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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/12/2025

O documentário realizado por João Miller Guerra marcou os últimos meses.

Ghoya e a sombra de um Complô: “É um assunto maior do que eu, é uma realidade vivida por milhares de pessoas”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/12/2025

Com estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Marselha em Julho, estreia nacional no Doclisboa em Outubro e chegada aos cinemas comerciais em Novembro, Complô tem sido um dos acontecimentos culturais da segunda metade de 2025. Realizado por João Miller Guerra, é um documentário que se centra em Ghoya, rapper que o Rimas e Batidas entrevistou no início deste ano após compilar e lançar oficialmente os principais temas do seu repertório em Pa Sempri Djuntus.

Aquilo que começou como um filme sobre a sua música e processo criativo acabou por se tornar algo maior até porque as suas vivências e perspectivas sociais e políticas estão bem patentes nos seus versos, não sendo possível (ou até desejável) separar as duas dimensões. Complô acaba então por também abordar o caso de Ghoya enquanto pessoa nascida em Portugal que nunca conseguiu ter direito à cidadania portuguesa, o que representa grandes entraves na sua vida esta é a realidade de milhares de afrodescendentes, de várias gerações, que enfrentaram e continuam a enfrentar grandes desafios para regularizar a sua situação. 

No início deste mês, Ghoya lançou o EP Caixa Negra, a banda sonora de Complô ou seja, o resultado final das músicas que o vemos a construir durante o documentário, gravado em duas fases, entre 2019 e 2023. Mais do que tudo, são uma verdadeira trilha sonora das vivências deste rapper, um dos nomes mais influentes e interventivos do rap feito em crioulo cabo-verdiano, que promete outras novidades musicais para breve. Aliás, já foi divulgado o teaser de um próximo single, “Cunfia”.

O Rimas e Batidas entrevistou o realizador João Miller Guerra e o protagonista Ghoya sobre Complô. O filme foi notícia nacional após a detenção de Ghoya numa das sessões de exibição, em Setúbal, no final de Novembro, o que só reforça a relevância do documentário — por motivos legais, não abordámos o assunto durante a entrevista.



João, como é que conheceste a história do Ghoya e o que te levou a querer fazer este filme? Qual foi o ponto de partida? 

[João Miller Guerra] Então, eu conhecia o Bruno mal, mesmo muito mal, só de raspão. E esse raspão deu-se num filme chamado Li Ké Terra, um primeiro documentário que fiz com a Filipa [Reis] e o Nuno [Baptista], filmado em 2009. Nesse filme, o Bruno já andava nesta vida difícil, na altura fugido da polícia. Por razões, para não variar, sempre absurdas. Mas, ainda assim, deu para gravar uma cena que está no filme, uma coisa pequenina com ele a cantar e o irmão dele, mais novo, a ouvir. Esse poder deste cantar, desta revolta do Bruno, ficou comigo. Continuei depois a trabalhar em bairros e ligado a uma data de pessoal que venerava o Bruno e que tinha o gajo em excelente consideração, uma espécie de Tupac português. Continuei a ouvir os sons dele e os de outros músicos, outros rappers, e apresentei um projecto na RTP para fazer um documentário sobre rap crioulo. Nessa altura, soube que o Bruno já estava preso. Fui mais ou menos acompanhando a vida do Bruno à distância, através dos irmãos e da família. Conheci a mulher do Bruno e a filha. Depois de apresentar esse projecto de documentário, alguém me disse no bairro da Boba, onde eu continuava a parar, que o Bruno tinha saído. E eu fui atrás dele, contactei-o. E ele disse-me sim, claro que sim, “a minha voz pode ser uma voz de exemplo a pessoal que também viveu coisas parecidas”, e assim começámos. O intuito era fazer um documentário sobre o rap do Bruno e depois acabou por ser mais do que isso. Tornou-se um retrato e veio uma pandemia pelo meio que nos afectou a todos. E com esta história toda também nos fomos conhecendo, houve momentos de pausa do filme mas mantivemos a relação.

Ghoya, como é que recebeste esta proposta do João para o filme? Porque é que achaste que era importante mostrar a tua história em prol de um bem maior, suponho, mesmo expondo a tua vida e as tuas vulnerabilidades?

