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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 31/07/2025

Ressonâncias poéticas e etnomusicológicas.

Glockenwise: as cordas invisíveis de Barcelos

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 31/07/2025

[O Som Antes do Nome]

A música, antes de ser um gesto, é um murmúrio subterrâneo. Antes dos Glockenwise, havia a promessa do som dentro da pedra — o tilintar de uma vontade colectiva de sair da concha da adolescência e tocar o mundo. Barcelos, com as suas ruas de granito e galos mitológicos, foi berço e catalisador, mas também obstáculo.

Em 2006, Rodrigues, Ferreira e Veloso não estavam apenas a formar uma banda — estavam a escavar uma fresta no quotidiano. Tinham 15 ou 16 anos e já sabiam que o sono dos lugares pequenos é um canto perigoso. Por isso começaram a tocar. A chegada de Rui Fiusa fechou o círculo inicial: uma quadratura ruidosa da juventude.

Na génese dos Glockenwise, o etnomusicólogo escuta mais do que notas: ouve as redes subterrâneas da influência. Vicious Five, Black Bombaim, Wraygunn — nomes que funcionaram como ecos interiores, bússolas do que poderia ser feito em português, com distorção e suor. Estes ecos são também instrumentos. Não há identidade musical sem a escuta do outro.

[O Palco como Ensaio do Mundo]

Desde o princípio, o palco foi o seu chão. Não esperaram por contratos ou legitimidade: tocaram, simplesmente. Barcelos On The Rocks foi o primeiro chamamento. O festival não era apenas um evento — era um ritual de pertença. A Honeysound, a Câmara Municipal, a Lovers & Lollypops: estas entidades locais formavam um tecido vivo de suporte cultural, uma etnografia em tempo real de um território que se ouvia a si próprio.

Em 2008, no concurso Rockstratu’s, o palco transformou-se em campo simbólico. Ganharam prémios de voz e presença, mas perderam o galardão final. No entanto, o etnomusicólogo sabe que, para além da métrica da vitória, há outra contabilidade mais densa: a da inscrição numa comunidade. A derrota, ali, foi apenas mais um verso no longo poema de formação.

[O EP Como Carta de Intenções]

O primeiro disco, The Glockenwise, surgiu em 2009. Mas talvez devamos chamá-lo de artefacto ritual. O EP, editado pela Lovers & Lollypops, foi menos um produto do que uma oferenda. Lançar um disco independente em Portugal é um acto de fé, um gesto arcaico de quem acredita que o som, mesmo não sendo rentável, pode ser fundamental.

A multiplicação dos concertos após o lançamento — no Armazém do Chá, no Cabaret Maxime, no Milhões de Festa — foi a resposta do corpo à gravação. O palco voltou a ser o lugar de tradução. A música gravada transforma-se, sempre, ao ser partilhada ao vivo. É nesse instante que o som deixa de ser reprodutível e passa a ser ritual.

A inclusão dos Glockenwise na compilação Novos Talentos FNAC e numa peça do jornal Público sobre o rock de Barcelos marca uma viragem: o reconhecimento institucional de um fenómeno até aí subterrâneo. A música deixa de ser apenas som — torna-se símbolo.

[Ondas em Construção, Gritos em Travessia]

Building Waves não foi apenas o título do primeiro álbum dos Glockenwise. Foi, também, a imagem mais precisa da sua trajectória — construir ondas: invisíveis, sonoras, mas capazes de transportar corpos. Em Janeiro de 2011, esse disco chegou como quem vem do nevoeiro do interior minhoto e pisa, enfim, o convés de um oceano maior. Era um manifesto de juventude, mas também de método: o punk e o rock como ferramentas para esculpir um grito, um lugar, um ritmo próprio.

A crítica ouviu — e escutou. Mas o eco atravessou fronteiras. A nomeação a um prémio europeu da Impala — ao lado de nomes como Adele, M83, Sigur Rós — não foi uma coincidência. Foi um fenómeno etnomusicológico em acção: um som nascido num microcosmo regional a ser reconhecido num mapa global de independência criativa.

A comparação com Tame Impala nesse verão — no Super Bock Super Rock — foi menos um confronto do que uma simetria. Os Glockenwise abriram um palco, mas o que inauguravam, na verdade, era uma nova escuta: um rock português em inglês, vindo de Barcelos, carregado de personalidade, mas sem fronteiras linguísticas ou tímbricas.

