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Publicado a: 26/11/2018

H.E.R.: Não interrompam a tristeza

Publicado a: 26/11/2018

[TEXTO] Miguel Alexandre [FOTO] Sue Kwon

Há 18 anos, Erykah Badu cantava em “…& On”, faixa do tão estimado Mama’s Gun, “An analog girl in a digital world”. Esta declaração não era uma simples faceta para se esconder da fama e da superficialidade do mundo de Hollywood: era um resguarde, uma máscara que utilizara para não revelar tudo a uma audiência, que, ao longo da sua longevidade, queria sempre mais e mais. Mudaram-se os tempos, mas as vontades, no entanto, aumentaram. Na era das redes sociais e da proliferação de “fake news”, o público demanda uma atenção acrescida, uma maneira de estar cada vez mais ligados às celebridades. Se alguém conseguisse manter qualquer tipo de privacidade, era como se estivesse a esconder algo; o contrário era facilmente entendido como um bando de vontades de falsa digestão. Mas há quem consiga tal distanciamento, sem qualquer esforço adicional, nem que tenha de se abrigar em pequenas e diatónicas siglas. H.E.R. significa Having Everything Revealed (“Ter tudo revelado”, em português) e serve como a armadura de protecção de Gabi Wilson, a nova voz do r&b alternativo cujas músicas vão para além de puras explorações de angústia, desolação e solidão no feminino: são hinos que envolvem a identidade de uma só pessoa à garganta de várias.

“Vivemos num mundo em que os aspectos privados da vida de alguém são mais importantes que a música em si”, contou à revista Glamour, em Abril deste ano. “É tudo sobre quantos seguidores tu tens, a quem estás associado, o que vestes, sabes, o factor da popularidade. Queria que as pessoas aceitassem somente a minha música tal e qual como ela é, sem qualquer julgamento. E ser anónima foi a minha única solução”.

Tal solução serve-lhe perfeitamente. Ao vivo, Gabi está quase sempre coberta por grandes jogos de luzes combinados epileticamente com câmaras de fumo. O cabelo, tal como o de grandes mulheres do seu género musical, é descontrolado e comanda maioritariamente os movimentos em palco. Vê-la a actuar é uma experiência emocional, focada especialmente na música e na interpretação que cada um retirada dela. As partes visuais são só aparatos, meros instrumentos utilizados para dar forma a um espectáculo, pois o que interessa é a voz de H.E.R. A verdade é que existe aqui uma fórmula executada de maneira exime, em que o anonimato passa a representar a identidade de cada pessoa naquela audiência. As suas canções, de certa forma, avançam antes de Wilson, e funcionam com um caminho perturbado, mas firme, mantendo, sem esquecimento, presente o destino para o qual corre cada mágoa, cada lição de vida.

 



Quando o assunto é a sua voz, esta foi trabalhada desde os 12 anos, interpretando temas de Alicia Keys no piano. A partir daqui, seguiram-se competições em concursos de talentos, mas sempre a acabar com resultados modestos. A paixão pela música foi sempre uma constante. Aliás, a sua ideia inicial não era soar tão desbastada, ou mostrar plenas capacidades de interpretar um par de clássicos da soul, de blues ou jazz sem parecer fora de contexto. Nesse período, o tempo era minuciosamente gasto a estudar e a aperfeiçoar a sua própria arte. A confiança poderá ter demorado a chegar, mas o calibre do seu talento era impermeável e indiscutível, levemente de fácil parentesco a grande parte dos movimentos revivalistas r&b dos anos 90, aliando-se ao mesmo tempo a algo mais contemporâneo, como Brandy, Keyshia Cole ou até mesmo Rihanna.

H.E.R tem apenas 21 anos. Crescendo em Vallejo, na Califórnia, todas as dores sentimentais da adolescência eram projectadas a alto e bom som num sítio em que não havia lá muito para se fazer: “Quando tinha 15 ou 16 anos, contava às pessoas que não iria ser aquela rapariga que se apaixona por um rapaz, tem o seu coração partido, mas acabei por ser. Foi inevitável”, partilhou na publicação da NOW. A música reflecte estritamente tal sentimento: directa, sem rodeios e sem qualquer pausa na emoção. Em “Pigment”, por exemplo, tudo encaixa na perfeição para um final nada feliz, porém esperançoso:

“Secretly I’m anxious, ‘cause the thirst has never been mutual
It’s unusual
That someone like you thinks I’m beautiful
It’s beautiful, yeah
What we had was beautiful”

O single é retirado do primeiro EP homónimo, lançado em 2016, que depois, com mais outro disco, compilou no ano seguinte como seu álbum de estreia. São, no total, 21 temas, mais de uma hora de música. Coisa pouca, portanto. H.E.R acredita que o limite de um artista é desenhado “pela própria imaginação” enquanto se vive dentro de uma canção. E ao dar tanto valor a esse processo, afirma, tanto a artista quanto quem a ouve uma verdadeira transformação acerca de si: “Enquanto mulheres, passamos por muito das mesmas coisas. Todas saímos magoadas. Por isso, o meu objectivo era criar uma voz comum com uma mensagem com que mulheres e homens se pudessem identificar”, disse à revista americana Interview Magazine.

Neste primeiro trabalho com nome próprio, as músicas deambulam entre o etéreo e para sempre romântico lado da compositora, como em “Free” e “Avenue”, e o dramatismo e o descarado libidinoso de momentos como “Hopes Up”, “Focus” e “Say It Again”. “Música no geral – mas especialmente o r&b – tem de ser honesta e penso que isso se tem perdido honestamente: as histórias, as emoções reais, e toda a dor. É suposto ser o rhythm and blues e a parte do blues talvez se tenha perdido ao longo do tempo”. Insubstituível na criação deste corpo de trabalho é a priorização do instinto de prevalecer. Isto para que este lado vulnerável nunca abandone, não seja dominado ou não ceda à razão lógica dos pensamentos e da ordem natural do inevitável. “Não precisas de saber quem está a mandar a mensagem para a receber”, diz ainda à revista NOW: com frases como esta percebemos facilmente que ainda há muita dor que derramar em H.E.R. Não interromperemos a tristeza. Não mexeremos na sua humanidade, caso contrário estamos a pôr em causa um grande processo de superação – e um grande talento também.

 


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