[Ghoya] Como o Miller estava a dizer, começámos a trabalhar numa cena sobre a minha música, sobre a minha caminhada, sobre a cena do rap crioulo. Só que, muito facilmente, tornou-se uma cena transversal, porque a minha música já aborda em si estas questões. Então, muito facilmente vimo-nos no meio disto, mesmo que não fosse a intenção. E foi fácil percebermos que estávamos a falar de um assunto que é muito maior do que a minha individualidade, que é uma realidade infelizmente vivida por milhares e milhares de pessoas como eu, que ainda o vivem, e aliás é um dos temas que está na ordem do dia no nosso país. Então, foi fácil tornar-se algo maior do que a minha carreira ou do que aquilo a que inicialmente nos tínhamos proposto a fazer. E chegámos a este produto que é actual, apesar de muito antigo, e queremos abrir debates no espaço público para que este assunto tenha o devido reconhecimento. Mas, acima de tudo, para que seja solucionado de alguma forma.

Até porque, como disseste, é um assunto muito antigo mas que está invisibilizado há muito tempo, desde sempre. A rodagem aconteceu em que período?

[JMG] Começou em 2019 e foi até 2023. Teve duas fases, houve uma altura em que esteve parada. Ou seja, nós começámos a filmar com esse dinheiro da RTP, o Bruno já estava a ir a estúdio e queria fazer este álbum que vai sair agora. Depois, entretanto, a pandemia afectou-nos a todos, mas fiz uma montagem do material que tinha e entreguei ao Instituto do Cinema e Audiovisual [ICA], a pedir um apoio para a finalização. Recebemos um bocado mais de dinheiro e conseguimos voltar à rua e filmar, voltar ao estúdio e continuar. Conseguimos parar em 2024 para montar, o filme ficou pronto este ano e estreámos em França. E agora saíram as quatro músicas do filme, as quatro músicas que estão a ser tratadas durante o filme.

E a ideia de lançar estes temas em conjunto surgiu durante o desenvolvimento do projecto do filme ou já havia esta intenção da tua parte, Ghoya?

[G] Já existia a ideia de se lançar os sons, mas, mais do que um EP de quatro músicas, estávamos a trabalhar até em mais. Só que fazia sentido associar o Caixa Negra ao trabalho cinematográfico, como eram as músicas em que estávamos a trabalhar durante as filmagens. Acho que é importante até para não sairmos muito do contexto daquilo que é o Complô. Qualquer pessoa que oiça vai reconhecer as músicas do filme. 

E uma delas acabou por dar o nome ao filme. Falando do processo de filmagens, imagino que tenham sido muitas horas de rodagem para captar momentos e fazer este retrato do Bruno e da sua vida.

[JMG] Sim, completamente. Voltando um pouco atrás àquilo que o Bruno estava a dizer, porque é de facto o alimento principal deste filme, eu quando o abordei estava à espera, obviamente, de captar sessões de estúdio. E vou para o estúdio com o Bruno quando ele está a gravar. Eu já sabia, obviamente, que uma música como o rap muitas vezes é de intervenção, com letras ligadas à experiência pessoal da pessoa, e que são sempre sobre assuntos super pertinentes e que estão na ordem do dia, que afectam a vida das pessoas que cantam estas coisas. E as pessoas que estão à sua volta, não só a pessoa que canta. Isso depois começou a ser um bocado o tema das conversas. Ou seja, o Bruno, por exemplo, estava a gravar esta música “Complô”, e eu percebo crioulo mas não completamente, e havia que perceber efectivamente quais eram as letras. Eu assisti à construção das músicas, ao nascimento dos refrões, portanto a minha preocupação inicialmente era muito estar em estúdio e filmar o processo de trabalho do Bruno. Depois, começou a ser importante perceber também fora do contexto do estúdio ou mesmo no contexto do estúdio, com a equipa pequena com que trabalhei e que também está habituada a estas questões que atravessam estas pessoas, várias gerações que foram afectadas por estas leis de imigração completamente absurdas — qual era o estado actual do Bruno depois de ter saído da prisão. Como é que tinha sido essa relação com a prisão, o que é que efectivamente se estava a passar, como é que estava a vida pessoal dele em relação aos filhos e aos familiares. Como é que estava o processo de legalização ou a impossibilidade de se legalizar. Ou seja, acompanhei os dois anos de pena suspensa e tudo isto eram questões que iam sendo conversadas por nós, no caminho para o estúdio ou no regresso. E começaram, naturalmente, também a fazer parte das conversas do filme. Às tantas percebi que era normal que eu aparecesse no filme, porque o Bruno ia falar destas questões que vinhamos a falar no carro ou que estávamos a falar antes de começar a filmar. O estúdio era pequeno, também me pareceu normal que não estivesse a fazer grandes esforços de enquadramento para não ter lá a pessoa do som com a perche. E tivemos a sorte de contar com estas três pessoas, a minha equipa é mais ou menos sempre a mesma a Daniela [Soares], o Vasco Viana, que também é guitarrista dos TV Rural , é tudo gente ligada à música e a estes temas que se cantam nas músicas do Bruno. Ficámos sempre muito por dentro da vida uns dos outros. E tornou-se normal que estas pessoas aparecessem também, que o Vasco tocasse uma guitarra, que a Daniela tentasse ajudar burocraticamente estas questões nas instituições. E o projecto acabou por se tornar esta espécie de cebola, em que vais descascando as layers, e na verdade estamos aqui todos a gravitar à volta do Bruno, destes sons e sobretudo da mensagem que o Bruno passa nas músicas.

