada há alguns anos e eu comecei a compor e gravar há dois anos atrás. Só apenas no início deste ano é que a peça estava finalmente pronta. Gravámos no famoso Studio Two dos Abbey Road Studios. Essa foi provavelmente a maior aventura da minha vida, como você pode imaginar. A peça nasce de uma comissão por parte de um museu de judeus polacos em Varsóvia, onde eu costumava estudar e onde vivi por muitos anos. Como você provavelmente sabe, em Varsóvia havia um dos maiores guetos da Europa durante a Segunda Guerra Mundial, onde vivia uma grande diáspora de judeus. Há lá um novo e lindo museu e, há alguns anos, eles encontraram o que eu o considero ser algo de muito positivo vindo daquele período da guerra. Encontraram escritos musicais de uma jovem que morava nesse gueto, incluindo muitas composições, e pensaram que era uma descoberta reveladora tão incrível, o que não acontece muito frequentemente, porque geralmente eles tendem a encontrar coisas que são realmente assustadoras ou desagradáveis. Eles querem celebrar isso de alguma forma e esse foi o ponto de partida. Decidiram criar um evento especial. Todos os anos, quando há o aniversário, há um espectáculo especial, um concerto especial com, geralmente, uma orquestra harmonica. Mas eles agora pensaram em celebrar com música nova inspirada nisso. Eles enviaram-me os PDFs e eu estava um pouco… Obviamente que eu disse sim, porque eu pensei: “Uau, isto é uma oportunidade incrível e é também uma história tão boa. Vindo de onde eu vim, posso também refazer esse laço.” Mas eu estava um pouco assustada por achar que podia não me relacionar muito com a linguagem de uma jovem que tem origem judaica, que morava num gueto. Eu sentia que não tinha muito em comum com ela, mas o que aconteceu foi que as composições dela soavam a algo que podia vir de qualquer outra pessoa da Europa, porque elas eram muito influenciadas por Schubert, Mozart, Chopin… Eles eram brilhantes e gosto muito deles. E ela era, do que sabemos, através de algumas notas e testemunhos, uma pianista maravilhosa com apenas 11 anos de idade. Então, eu senti imediatamente que isso era uma bonita conexão, porque eu falo a mesma língua musical e eu queria manter esse sentimento. E no meio disso, tudo começou a colapsar. Para mim, o maior colapso em termos políticos foi a guerra na Ucrânia, porque é um país mesmo ao lado do nosso. Não muito depois veio a guerra na Palestina, basicamente um genocídio. E o que eu pensava que poderia fazer é, basicamente, mostrar o que observo dessas situações através do som.


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