Este primeiro ciclo, entre 2011 e 2015, operou como uma trilogia involuntária. Depois de Building Waves, chegou Leeches em 2013. E depois, Heat, em 2015. Ambos os álbuns mantinham o inglês como idioma de eleição — uma escolha tão estratégica quanto identitária. A escolha da língua é quase sempre um gesto de afiliação simbólica: cantar em inglês é, muitas vezes, entrar numa corrente transnacional do rock, dialogar com os fantasmas anglófonos do género e, ao mesmo tempo, dissolver o local no universal.

Mas não há perda nisso — há transfiguração. O português de Barcelos está nos riffs, nas pausas, nos ritmos inesperados da bateria. Está nos gestos ao vivo, no modo como ocupam o palco com a precisão de quem conhece o silêncio do campo. Leeches foi um disco mais escuro, mais urgente, como se a electricidade se condensasse. Heat, por sua vez, parecia vir de um lugar em combustão lenta — mais denso, mais líquido, mais maduro.

A Lovers & Lollypops permaneceu como selo e cúmplice. Essa continuidade revela algo precioso: o circuito alternativo português é feito não apenas de artistas, mas de vínculos. A editora não é apenas uma estrutura de produção — é um sistema de crenças, uma tribo sonora. Numa leitura musicológica, isso é crucial: as editoras independentes funcionam como famílias simbólicas, lugares de pertença estética, e não apenas económicas.

[Cantar na Língua do Corpo: O Timbre do Português]

Em 2018, os Glockenwise fizeram aquilo que, na análise musical, se pode descrever como um deslocamento semântico e fonético — uma mutação no eixo linguístico da sua identidade sonora. Com Plástico, deixaram de apenas tocar em português para finalmente soar em português. A mudança do inglês para o português não é apenas um gesto de tradução — é uma alteração profunda na matriz tímbrica, prosódica e expressiva da música.

O português, com a sua prosódia líquida, os seus ditongos arrastados e consoantes nasais, afecta profundamente a melodia do discurso. Onde antes havia o fraseado directo e cortante do inglês anglófono, agora ressoava uma densidade própria da lusofonia, uma espécie de barroco sónico contido, subtil. A voz de Nuno Rodrigues passou a ter outra função: não apenas narrar, mas texturar. A língua portuguesa, aqui, funciona como um instrumento melódico-tímbrico, tal como as guitarras ou a bateria.

Em termos musicais, este momento marca uma viragem organológica: os elementos vocais, melódicos e harmónicos passaram a dialogar com um novo substrato cultural — o da canção portuguesa urbana pós-indie, uma linhagem que inclui nomes como Samuel Úria, Linda Martini ou Clã, mas que remonta também, por via da tradição, a Sérgio Godinho e Zeca Afonso, embora deslocada para o campo do ruído, da electricidade e da pulsação maquinal. Na bateria, Cristiano Veloso era substituído por Cláudio  Tavares.

Plástico, editado pela Valentim de Carvalho — selo histórico da música portuguesa — foi não só uma surpresa estética, mas também um reposicionamento no campo simbólico da indústria musical nacional. A crítica especializada reagiu como se ouvisse um novo grupo: as listas dos melhores álbuns do ano começaram a incluir os Glockenwise como se tivessem, de facto, acabado de nascer.

No entanto, a sua nova pele não era uma negação do passado — era o seu reprocessamento espectral. Em 2020, essa ideia materializou-se numa colaboração com Rui Reininho no tema “Calor”, uma reinterpretação em português do original “Heat”, do terceiro álbum. Este acto pode ser lido como um exercício de retrotradução poética: levar uma canção de volta à sua origem emocional e permitir que ela se reescreva na nova sintaxe da banda.

Reininho, enquanto figura mítica da pop portuguesa, não só emprestou a sua voz — emprestou a sua genealogia sonora. A colaboração, neste contexto, funcionou como um gesto intertextual e transgeracional: uma ponte entre dois modos de entender a canção como território experimental e identitário.



[Gótico, Pós-Luz, Pós-Fado]

Cinco anos passaram entre Plástico e o regresso à longa-duração com Gótico Português (2023), editado de forma independente. A distância temporal entre os dois álbuns não representa ausência, mas sim gestação estética. O silêncio relativo foi fértil: permitiu à banda depurar o idioma recém-adotado e aprofundar o seu uso como elemento expressivo central.