Certo, quiseram assumir essa presença e como a música do Ghoya se entrelaça tanto com a sua vida, nem fazia sentido separarem as coisas.

[JMG] Sim, não fazia sentido, foi uma coisa muito orgânica e fomos-nos dando todos muito bem. O Bruno também tem uma relação muito antiga com o gajo que faz os beats, o dono do estúdio, o Edietox, portanto, havia de facto um grande à vontade e nós fomos bebendo e comungando e partilhando deste à vontade. E assim nasceu o filme, ao longo destas sessões que depois não eram só de estúdio, porque o filme também tem momentos em que o Bruno vai falar com as instituições e perceber em que lugar é que está e em que sítio é que se encontra a sua vida fora da música.

Também é um documentário que demonstra, de forma nua e crua, o processo criativo de um rapper. Ghoya, as letras estão-te a vir à cabeça e nós quase que o estamos a visualizar. Já estavas claramente à vontade com a câmara, o que também deve ter sido importante para ti, e suponho que também seja interessante, na tua perspectiva, teres este retrato cinematográfico do teu processo criativo. 

[G] Um gajo até se esquecia que estava a ser filmado. E o processo criativo acontece de várias formas. Naquele contexto, aconteceu assim, mas não tem que ser uma cena exacta. É como o Miller estava a dizer, é uma cena tão orgânica, um gajo está ali simplesmente a ser o que é e as coisas acontecem. E deixa-se levar pelo contexto do momento, por aquilo que se está a passar.

E por isso é que agora é valioso as pessoas poderem ouvir o resultado final dos temas que viram literalmente a ser criados no filme. Como é que tem sido a recepção e o impacto do filme para vocês? Sentem que contribuíram de facto para que o tema, que é muito maior do que a vida do Bruno, esteja mais presente no espaço público?

[JMG] Sinto que sim, sinto que é fundamental que este e outros filmes, outros livros e tudo o que se possa fazer à volta destes assuntos, gerem esse debate. Uma coisa que para mim foi estranha, porque trabalho nestes contextos há muitos anos, é a quantidade de pessoas que não sabe que esta lei existe. E que não sabe que existem pessoas afectadas por isto. Tive várias pessoas, no final das sessões, que vieram ter comigo… Inclusive uma tia minha, que hoje tem 80 anos mas foi assistente social durante uma data de tempo e que me veio dizer que não sabia que isto se passava. Há um grande desconhecimento, a própria questão é muito guetizada porque só afecta as pessoas pobres. As pessoas ricas vão lá, pagam e resolvem a situação. É sempre muito mais fácil serem atendidas. Mas isto afecta uma franja da população e este pessoal não tem visibilidade. Isso fez-me imensa impressão. O filme correu super bem em sala, para um filme português, e o que aconteceu na estreia fez com que o filme se politizasse imenso, com esta vergonha da nossa polícia portuguesa. No Doclisboa tivemos sala cheia, temos tido bom feedback de escolas, várias pessoas que estão a seleccionar o filme para que seja visto em turmas de miúdos. Tudo isto é positivo e, agora, francamente, a minha ideia é libertar o filme para o máximo de plataformas possíveis. Nomeadamente o YouTube e o Facebook, porque isto é um filme que não pode ser fechado às pessoas que têm uma fidelização com um canal ou uma plataforma, seja a Netflix ou a Filmin. Isto é um filme que tem que estar aí a rodar, ninguém paga para ver e o que interessa é que se saiba e se fale sobre isto e se tome consciência de que isto ainda acontece.

E há outro tema que também é abordado no filme através de um discurso muito forte do Ghoya que é a realidade das prisões em Portugal, outro assunto muito invisibilizado no espaço público.

