A propósito da noite que o trompetista vai ter ao celebrar a música brasileira juntamente com a Orquestra do Norte, damos a palavra ao músico e também compositor Gileno Santana. Dele temos assistido ao crescer e à afirmação de uma das frescas e fundamentais vozes que sopram o jazz em Portugal. Tem sido a escolha óbvia do renomado Mário Costa para formar em palco Chromosome, mas também Santana como voz individual, e ainda bem recentemente, nestes dias de Setembro tocou no BeJazz, em Beja, “Miles Legacy”, um programa onde aborda, devoto, o legado de um mestre dos mestres.
Em entrevista, Gileno Santana, revela-nos o empenho e a razão para, neste momento da sua trajetória na música, ter lugar tão auspicioso programa que vai ser tocado no dia 19 de Setembro às 21h30 no Cineteatro de Amarante com a Orquestra do Norte. “Sons do Brasil” avizinha-se, neste final de Verão, como um marco para o trompetista.
Das palavras que se seguem, em discurso confesso e aberto de Santana, podemos deixar sentir a sensibilidade e sedução que traz consigo, tal como acontece quando escutamos o seu fraseado que, noutras ocasiões em palcos recentes, descrevemos como um trompete tão elegante quanto texturado.
Estarás em palco como solista com a Orquestra do Norte no Cineteatro de Amarante, que marco! Como estás a imaginar isto? Referes que “Este é um dos concertos mais aguardados da tua vida, e que estás radiante e entusiasmado por colaborar com uma das mais importantes orquestras do país”. Isso é tremendo.
Eu imagino este concerto como o culminar de todo o meu percurso enquanto intérprete em Portugal. É como olhar para trás e perceber que criei uma bonita história na música e que o meu contributo foi extremamente positivo. Estamos a falar de um músico do universo do jazz a colaborar com uma orquestra clássica para um concerto destinado a um público diversificado, de todas as idades, não apenas aos que são apreciadores de música clássica ou brasileira. Para mim, este concerto representa a soma de tudo o que busco representar enquanto artista: proporcionar música às pessoas. Por isso, considero este concerto um dos mais importantes da minha vida.
Em traços largos, que programa tão amplo é este que vai ser tocado?
Essencialmente, o repertório abrange música brasileira de várias épocas e gerações de compositores, desde Pixinguinha e Noel Rosa, passando por Tom Jobim, até Adriana Calcanhoto, como representante contemporânea dessa nova escrita de canções. Apesar das diferenças, vejo esse repertório como uma ligação que une a essência da música brasileira. Mesmo na ausência de letra, elementos fundamentais como o ritmo, a melodia e a harmonia estão bem preservados.
Podemos detalhar isso mesmo por partes? Começando com o seminal Alexandre Levy, ainda que durante o seu curto tempo de vida ligou a clássica à musica popular brasileira, dele vão tocar um andamento da “Suite Brasileira”.
Exatamente. Alexandre Levy foi, na verdade, uma surpresa para mim e para o maestro Fernando Marinho, que também não o conhecia. Quis que a Orquestra do Norte tivesse o seu momento sem mim, para mostrar o talento e o trabalho da orquestra, que abrirá sua temporada com esse concerto no dia 19. Assim, com essa abertura, a orquestra demonstra uma vertente mais ampla e moderna, ao mostrar que é capaz de tocar repertório de todo o tipo, do clássico ao popular. Apesar de ter vivido pouco tempo, Alexandre Levy deixou um grande legado na mistura do folclore com a música clássica, uma herança da Europa que foi posteriormente moldada para um Brasil também influenciado pela cultura europeia, especialmente no século XIX.
Haverá invariavelmente lugar para o pai da bossa nova, Tom Jobim, com “How Insensitive”, “Dindi” ou “Garota do Ipanema”. Mas será mesmo a bossa a música identitária do Brasil quando existe o samba?
Pois é, essa é uma questão bastante controversa. Há quem considere que a bossa nova não é um produto genuinamente brasileiro, e que MPB e bossa nova são coisas diferentes devido a diversos fatores, como o contexto político, a regionalidade e as novas técnicas de composição resultantes da fusão com o jazz americano. Na realidade, a bossa nova só se popularizou com a ajuda da indústria americana, tornando-se justo compartilhar esse género com os Estados Unidos, que ajudaram a internacionalizá-lo. No Brasil, é difícil afirmar que algum género é genuinamente brasileiro, pois muitos têm influências de fora. Por exemplo, o samba, que significa “festa”, foi trazido para o Brasil pelos escravos, e o chorinho, uma variação do samba, tem fortes influências da Rússia e da Europa Central. Basicamente, a única música genuinamente brasileira seria a música indígena. Com a chegada dos europeus e africanos, essa música se tornou parte do povo brasileiro.
Mais, ainda há a passagem ao choro de Pixinguinha com “Rosa”, “Carinhoso” e “A1 x 0”.
