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Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 12/11/2023

O novo septeto de Michael Formanek, New Digs, não deixou ninguém indiferente.

Guimarães Jazz’23 — Dia 3: um palco que também dá para estreias

Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 12/11/2023

Quem tem o hábito de sofrer por antecipação passa sempre por estas coisas: ao terceiro dia do Guimarães Jazz, as saudades que a cidade vai deixar já batem, e por mais que se queira aproveitar a estadia para descobrir novos cantos, há também uma urgência em não perder uma pitada que seja da programação que o certame conseguiu para este ano — mesmo que isso inclua assistir a prestações de alguns músicos ainda sem créditos firmados, numa forma de espremer a experiência ao máximo e também um total depositar de confiança na organização deste evento, que tem definitivamente ouvidos para a coisa.

Enquanto os pingos de água vindos céu parecem dar algumas tréguas, a tarde de sábado, 11 de Novembro, levou-nos até ao Pequeno Auditório do Centro Cultural Vila Flor às 15 horas para ver o ensemble distinguido no âmbito do concurso de jazz promovido pelo Centro de Estudos de Jazz da Universidade de Aveiro e que foi seleccionado para integrar o alinhamento do Guimarães Jazz’23. Falamos do quarteto liderado pelo contrabaixista galego Pedro Molina, que em palco se faz ladear por Miguel Meirinhos no piano, Filipe Dias na guitarra e Gonçalo Ribeiro na bateria. Através de repertório original assinado pelo bandleader, mostraram-se completamente capazes de brilhar nos respectivos instrumentos, embora em determinados momentos não tenham parecido totalmente entrosados — e aqui, grande parte da culpa talvez recaia sobre os próprios arranjos, que atribui diferentes fraseados em simultâneo a cada um dos músicos e retira alguma da consistência à performance, pois há alturas em que as melodias se atropelam umas às outras. Aplaude-se o esforço em tentar interpretar peças que soem o mais livres e inventivas possível, mas deixa-se também a nota de que, por vezes, a chave para a perfeição recai sobre a simplicidade dos processos e no deixar as coisas respirarem. Isolando mentalmente as prestações individuais, percebe-se o virtuosismo de todos eles e sublinha-se especialmente os dotes de Ribeiro, um “pequeno monstro” na bateria, que pareceu sempre o mais lúcido de todos e foi até alvo de um especial destaque por parte de Molina durante a apresentação dos companheiros.

Após um intervalo na programação, às 18 horas regressámos ao mesmo palco para ver in loco aquela que a organização do Guimarães Jazz refere como sendo “a proposta mais extemporânea em relação à tradição clássica do jazz incluída no programa deste ano.” Dito e feito. Bastaram soar as primeiras notas do trio formado por Barry Guy (contrabaixo), Maya Homburger (violino) e Agustí Fernández (piano) para percebermos que estávamos perante um conjunto que não se prende a quaisquer ideias formatadas e é livre em todos os aspectos possíveis — seja ao nível de géneros musicais, das estruturas dos temas ou até mesmo nas próprias abordagens aos instrumentos. Barry e Maya formam uma dupla bem oleada que soma bastantes quilómetros de estrada em conjunto, mas Agustí Fernández, adicionado para este contexto, não se fez nunca sentir um corpo estranho, até porque fala precisamente a mesma língua que os seus parceiros e até divide com eles espaço dentro da Blue Shroud Orchestra.

Ao longo de cerca de uma hora, os três percorreram um alinhamento rico em texturas e com bastante espaço para dar azo à improvisação. E apesar de todos terem o seu nome no cartaz, a formação que se apresentou diante nós no Pequeno Auditório do CCVF foi sofrendo ligeiros ajustes no decorrer do espectáculo. Apesar de tocarem o três praticamente sempre em simultâneo, houve momentos em que Maya Homburger ou Agustí Fernández se ausentavam do cenário para permitir duetos com Barry Guy, ele que numa das composições até chegou a assumir a sós todo o protagonismo. Em comum tinham a forma exímia com que manuseiam as respectivas ferramentas de trabalho: Guy mostrou ser, de longe, o mais excêntrico e tecnicista na abordagem ao instrumento; Homburger primou pela agilidade com que arrancava sucessivas notas do violino, numa fluidez fora do comum; já Fernández tocou o piano como se estivesse a ter uma conversa com alguém, com as mãos a parecer que tinham vida própria e não aguardavam por quaisquer instruções vindas do córtex cerebral. Foi música contemporânea do mais alto calibre, criada a partir de uma mescla perfeita entre fundamentos de jazz e de música clássica.

Já com a chuva a dominar de novo o cenário fora de portas, foi tempo de jantar e digerir a refeição para nos colocarmos a postos para o principal momento do terceiro dia do Guimarães Jazz. Ao leme de um septeto, apresentou-se Michael Formanek quando o relógio bateu nas 21h30. De regresso ao Grande Auditório Francisca Abreu, somos presenteados com uma equipa de luxo: começando obviamente por Formanek, veterano que tem estado na vanguarda do jazz norte-americano há coisa de 5 décadas, e passando por Mary Halvorson (guitarra), Tomas Fujiwara (bateria), Alexander Hawkins (órgão), John O’Gallagher (saxofone alto), Chet Doxas (saxofone tenor e clarinete) e até o português João Almeida (trompete). Juntos formam New Digs, um grupo criado propositadamente para esta ocasião, o que por si só já fazia prever uma noite de carácter especial.

A música que apresentaram não apenas confirmou essa ideia pré-estabelecida como superou qualquer expectativa. Fazendo justiça ao percurso que cada um carrega às costas, desbravaram muito terreno — do espiritual e etéreo ao funk esculpido em “pedra” —, mas sem nunca envergar por caminhos que possam causar estranheza num público que esteja habituado a uma certa tradição. Por muita invenção que tenha existido do lado da composição dos temas, todos eles foram bastante lúdicos, entretendo não apenas o público como os próprios artistas, que iam esboçando sorrisos como sinal de aprovação face às alturas de maior desbunda ou aos solos mais bem conseguidos por parte dos colegas.

Formanek foi consistente, Halvorson mostrou-se metódica, Fujiwara é facilmente o baterista que mais impressionou até ao momento nesta edição do Guimarães Jazz, o órgão de Hawkins trouxe psicadelismo e um certo sabor a gospel em alguns momentos, enquanto que os 3 sopristas assinaram os solos que mais aplausos arrancaram da plateia. Não sabemos se esta será uma formação a repetir no futuro nem se existem planos para levar este repertório para um estúdio e de lá fazer gerar uma nova edição discográfica, mas garantimos que eram todas peças com alto replay value e temos pena de não conseguir puxar a fita atrás para experienciar tudo de novo. Façamos figas para que este projecto possa chegar ao mercado e, se possível, manifestar-se noutros palcos nacionais.


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