[G] O filme levou-nos a vários subtemas, porque é um assunto que leva a muitos outros. E sem dúvida que é importante falar sobre isso. Nós crescemos numa sociedade com determinados valores e onde aprendemos que os fragilizados são sempre as pessoas que mais precisam [de apoio]. As pessoas que foram presas foram condenadas, estão sob a tutela e a responsabilidade do nosso Estado, mas, atenção, essas pessoas são cidadãos. Tal como o pessoal que está nos hospitais, ou os idosos, sem querer fazer grandes comparações, estão completamente indefesos. São grupos que estão completamente à mercê daquilo que o Estado pode ou não fazer. E verifica-se muitas vezes eu verifiquei isso toda a minha vida que muitas vezes o Estado falha com essas pessoas. Então, acho que as pessoas conseguem imaginar o quão o Estado tem estado a falhar, de forma sistemática, com essas pessoas. O que sempre me incomodou bastante, até porque estou muito familiarizado com esta questão, é que quando a malta vai de cana… É como se perdesses os teus direitos, acabas completamente desumanizado. E isso acontece de várias formas. Vamos de cana, é suposto sermos confrontados com uma realidade em que aprendemos, da qual podemos beber, para mais à frente podermos reflectir essas aprendizagens na sociedade na qual vamos estar inseridos.

No filme usas a óptima metáfora da prisão como suposta oficina de homens: as pessoas são detidas para alegadamente corrigirem o que é preciso e aprenderem e reflectirem, para depois mudarem os seus comportamentos, mas muitas vezes saem de lá com os problemas agravados.

[G] E esse é um dos slogans que nos vendem quando entramos de cana: “não estamos aqui para condenar, vocês já foram condenados, vejam isto como uma oficina de homens”. E um gajo que está consciente das suas cenas, mesmo que não seja naquele momento, um dia mais à frente aquilo vai fazer luz na tua cabeça. Só que acontece um choque quando te deparas de uma forma brutal com os representantes dessa sociedade em que estarás inserido amanhã… São pessoas que perpetuam ilegalidades, que perpetuam todo o tipo de violência, a pessoas que estão completamente indefesas e à sua mercê. E muitas vezes, quando falamos disso, isso é visto como “falham e ainda estão a reclamar”, como se estivéssemos a vitimizar-nos. O Estado não pode justificar-se com a falta de responsabilidade dos cidadãos. Vamos supor que nós os três falhámos nas nossas responsabilidades enquanto cidadãos. Isso não deveria dar ao Estado, aos órgãos de soberania do nosso país, qualquer tipo de legitimidade para não ter responsabilidade nas coisas que tem de ter. E isso vê-se muito facilmente quando entras de cana. A maioria da malta nunca trabalhou, abandonou a escola muito cedo, e também se encontra no limbo em que eu me encontro. Nasceram aqui, formaram-se aqui como pessoas ou como profissionais, fizeram toda a sua vida aqui, muitos deles não conhecem outro sítio sequer… No entanto, somos cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses, brasileiros, angolanos… E não há problema nisso, nós temos essa ascendência, que sempre foi reconhecida. Aliás, a nossa ascendência é a única coisa que nos é reconhecida. Porque a nossa cidadania, enquanto cidadãos portugueses, desde a nascença, é-nos negada. Como se isso não fosse suficientemente grave, a maioria de nós vivemos em comunidades onde a tendência e a probabilidade para a criminalidade é maior do que nos outros sítios.

Até porque tudo isso está interligado: uma pessoa que nem é reconhecida como cidadão tem mais dificuldades em ter uma vida integrada na sociedade.

[G] E quando somos presos somos ainda mais marginalizados, quando à partida já estamos excluídos. Estamos a ser condenados e julgados mais do que uma vez, somos julgados e condenados toda a nossa vida. E cada coisa agrava ainda mais essa questão, é sempre utilizada para agravar mais. Já estamos aqui há 40, 50 ou 60 anos, isto não aconteceu só com a minha geração, aconteceu com a geração antes da minha, aconteceu com a geração a seguir à minha e continua a acontecer. Dentro de uma família, quatro ou cinco irmãos, cada um com uma realidade diferente sobre essa questão. Um é cabo-verdiano, o outro já é português, o outro está à espera, mas o outro só pode ter residência porque já comeu cana e nasceram todos no mesmo hospital.

E o impacto geracional, familiar, social, que essa realidade gera é quase incalculável, não é? E também pouco abordado. 

