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Miguel Augusto Silva

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De volta ao concerto de James Brandon Lewis e o seu Red Lily Quintet em Lisboa.

Há (ainda) uma certa América que teima em seduzir-nos

Quadragésima edição do Jazz em Agosto, na Fundação Calouste Gulbenkian. Primeiro dia de Agosto de 2024 e abertura em grande com o saxofonista tenor nova-iorquino James Brandon Lewis. Terceira presença de Lewis neste festival, agora dirigindo o Red Lily Quintet com Kirk Knuffke (corneta), Silvia Bolognesi (contrabaixo), Tomeka Reid (violoncelo) e Chad Taylor (bateria). Um naipe de músicos preparadíssimos, ancorados na tradição da América negra e do jazz de New Orleans. Anfiteatro ao Ar Livre esgotado a mostrar que é cada vez mais o público que está interessado em ouvir jazz no melhor palco da cidade de Lisboa — lugar recomendado quer a audiófilos, quer a amantes da arquitectura paisagista.

Intitulado For Mahalia, With Love, o programa que Lewis apresentou neste concerto presta tributo à cantora Mahalia Jackson (1911 – 1972), motivado por um imaginário pessoal que o músico, nascido em 1983, desenvolveu através da experiência da sua avó ao ser “atingida por um raio“ quando exposta a esta lenda do gospel e activista dos direitos civis anti-racistas nos Estados Unidos da América. Neta de escravos, Mahalia nasceu pobre e pobre cresceu em New Orleans, Lousiana. Em terras de feitiçaria foi salva pela música. Ainda adolescente, mudou-se para Chicago, a meca do blues eléctrico, onde integrou vários grupos de gospel e cantou em funerais. Numa alusão à importância que a cidade de Chicago teve no desenvolvimento urbano das correntes tradicionais da música negra, costumo citar o título de um disco bem conhecido dos portugueses, que a Chicago Blues Band, do pianista Bob Riedy, registou para a Rounder Records em 1973, Lake Michigan Ain’t No River, cujo subtítulo é Chicago Ain’t No Hilly Town (um grande disco de blues de Chicago que a saudosa Dargil editou em Portugal em 1979).

Uma das grandes virtudes do jazz como música de fusão é a forma como os instrumentos se completam e se complementam em simbiose. Este quinteto interpreta um jazz que tem uma amplitude entre o lamento dos espirituais e um carácter mais vibrante e rítmico, ainda que pautado por uma sobriedade formal característica de todos os músicos do quinteto, eventualmente derivada da sua formação académica. “I come from the generation that went to school to learn music,” refere Lewis no site da editora Anti-, onde se auto-assume como “uma alma antiga”. É um jazz que parte de New York para chegar a New Orleans, e que parece revisitar o jazz sul-africano de Cape Town. Escuta-se uma reminiscência africana que nos anos 70 foi explorada por muitos músicos americanos, como os saxofonistas Albert Ayler, Joe Henderson ou Pharoah Sanders, sem esquecer os pianistas, aqueles que melhor souberam fundir o jazz modal com um certo imaginário do folclore africano capaz de ligar a América negra às raízes ancestrais, através de músicos como McCoy Tyner, Randy Weston ou Dollar Brand (o pianista sul-africano que se exilou nos Estados Unidos para fugir ao Apartheid). Por exemplo, o notável álbum Extensions, de Tyner, que tem uma das melhores capas de sempre do jazz, transporta-nos de volta para África e para toda essa herança. Importante recordar aqui também a influência que os músicos sul-africanos de jazz exilados em Inglaterra tiveram no desenvolvimento de um jazz de fusão europeu nos anos 70 e 80, que se cruzou com o free jazz e o rock progressivo (exemplos do baterista Louis Moholo, do contrabaixista Harry Miller ou do pianista Chris McGregor).

É curioso que, por vezes, nas composições de James Brandon Lewis ficamos à espera de ouvir um piano, mas a sensação é aqui tão bem representada/substituída pelas cordas de um violoncelo e de um contrabaixo. Evocada pelo saxofone de Lewis, numa conversa a três com a sua avó, Mahalia cantou também através do violoncelo. Excelente articulação da forma como se completam um violoncelo e um contrabaixo amplificados, como se cada um fosse uma extensão do outro. Individualidade, o uníssono e a explosão de alegria ou revolta. No mesmo caminho seguiram Lewis e o companheiro dos sopros Kirk Knuffke, com o baterista Chad Taylor a ligar todas as peças e a reedificar as fundações do jazz. Taylor tem já uma longa experiência (por exemplo, fundou em 1997 o projecto Chicago Undeground, ao lado de Jeff Parker e Rob Mazurek) e uma formação que começou ainda em criança quando exposto pelo seu pai à música de Thelonius Monk, Duke Ellington ou Bach. “God speaks through these people”, numa referência a uma frase de Lewis durante o concerto ao evocar Mahalia.

Nota final para a excepcional entrega da contrabaixista italiana Silvia Bolognesi, que para além da relação que criou com resto da banda, e em particular com o violoncelo, imprimiu uma dinâmica e felicidade visíveis. Por exemplo, no primeiro blues da noite, poderia ter acompanhado Tom Waits na abertura de Nighthawks At The Diner. Inesperadamente, antes do concerto, tinha sido surpreendido por um clipe de Paul Simon, que num talk show de Dick Cavett apesentava em 1974 os primeiros acordes de “Still Crazy After All These Years”. E tudo soou tão familiar. A peça final, antes do encore, intitulou-se “Were You There”. Há (ainda) uma certa América que teima em seduzir-nos.


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