LP / CD / Digital

Gorillaz

Song Machine, Season One: Strange Timez

Parlophone / 2020

Texto de Luís Carvalho

Publicado a: 09/11/2020

pub

É num ambiente sombrio e misterioso que “Strange Timez” arranca. Uma combinação de fantasmagóricas notas de piano, carregadas de medo e suspense, em que a noite e a imagem de uma floresta negra e malévola se erguem na nossa imaginação. Por muito que o design sonoro nos diga que algo vem atrás de nós e que devemos ter receio, a curiosidade sobre o que vamos encontrar é muito maior do que o medo. Damon Albarn e companhia não podiam ter pensado num início mais descritivo que este para o que foi esta jornada.

Anunciado em Janeiro como um projeto de músicas soltas, Song Machine: Season One levantava alguns receios, uma vez que The Now Now e Humanz, apesar de terem um bom par de malhas, não mostravam a mesma classe do passado. O facto de se registar uma considerável proximidade entre lançamentos criava uma certa expectativa, levando-nos a questionar se estes novos temas não seriam apenas sobras desses álbuns ou se seriam indicador de uma banda a cair no erro de produzir demasiado. É neste conceito de procura de uma liberdade extrema que os Gorillaz anunciaram o lançamento de novas músicas para um 2020 que se avizinhava, lá está, estranho.

As honras de abertura foram dadas a “Momentary Bliss”, aquela que viria a ser a última faixa do disco, por curiosidade. Logo aos primeiros acordes da guitarra de Laurie Vincent (membro dos Slaves) percebemos que afinal o nosso receio era descabido. Este é um tema brilhante e glorioso, uma autêntica luz de punk, quente, colorida e viciante. Um dos novos reis do grime, slowthai, está mais bully que nunca enquanto berra aos nossos ouvidos as urgências deste mundo numa tentativa de nos acordar da hipnose induzida pelas linhas de guitarras. Uma canção muito bem produzida, altamente orelhuda, saltitante, óptima para bater o pé e em que se ouve um grito de liberdade e de diversão que já não ouvíamos há muito tempo nos Gorillaz.



Um arranque fulgurante devidamente seguido por “Désolé”, em que a banda viaja até aos ritmos africanos com a participação da deliciosa voz de Fatoumata Diawara. Tem balanço e tem uma delicadeza sublime a vestir uma boa melancolia pop, cantada, por vezes e para nossa surpresa, em francês. Nova surpresa positiva aconteceu em “Aires”, tema em conjunto com Georgia (que, tal como os Gorillaz, vai estar presente no NOS Primavera Sound do próximo ano) na bateria e Peter Hook no baixo. Podia ser perfeitamente um novo single dos New Order, mas não. É apenas Gorillaz a mostrarem que conseguem ser tudo e todos e que, para eles, uma canção pop pode ser o que eles muito bem entenderem.

Ao fim destes três episódios iniciais e disponibilizados no YouTube, chegou a hora de se falar em álbum, pois seria um desperdício ter estes três ótimos temas, dos melhores que a “banda” produziu nos últimos anos, a serem, de certa forma, apenas singles. Sim, tivemos um novo álbum intitulado Song Machine Season One: Strange Timez repleto de grandes músicas, no entanto este deve ser olhado como algo mais. Ficou claro que, afinal de contas, mais do que um disco, estamos perante uma série audiovisual e pensá-lo apenas como um álbum seria relativizar toda a experiência proposta. Cada música representa um episódio, uma história, um motivo. Mais do que um álbum em que se compilam músicas dispersas, este é um projeto em que o processo vale talvez tanto como o resultado final. Estas valem por si só, são uma experiência e um desafio distinto das restantes.

Na sua soma, este é um projecto extremamente positivo com a melhor produção que algum álbum de Gorillaz já teve, em que se nota que foi pensado sem qualquer filtro ou limite criativo eem que as coisas foram acontecendo e se encaixando pelo simples prazer da partilha, da colaboração e do amor à música. Com isso, fomos expostos ao sentimento de prazer e diversão que Damon Albarn teve nestas sessões.



Destinadas ao exercício de explorar e diluir aquilo que são os limites da pop, através da combinação de estéticas distintas como o hip hop agressivo e o psicadelismo em “Pac-Man”, por exemplo, com ScHoolboy Q, ou trabalhar a união de vozes opostas, para perceber até onde elas poderiam chegar em conjunto, como é o caso claro e surpreendente da voz de Albarn com Elton John e 6LACK. Algo que parecia impossível, mas que resulta na perfeição na fresca e estranha balada “The Pink Phantom”. Um romance entre vozes e pianos, desafiado por 6LACK e o seu vocal alienista, que se introduz, qual corpo estranho e fora de contexto, na composição, exprimindo um lado exótico, curioso e atraente do tema. O mesmo exercício de colocar elementos surpresa, e por vezes antagónicos, pode ser visto em “Friday 13th”, em que Octavian rima de forma calma e sedutora sobre ritmos caribenhos, numa espécie de slow dancehall. Um dos poucos momentos em que a energia da música não nos deixa imediatamente prontos a balançar a anca.

A eletrónica joyfull e galhofeira emerge tema após tema. É uma deliciosa constante neste trabalho e nem o lado mais negro e gótico de Robert Smith escapa a essa “norma”. Nunca ouvimos o líder dos The Cure tão upbeat e disponível a mostrar o seu jogo de cintura como em “Strange Timez”. Pois é, o lado nervoso e assustador, afinal transporta-nos para a diversão e para a ginga. São estes os Gorillaz na sua primeira temporada. Uma banda inspirada, que nos faz sorrir e sobretudo que está a fazer, e bem, o que melhor sabe: experimentar e procurar a novidade na mistura de linguagens, de partilhas, numa forma que já não víamos desde Plastic Beach.

A qualidade do álbum nem se quer desce quando entramos na versão deluxe. Aqui, os temas ganham um nível mais experimental, em que encontramos sons que vão desde a meditativa “Simplicity”, que conta com a voz de Joan As Police Woman, à febre dançante da incrível “Opium” com os EARTHGANG, possivelmente uma das melhores intros que vamos encontrar na discografia, mas também a continuação dos diálogos dos opostos, como em “MLS”, em que JPEGMAFIA e as Chai se deixam contagiar pela pop sonhadora e infantil de Damon Albarn. É assim a obrigatória primeira temporada de Song Machine. A segunda espera-se para breve.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos