Ricardo Gonçalves é natural de Espinho; Paloma Moniz vem da Madeira. Conheceram-se em Lisboa nas Belas Artes em meados da década passada e mudaram-se ambos para Londres. Foi entre Lisboa e Londres onde nasceu Girls 96, projeto onde Ricardo e Paloma encarnam, à boa maneira do electroclash, personagens capazes de nos contar as mais atabalhoadas e emotivas peripécias da noite destas cidades.
O primeiro EP do duo, 1996, editado em fevereiro pela Maternidade, é uma amalgama de sons construídos com a ajuda de Rodrigo Castaño (aka Rodas) e Bejaflor que resultam em canções pop vastamente orelhudas que, se tivessem sido lançadas no virar do milénio, poderiam facilmente ser escutadas numa festa Club Kitten.
No próximo sábado (6 de Abril), as Girls 96 vão ser as hosts de uma espécie de Club Kitten à sua maneira nas Damas, em Lisboa, onde irão apresentar 1996. Quem vier, é mesmo para “Dar Tudo”.
Por coincidência, Ricardo e Paloma fizeram parte do público da mais recente edição do Tremor. Num dos dias do festival, o Rimas e Batidas foi almoçar com a dupla para melhor entender o seu universo.
A pergunta que se coloca: porquê fazer electroclash em 2024? [Risos]
[Ricardo Gonçalves] Acho que a principal razão é porque é o que nós ouvimos. Eu já fazia eletrónica antes e andávamos a ouvir bué desse estilo e achámos que era fixe tentar fazer alguma coisa assim. Nem sequer começámos a achar que ia ser electroclash.
[Paloma Moniz] Nós ficámos bué obcecados com cenas de electroclash e começámos a ir bué deep nesse buraco [risos]. Acho que estão a regressar coisas deste estilo devido ao momento que estamos a viver atualmente. Quando há bué instabilidade, as pessoas viram-se para coisas mais divertidas e nostálgicas, apesar de não ser isso de todo que estamos a tentar fazer.
O que é que vos fez ficar obcecados com electroclash?
[Paloma] Bué coisas!
[Ricardo] Desde sempre que a minha banda favorita são os LCD Soundsystem e acho que eles encaixam um bocado nisto. Depois, coisas como os CSS [Cansei de Ser Sexy] e Peaches – os clássicos. E mesmo coisas mais recentes, como as NEW YORK, de Londres, The Dare ou MGNA Crrta.
A vossa pop tem um lado satírico? Porque a letra das canções acaba por ir um bocadinho nessa direção.
[Paloma] Acho que, pelo menos para mim, isso surgiu naturalmente. Nunca estudei música, portanto-
Mas o electroclash é muito à base disso [risos]. E da performance.
[Paloma] Sim, mas para mim essa cena do electroclash de encarnar personagens ajudou-me a escrever, porque permitiu-me criar algum distanciamento com aquilo que estava a sentir e brincar com esses sentimentos. Sempre gostei muito desse lado mais performance da música e acho que, a partir do momento que começámos, tentei muito brincar com isso. Acho que as histórias que estamos a contar são muito cinematográficas.
[Ricardo] Eu acho que nunca tinha pensado nisso até agora [risos], porque foi a Paloma que escreveu a maior parte das letras. A única que escrevi mais foi a “Ficas no Chão” e estava a pensar que toda a cena dessa música é bué o contrário de mim. Não sou nada o tipo de pessoa que diz aquelas coisas [risos]. Se calhar também há uma cena de escape envolvida, mas não deixa de ter coisas que são bué honestas e reais.
[Paloma] Sim, nós utilizamos estas vozes para exprimirmos de outra forma o que estamos a sentir.
Como é que Girls 96 evoluiu? Vocês estão em Londres e o Rodas e o Bejaflor estão em Lisboa, mas acabam por ajudar a produzir o EP.
[Paloma] Nós começámos a fazer as cenas em Londres bué despreocupadamente e nunca pensámos que seria uma coisa que íamos sequer lançar.
[Ricardo] Isso foi em maio do ano passado.
[Paloma] Ya, e depois começámos a perceber que estávamos a gostar do que estávamos a fazer e tentámos perceber o que podíamos fazer com aquilo. Havia bué limitações a nível de produção e sonoridade e sentíamos que precisávamos de mais alguém para nos ajudar com isso. E fomos à procura dessa pessoa.
[Ricardo] Nós gravámos as maquetes todas entre maio e junho e em julho mandámos ao Rodas-
Já conheciam o Rodas?
[Ricardo] Mais ou menos. Eu toquei uma vez numa noite organizada pela Maternidade nas Damas há para aí uns sete anos e eu conheci-o, mas não foi além de um “oi, tudo bem?”. Não era ele que tinha organizado essa noite.
[Paloma] A razão foi mais porque conhecíamos a Maternidade e gostamos do trabalho deles. Nós começámos a olhar para editoras portuguesas porque estávamos a escrever em português e achámos que fazia mais sentido assim.
[Ricardo] Quando o Rodas e o Bejaflor entraram no projeto, eles ajudaram a meter as nossas demos a soarem a música a sério. Meteram tudo a soar melhor e ainda adicionaram coisas que eu sinto que fizeram bué diferença.
Vocês conheceram-se em Londres?
[Ambos] Não.
[Ricardo] Conhecemo-nos em Lisboa quando entrámos para a faculdade em 2014 ou 2015.
Escrevem em português, mas as experiências que contam nas vossas canções são experiências que tanto podiam acontecer na noite de Londres como na de Lisboa. Como é que é cruzar esses dois mundos tendo em conta as memórias que têm de cada uma dessas cidades?