Gótico Português é mais do que um título — é uma categoria estética inédita, um rótulo que não remete a escolas, mas sim a atmosferas. Não se trata de gótico no sentido da música britânica oitocentista ou do pós-punk sombrio — trata-se de um gótico meteorológico, arquitectónico, telúrico. Um gótico que nasce da melancolia embutida nas pedras das cidades, das torres de igrejas projectadas sobre ruas desertas ao fim do dia, dos nevoeiros que pairam nas margens do Cávado.

Em termos musicológicos, o disco opera com um léxico harmónico mais tenso e escuro. A instrumentação, embora fiel ao formato rock — voz, guitarra, baixo, bateria — é tratada com um sentido de textura harmónica dissonante e com uma dinâmica de crescendo dramático, quase teatral. A bateria, por vezes, sugere polirritmias subtis, e as guitarras criam camadas contrapontísticas tímbricas, em que o ruído é utilizado como material formal e não como acidente.

A escolha por uma edição independente revela também uma dimensão performativa de autonomia — a banda assume o seu lugar à margem da indústria convencional, apostando na auto-curadoria da sua estética. O gesto não é apenas económico, é ideológico: os Glockenwise optam por uma cartografia própria, fora dos circuitos previsíveis, numa linha de continuidade com o ethos da Lovers & Lollypops, mas agora com a liberdade total de quem já sabe o que quer dizer.

[O Som de um Lugar Que Nunca Deixou de Ouvir-se]

Toda a música carrega um lugar dentro. Nos Glockenwise, esse lugar não é apenas Barcelos — é um tipo específico de espaço sonoro periférico, moldado por uma simultaneidade de pertença e fuga. Se aceitarmos que cada cena musical é uma paisagem acústica (no sentido de Schafer), então a de Barcelos, entre 2006 e 2023, é um microcosmo fervilhante de resiliência cultural e inovação marginal.

Os Glockenwise não existiriam sem essa ecologia: uma rede de editoras alternativas (como a Lovers & Lollypops), festivais como o Milhões de Festa, e uma cena colaborativa marcada por uma prática constante de palco enquanto laboratório. É aqui que entra a cenossonologia — o estudo da interacção entre música e espaço social. Em Barcelos, não há apenas músicos: há um ambiente acústico comunitário, uma ecologia da escuta. Os concertos não são apenas apresentações — são momentos de negociação entre identidade local e desejo global.

Nesse sentido, os Glockenwise são um produto e um reflexo dessa glocalização musical — termo que une “globalização” e “local”, e que descreve como elementos musicais globais (rock, punk, indie) são apropriados localmente com fins expressivos próprios. A escolha inicial pelo inglês, por exemplo, não foi alienação: foi uma estratégia de inserção no fluxo simbólico internacional. Mais tarde, o regresso ao português foi uma reterritorialização — não para dentro, mas para fora de si: um reconhecimento da carga poética e política da própria voz.

Em Plástico e Gótico Português, encontramos também indícios daquilo que Paul Ricoeur chamaria de memória recalcada — uma memória que não se recorda apenas com palavras, mas com frequências, andamentos e espectros harmónicos. A pulsação da bateria resgata a urgência dos concertos nos armazéns, as linhas de baixo arrastam consigo os bairros antigos da cidade, e a voz — agora mais depurada e menos juvenil — revela um corpo sonoro que envelhece com dignidade e inquietação.

Por isso, mais do que um percurso linear, a discografia dos Glockenwise pode ser lida como uma cartografia espectral: cada álbum é um território emocional, linguístico e acústico. Building Waves é o mar interior da adolescência. Leeches é o corpo urbano mordido por ideias. Heat é o deserto emocional entre o impulso e a consequência. Plástico é a pele nova e reflexiva da reinvenção. Gótico Português é a noite metafísica de um país que canta em sombra.

[O Gesto de Ficar: Etnografias da Persistência]

Num tempo em que a obsolescência cultural é desenhada a cada nova actualização algorítmica, o mais radical nos Glockenwise talvez seja o gesto de permanecer. A banda não cedeu ao brilho da rotatividade digital. Continuou, com intervalos e mutações, mas com uma ética de labor sonoro que resiste ao efémero.

Do ponto-de-vista etnográfico, isso revela uma forma de persistência cultural não espectacular — uma resistência discreta, feita de continuidade estética, intermitência pensada e sobrevivência simbólica. É o que Alan Merriam chamaria de função existencial da música: não apenas comunicar ou entreter, mas manter um grupo coeso, um sentido de identidade sonora e relacional.

Mesmo as pausas — como entre Heat e Plástico, ou entre Plástico e Gótico Português — são parte do seu léxico musical. Na análise estrutural, o silêncio entre álbuns opera como césura formal, como os momentos suspensos em certas fugas de Bach, em que o vazio prepara o retorno, o reconhecimento.

Assim, os Glockenwise tornaram-se algo mais do que uma banda: são um dispositivo de escuta crítica, um espelho acústico onde se reflectem os modos contemporâneos de habitar a música em Portugal.

[Cantar é Persistir]

Num mundo em que a música se tornou fluxo, dado e ruído de fundo algorítmico, os Glockenwise decidiram ser fricção. Persistiram quando tantos desapareceram. Mudaram quando outros se repetiram. E, talvez mais importante, ouviram-se a si próprios — não como eco narcisista, mas como exercício de escuta interior e comunitária.

Na análise final, o seu percurso não é apenas uma narrativa de evolução estilística. É um caso etnomusicológico da mais alta relevância: um grupo que, vindo de um território não hegemónico, construiu uma linguagem própria dentro de um campo dominado por estéticas globais. Barcelos não é Londres, nem Nova Iorque, nem Lisboa — e é precisamente por isso que importa. Porque é um ponto de resistência, de invenção, de desobediência criativa.

Cantar em português, depois de três álbuns em inglês, não foi um gesto nacionalista — foi um gesto ontológico. Uma declaração de presença no seu próprio som. Uma reconfiguração da sua identidade vocal. E ao escolherem os seus próprios tempos — longos, silenciosos, por vezes incómodos — desafiaram as métricas da produção acelerada. Escolheram a durabilidade contra a viralidade.

Do ponto-de-vista da musicologia crítica, os Glockenwise representam uma nova forma de habitar o rock português: nem revivalismo, nem vanguarda desligada da comunidade. São, antes, uma forma viva de arquivo emocional e social. Cada disco é um documento, mas também uma ficção — uma hipótese sobre como soar em cada tempo.

E se a sua obra nos diz algo sobre o futuro da música independente em Portugal, talvez seja isto: Que a inovação não está na ruptura constante, mas na escuta radical do que já pulsa. Que a identidade não se fixa, mas flui — entre idiomas, estéticas, colaborações, silêncios. Que cantar, hoje, pode ser um acto de resistência contra o apagamento — uma forma de existir com som.

Porque, no fundo, cantar é persistir. E persistir, neste tempo de dispersão, é o mais afinado dos gestos musicais.



[“O Dia Feliz”: Ontologia da Canção e o Som da Suspensão]

A letra de “O Dia Feliz”, dos Glockenwise, é uma partitura de melancolia disfarçada, um canto quase silencioso sobre a banalidade estruturante do quotidiano. Não há grito nem drama: há suspensão harmónica existencial, há um sujeito lírico que se move por entre os dias como quem percorre uma sequência de acordes menores — sem resolução.

“Quando levo a mão à porta / Vou sem qualquer emoção”

Este gesto — levar a mão à porta — remete directamente para a ideia heideggeriana de Geworfenheit, o “ser-lançado” no mundo. O sujeito não age com intenção ou emoção: simplesmente executa. Está ali, entre o automatismo do gesto e o vazio da emoção, como quem vive numa estrutura rítmica sem variação. Um andamento andante, onde o tempo não se transforma — apenas se sucede.

A referência à “natureza morta” não é apenas pictórica, é uma metáfora acústica: a vida transformada em still life, em paisagem sem som. A canção emerge assim como espelho acústico do existencialismo: uma vida feita de gestos que se repetem, sem modulação afectiva. Como uma peça em modo dórico que não ousa alterar a tonalidade.

“Mas que maneira de estar / A ver navios a passar”

Aqui, o olhar sobre os navios é uma variação irónica do mito de Ulisses. Mas, ao contrário do herói homérico, este sujeito não parte — observa. Está ancorado, não no porto, mas numa tonalidade da espera. É a espera de uma “hora nova” ou de “uma desculpa para voltar” — dois tempos que não existem. Um futuro que tarda e um passado que já não se pode repetir. Giorgio Agamben diria que este é o tempo messiânico suspenso — o agora que não se realiza, o instante em que o acontecimento está sempre por vir.

“Hoje foi um dia feliz / Nada de novo a relatar”

A felicidade enunciada é irónica e dissonante. É a felicidade da ausência de acidente, da normalização da neutralidade. Um modo maior cantado em tonalidade menor, como acontece em canções de Satie ou nos lieder mais sombrios de Schubert — quando o texto diz “alegria” mas a melodia arrasta uma tristeza subterrânea. O sujeito “voltou de onde tinha de vir”, expressão que denuncia uma arquitectura circular do tempo vivido — não há clímax, apenas retorno, repetição, cansaço ritual.

“Levo um aperto no peito / Para isso é que eu andei na escola”

Aqui, há um salto brutal: do existencial ao estrutural. A escola ensinou-o a nomear — “aprender o conceito” — mas não a habitar o afecto. Deleuze escreveria sobre isso como a falha da representação: aprender o nome da dor não é o mesmo que sentir o seu som interior. A canção aqui funciona como resistência semântica: nomeia o aperto mas não o explica. O conhecimento é apresentado como ineficaz: a teoria não serve para modular o sofrimento. A mola salta, mas não como libertação — como automatismo.

“Heróis do quotidiano / Ou marinheiros de outro mar”

Esta dicotomia final é a pergunta fundamental da canção: somos mártires da repetição ou navegadores de uma transcendência que nunca chega? O quotidiano aqui surge como categoria estética — um tempo métrico sem rubato, sem variações dinâmicas. Ser herói do quotidiano é manter-se a tocar a mesma melodia, dia após dia, sem aplauso nem fuga.

No entanto, a última imagem — os marinheiros de outro mar — abre espaço a uma modulação possível. Um outro mar, talvez atonal, talvez fora do sistema temperado da rotina. Talvez onde se possa finalmente improvisar.

[Coda: A Canção Como Lugar de Filosofia]

“O Dia Feliz” é uma canção tonalmente ambígua, afectivamente disfarçada e formalmente contida. É um exemplo contemporâneo do que Adorno chamaria de “música de protesto”: aquela que, sem panfleto, expõe o vazio estruturado da vida moderna. Na tradição da canção portuguesa, este é o novo fado: o fado não da tragédia, mas da indiferença. Um fado pós-capitalista, onde o lamento é substituído pela enumeração neutra: “Hoje foi um dia feliz / Nada de novo a relatar.”

E talvez aí resida a sua grandeza: como nos quartetos finais de Beethoven, ou nos silêncios de Morton Feldman, esta canção diz mais pelo que omite do que pelo que afirma. É um espaço de escuta para a melancolia contemporânea — uma harmonia suspensa à espera do acorde que não chega.

[Epílogo — Uma Banda Que Acontece no Tempo]

Há bandas que fazem discos. Outras fazem ruído, revolução, nostalgia, ou estilo. Os Glockenwise fazem tempo. Não o medem, nem o preenchem — acontecem dentro dele, como quem escava em silêncio um lugar onde o som pode ser habitação, não apenas superfície. São menos uma narrativa do que uma fenomenologia do amadurecimento: o crescer lento de uma planta que nunca pede licença para florir.

Neste ensaio, tentámos escutá-los não apenas com os ouvidos — mas com as ideias, com as perguntas, com os interstícios. Porque o que está ali — nas letras, nos álbuns, nos gestos — não é um estilo, mas uma ética da escuta. Uma escuta sem pressa, sem moral, sem épico — mas profundamente atenta ao que pulsa por baixo da normalidade.

Glockenwise é um nome que parece estrangeiro. Mas talvez por isso funcione como espelho: reflecte o país que ainda hesita em escutar-se a si mesmo. No seu percurso, há uma pedagogia subtil da atenção: ao que muda sem fazer ruído; ao que se diz sem precisar de explicar; ao que arde sem precisar de lume.

A banda ensinou-nos que há outra forma de existir no panorama musical português: sem decalques, sem pressa, sem necessidade de estar sempre a acontecer. Mostraram que a independência não é um estatuto — é uma forma de demora, um exercício contínuo de coerência. E sobretudo, lembraram-nos — sem o dizer — que fazer música é também pensar o mundo.

Com guitarras, sim. Com letras, sim. Mas também com silêncios, pausas, demoras e desvios. No fim, os Glockenwise não nos entregaram respostas. Entregaram-nos frequências. E quem escutar com atenção, descobrirá que, por entre essas frequências, existe uma pergunta persistente, vibrando baixinho:

Como se habita um tempo que já não sabe escutar-se?


Glockenwise: “É especialmente bom perceber que há uma parte da nossa obra que começa a ressoar junto das pessoas”

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