Num concerto como esse, não tocar Pixinguinha seria um enorme tiro no pé. Pixinguinha é o patrono do choro no Brasil e representa uma parte significativa da música brasileira, com sua mistura de géneros musicais e classes sociais. Ele deu voz à música popular e foi ouvido pela massa, contrastando com o privilégio da música erudita europeia, que era consumida apenas pelos burgueses da época. No caso das músicas “Carinhoso” e “Rosa”, temos poemas que são verdadeiras obras-primas, abordando a beleza da mulher e o amor sincero de um homem.
Um compositor menos sonante por cá, talvez, é Noel Rosa, que veio dar uma nova roupagem ao Samba numa vertente mais urbana, tocarão dele “Com Que Roupa?”.
Escolhi esta música por representar bem o samba e a ideia de que o brasileiro ainda é visto como alguém que sempre encontra tempo para a festa. No caso da música, o autor fala que deseja mudar de vida, começar a trabalhar e ganhar rumo, mas está preocupado com a roupa que vai usar para o samba. Além disso, eu sempre ouvi a minha mãe cantarolar essa melodia. O arranjo é da excelente arranjadora paulista Érica Masson.
Há ainda Ary Barroso que se notabilizou como o compositor de muitos dos temas de Carmen Miranda. Dele irão tocar “Aquarela do Brasil”.
Sim, não há uma única vez em que eu ouça essa música sem me emocionar. Ela poderia facilmente ser o hino nacional brasileiro. Espero não chorar enquanto toco essa música, pois sou bastante sensível a essas coisas. No entanto, “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso não poderia ficar de fora desse repertório, e o arranjo do Gilson Santos está incrível também.
E depois, o repertório escolhido inclui os nossos contemporâneos Adriana Calcanhoto e tu mesmo como compositor. Com “A Escolha”, intrometeste-te, e bem, no meio destes cumes todos. Que tema teu é este?
Fiquei muito feliz por o maestro ter aceitado que eu fizesse um arranjo para essa música, que eu tenho muito carinho. É uma das músicas que as pessoas que gostam do meu trabalho mais apreciam. Recentemente, fiz um novo arranjo com um quarteto de cordas e convidei o quarteto Metamorfose para interpretá-lo; o single está disponível nas plataformas digitais. Essa música carrega um pouco da essência brasileira, onde o amor e a nostalgia andam juntas. A verdadeira história do nome dessa música é curiosa: quem deu o nome foi o meu amigo Dino d’Santiago, quando estávamos no estúdio e eu mostrei a música pela primeira vez. Sou bastante ruim para nomear minhas composições, e essa ainda não tinha nome. No final da música, a melodia não resolve, deixando uma tensão que precisa de uma resolução melódica. Quando o Dino ouviu esse final, disse: “Oh mano, é ‘A Escolha’, né?” E assim, a música passou a se chamar “A Escolha”, pois o ouvinte pode escolher qual resolução deseja dar.
Uau… Como ou por quem começou esta ideia tão ambiciosa de repertório?
Na verdade, procurei aquilo que já existia escrito e gravado e, por sorte, encontrei temas incríveis como “Insensatez”, “Carinhoso” e “Garota de Ipanema”. “Insensatez” foi gravado por Roy Hargrove no álbum Moment To Moment, um dos discos mais bonitos do Roy, no qual ele toca apenas baladas com uma formação de cordas. Quando o Gil Goldstein me enviou esse arranjo, quase não acreditei, pois arranjos de renome mundial como esse costumam custar muito dinheiro. Para minha sorte, o Gil deve ter gostado tanto de mim que me ofereceu esse arranjo, e percebi que talvez ele soubesse para quem estava entregando essa preciosidade. O arranjo de “Carinhoso” é do lendário Nelson Ayres, pai de toda uma geração de compositores e arranjadores brasileiros. É um arranjo lindo que me lembra um pouco Debussy, com conceitos do impressionismo. “Garota de Ipanema” foi arranjada pelo incrível Alexandre Mihanovich, uma das maiores referências do Brasil como arranjador e guitarrista.
Este programa é um passar em concerto de boa parte da história da música brasileira. Fica a faltar sempre alguém numa história impossível de contar apenas num concerto. Talvez falte um Hermeto Pascoal, mas isso é uma outra musicalidade… A propósito disso, como é ser agraciado por esse grande mestre com o elogio sincero de “Gileno já nasceu músico”?
Bem, o Hermeto é um daqueles casos que transcendem a música brasileira, pois é impossível catalogá-lo. Hermeto é o próprio Hermeto; talvez possamos chamar isso de música hermetiana?
Talvez…
Hermeto é o Brasil todo reunido em uma mente onde a linguagem é o som. Sou um dos sortudos que tem uma composição dedicada especificamente a mim, que está emoldurada em um quadro no meu escritório e que olho todos os dias. Um dia depois do concerto, em que o Hermeto disse a célebre frase “esse aí já nasceu músico, já nasceu música”, o meu manager, na altura, informou-me que o hotel ligou para dizer que o Hermeto Pascoal tinha deixado algo em meu nome e que eu precisava ir buscar. Para minha surpresa, era uma composição intitulada “Para Gileno Santana.” Esse foi o melhor elogio que recebi até hoje, pois acredito verdadeiramente que já nasci músico, pela forma como encaro e respeito a música. Por isso, acho que o Hermeto estava absolutamente certo.