[Paloma] Acho que isso é um dos pontos mais importantes da nossa música. Para mim, começar a escrever em português foi super difícil porque eu não escrevo em português. Eu sinto-me muito mais confortável a escrever em inglês porque me refugiei muito nessa distância que tinha com a língua. Foi o Ricardo que propôs escrevermos em português e acho que isso faz logo a ponte com Lisboa, porque começas a pensar em português também e isso trouxe à memória várias coisas que vivi quando estava em Lisboa. Depois, estou em Londres há cinco anos, não é? É normal questionar se quero voltar para Portugal, se tenho bué saudades de Portugal, mas ao mesmo tempo sei que gosto imenso de Londres. Portanto, ao estar entre estes dois mundos, começas a trazer coisas de um lado para o outro e a comparar inevitavelmente. Essa comparação, para mim, está mesmo presente.
[Ricardo] Muito do EP é sobre estares num sítio e quereres estar noutro. Quando estás em Portugal, queres estar fora; quando estares fora, queres estar em Portugal.
[Paloma] E também saberes muito bem a que sítio pertences. Quando vens a Lisboa, sentes-te próxima porque já viveste ali, mas ao mesmo tempo, imensas coisas já mudaram desde a última vez que lá tiveste e é mais difícil voltares a inserir-te lá. Por outro lado, também não te inseres totalmente em Londres porque não és de lá.
[Ricardo] Voltas a Lisboa e já não conheces os sítios nem entendes muito bem as dinâmicas.
[Paloma] Há bué caras novas. Mesmo que estejas a tentar acompanhar tudo à distância, não dá [risos].
Ia perguntar se existia uma componente de homesickness na vossa música, mas parece que vocês já responderam a essa pergunta [risos].
[Paloma] Acho que é inevitável. Nem conseguimos disfarçar.
Como vocês estavam em Londres, muito do processo de aprimoração do EP com o Rodas e o Bejaflor foi muito à base de back-and-forth e-mails?
[Ricardo] Sim, e chamadas. Ao início, foi tudo através de chamadas. Depois houve uma altura em agosto em que nós estivemos cá em Portugal durante algum tempo e trabalhámos o máximo tempo possível no EP no estúdio deles. Foi muito mais prático estarmos ali in real time a dizer se queríamos mais assim ou mais assado. Quando voltámos para Londres em setembro, voltou a ser muito à base de chamadas e de notas deixadas em documentos Word.
[Paloma] Bué comentários nesses documentos [risos]! Mas acabámos em Lisboa.
[Ricardo] Pela altura do Natal e passagem de ano, todos juntos.
O vosso EP lida muito com as histórias da noite. Enquanto frequentadores de espaços noturnos, como olham para a despolitização de alguns destes locais nos últimos anos?
[Paloma] O que queres dizer com despolitização?
Existir cada vez mais espaços noturnos virados para um lado comercial sem ter em atenção a comunidade e a criação de um espaço seguro.
[Paloma] Não sei se me relaciono com isso porque os sítios que nós frequentamos mostram o lado totalmente oposto dessa moeda. São lados onde existe discurso político e comunidades. Foram esses sítios que me fizeram mais gostar da noite em comparação, por exemplo, com aquilo que vivi na Madeira, onde os espaços eram bué homofóbicos e misóginos.
[Ricardo] É mais politizado nesse sentido, mas se calhar também tem a ver com o facto de, tanto em Lisboa como em Londres, os locais que vamos sair são clubs queer, que são sítios bué politizados. Mesmo as Damas, onde vamos apresentar o EP, é um sítio mega politizado. Não sei é se isso está tão ligado à cena de indie sleaze e do electroclash…
[Paloma] Olha que está. O electroclash era bué queer; agora é que está um bocado desligado disso porque se tornou mais uma estética que outra coisa. O revival de indie sleaze não tem muito a ver com as origens da cena.
Vou ser sincero. Tentei ao máximo não usar a palavra indie sleaze durante esta entrevista [risos].
[Paloma] É inevitável. Estou demasiado online para evitar [risos].
Vão apresentar este EP nas Damas. Como está a decorrer a preparação desse espetáculo e, mais importante, vai haver outfits?
[Paloma] Claro [risos].
[Ricardo] Já houve muita discussão sobre outfits [risos]. Acho que vai ser fixe apresentar nas Damas. Primeiro, porque as Damas é um sítio bué fixe [risos]. Segundo, porque nós já tocamos em Londres algumas vezes e, portanto, já tivemos a oportunidade de ver o que funciona e o que não funciona. Mas em Londres, apesar de termos tido uma reação bué fixe, também sabemos que existe a barreira da linguagem. Portanto, vai ter um peso diferente tocarmos cá.
[Paloma] É muito mais intimidante para mim tocar cá do que tocar em Londres.
Porquê?
[Paloma] Por causa dessa proximidade que temos com Lisboa e em ser uma cena mais pequena. Em Londres, consegues tocar e ter uma certa distância com o público porque tens muita a acontecer. Cá, não. Há mais pressão por causa disso e também porque as pessoas percebem o que estou a dizer. Isso para mim é uma cena que me faz confusão. Em Londres, é confortável haver essa espécie de exoticismo porque não percebem o que estou a dizer.
[Ricardo] Mas acho que vai ser giro. O Rodas e o Bejaflor também vão estar mais presentes para ajudarem a preparar o set e nós queremos experimentar coisas que ainda não fizemos. Ainda temos de perceber o que dá para fazer.
[Paloma] Sim, a nível de performance.
[Ricardo] Acho que agora estamos mais confortáveis para experimentar mais.