Para ti, vindo do Brasil para Portugal para prosseguires na música, isto é como fazer uma ponte com as tuas origens, ligando-as ao teu presente a olhar para um futuro próximo, como músico e como compositor e pedagogo também. Estou certo?
Exatamente, este concerto é um marco por várias razões. Como luso-brasileiro, passei por diversas etapas, e a adaptação não foi fácil para um jovem prestes a completar 18 anos, sem suporte familiar, num país com uma língua e costumes diferentes. Até brinco que, para ingressar no mestrado em ensino, tive de fazer um exame de português na FLUP, e fiquei mais feliz por ter passado nesse exame do que por ter terminado a minha licenciatura. A dificuldade para um brasileiro fazer um exame de português em Portugal é extrema. O público em geral não tem noção disso, mas a adaptação da escrita e da fala para um brasileiro é bastante desafiadora. No Brasil, já ouvi críticas dizendo que “o Gileno renegou o Brasil e fala português de Portugal”, como se fosse algo depreciativo, mas não entendem que essa adaptação foi crucial para a aceitação dentro de uma sociedade com costumes diferentes. Por isso, aconselho a todos os brasileiros: aproveitem a oportunidade de viver em Portugal para ler mais, aprender sobre a cultura portuguesa, escrever mais e falar de forma que se encaixe na comunidade portuguesa. Isso trará muitos frutos. Quanto à docência, é uma paixão que tenho desde criança. Sou curioso por natureza e adoro enfrentar problemas de alunos para encontrar soluções. Enquanto docente, sou adepto do construtivismo, onde acredito que o aluno deve ter uma voz ativa. Vejo-me como um facilitador e auxiliador, ajudando a potenciar as qualidades do aluno e depois permitindo que ele voe por conta própria.
Vais ser solista e estarão também outras vozes que se podem individualizar no concerto como João Ferreira (piano), Gonçalo Cravinho (contrabaixo) e João Cunha (bateria). Será como que um quarteto de jazz junto à orquestra, é essa a ideia? Podes descrever um pouco estes músicos? Têm tocado contigo noutros contextos?
Sim, essa condição foi imposta por mim. Queria ser eu a escolher o trio que me acompanharia, com a condição de que fossem jovens da nova vaga de talentos portugueses. Acredito que para o João e o Gonçalo participar deste concerto será uma grande experiência. O João Cunha é um profundo conhecedor da música brasileira; não é por acaso que é o baterista do Ivan Lins sempre que há tours na Europa. É importante apoiar os jovens e oferecer essas oportunidades. Embora fosse relativamente fácil convidar grandes nomes do panorama nacional para este concerto, para mim, os nomes do João Ferreira e do Gonçalo Cravinho são os que fazem realmente sentido. O João Ferreira é um músico que me surpreende imenso neste momento. Recentemente disse-lhe: “João, sou um grande fã teu.” O motivo é que ele toca apenas o que ouve, não é reativo, mas contemplativo. Nos momentos em que se sente mais desconfortável à procura de algo, é quando os resultados são mais incríveis. Realmente, é um grande talento. Se ele também se preocupar com áreas fora da música, como, por exemplo, ser responsável e ter uma visão global sobre viver em sociedade, tenho a certeza de que será um dos maiores nomes do piano em Portugal. Digo isto sem receio de errar. O Gonçalo Cravinho, por sua vez, é um contrabaixista com formação em contrabaixo clássico que decidiu começar a estudar jazz. Ele é um dos fundadores do projeto OCENPSIEA e vê a música de forma bastante plural, algo que aprecio muito num músico. Já não tenho paciência para detentores soberanos do jazz português; por isso, sempre procurei tocar com músicos que tenham uma visão abrangente da música. Gosto de saber o que eles ouvem e estarei sempre rodeado de músicos com esse espírito. Fico triste quando ouço comentários de músicos jovens dizendo que X ou Y não toca jazz. Além de demonstrar falta de profundidade intelectual, isso é um sinal claro de quem não compreende o verdadeiro sentido do jazz.
Por que campos vai passar a tua música além desta combinatória orquestral que motivou esta entrevista? Quais os teus planos no futuro mais próximo?
Estou a preparar o meu álbum com um quarteto de cordas, composto por músicas originais que trazem influências da música clássica. Este trabalho foi fortemente inspirado pelo meu percurso académico, especialmente pelo recital final do meu mestrado em trompete clássico. Além disso, o álbum também incorpora elementos da música árabe, fruto de uma digressão que fiz na Jordânia. Este próximo álbum representa o Gileno no seu estado mais autêntico, uma fusão das minhas experiências de vida traduzidas em sons, em música.
Quanto ao futuro, não faço a mínima ideia do que irá acontecer. Estou à espera, de coração aberto, para aceitar o que a vida me trará. Nesta fase da minha vida, sinto-me em paz com o que realizei e com quem sou. Agora, o foco é aprender a viver e receber o que a vida tem para me oferecer.