[G] Sem dúvida, acho que é inegável… Devemos olhar para essa questão de uma forma sincera e reconhecermos que o facto de termos cidadãos na nossa sociedade, no nosso país, já há décadas e décadas, a quem essa mesma cidadania não é reconhecida… Porque eu nasci no Hospital de Santa Maria [Lisboa], mas sou cabo-verdiano, e há aqui uma dualidade e cria uma confusão. Porque ser cabo-verdiano não tem que ser impeditivo de ser português e vice-versa. A maioria da malta que está nessa situação facilmente poderia ter dupla nacionalidade. E isto não deveria ser entrave em lado nenhum, até porque nós somos um povo que emigra. Quando vamos para a Suíça, não deixamos de ser portugueses porque somos suíços. As duas coisas podem coexistir e não se anularem de forma nenhuma. Mas nós estamos nesse limbo há décadas e décadas e décadas e as pessoas a fazerem de conta que o não reconhecimento dessa cidadania não faz diferença na nossa vida. Faz muita diferença na nossa vida, porque eu tendo apenas a cidadania cabo-verdiana reconhecida, por exemplo, se quiser ir daqui para Espanha, não posso. Posso ir, mas sempre sob o risco de não voltar a entrar no país, o único que eu conheço. Não fui à estreia do filme em França exactamente por causa dessa situação. Quero tirar a carta de condução, mas também não posso. E depois darem a entender que isto não é um entrave à nossa vida… Como se quiséssemos a documentação para ir para aqui e para ali, para fazer isto e aquilo. Estamos só a exigir ao nosso Estado, que tem responsabilidades nesta questão e não é de agora, que se encontre uma forma, juntos, para solucionar isto. E não fingirmos que não tem influência na vida das pessoas a quem isto toca. Isto afecta a nossa vida todos os santos dias.

[JMG] Há uns dias comprei bilhetes para as minhas filhas irem ter comigo a Amarante. Quando estás a comprar o bilhete, aparece-te um sítio para pores o número do cartão de cidadão ou de residente. Ou seja, se não o tiveres, nem na CP viajas. Não dá sequer como ires para mais sítio nenhum. Até porque hoje em dia está tudo ligado. Se tu não tens uma identidade, todos os serviços online de todas as coisas a que tu possas querer aceder estão-te completamente vedados. É como o irmão do Bruno dizia no Li Ké Terra há 20 anos: “sem documentos, somos um papel ao vento”. És um papel ao vento, uma merda que não vale nada. Tu és mesmo uma coisa que está sujeita a tudo. A voar para aqui, a voar para ali, a voar para lá. Qualquer trabalho que arranjas, arranjas o trabalho com um gajo que te está a empregar, mas sabe que não tens como te ir queixar a lado nenhum. Portanto, no fim do mês, se ele não te pagar, trabalhaste um mês e tu não existes para fazer uma queixa a lado nenhum, o gajo só não te pagou. Ou seja, isto é muito grande. E o Complô é exactamente isso. 

É avassalador: como disseram, é uma questão estrutural e, acrescento eu, agora o clima político ainda está pior nesse sentido. 

[JMG] Pois está, infelizmente. Este filme ganhou uma relevância política muito grande. Quem me dera a mim que este filme fizesse menos sentido, mas, infelizmente, ele faz cada vez mais sentido. Aquelas conversas todas, quando foi a morte do Bruno Candé e toda essa questão que já foi há não sei quantos anos, onde é que nós estamos agora? Onde é que estamos agora? 

[G] Falaste no Bruno Candé e isso lembra-me, no filme, um gajo tocar nessa questão de sermos povos irmãos, não é? Estamos a falar de povos e de uma sociedade com quem temos uma ligação histórica de séculos e séculos. É exactamente com esse grupo de pessoas que esta cena está a acontecer. E isso ainda faz menos sentido. 

[JMG] O Público tem um grande documentário da Joana Gorjão Henriques disponível, chamado Racismo: uma Descolonização em Curso. E no filme vês de onde é que isto tudo vem e como é que a gente vive com essa ideia do português bonzinho que emigrou para as colónias. Continuam a achar que foi brando. Essa conversa durante séculos que foi feita aos nossos avós e aos nossos pais e que nos fizeram a nós também de que, na verdade, foi tudo tranquilo… É ir ver esse documentário que tem uma hora com imagens de arquivo e com pessoas que passaram por isto. E a maior parte dos testemunhos são brancos, os retornados. São aqueles que ficaram depois com a culpa de terem sido os racistas. E essas pessoas foram as que estiveram lá e que viram com os seus próprios olhos o que era aquela sociedade a funcionar. Vale a pena e são trabalhos destes que são muito importantes de serem feitos, de serem vistos, de serem mostrados nas escolas, de mudar este paradigma de as pessoas continuarem a acreditar que correu tudo bem. 

[G] É como se estivéssemos a viver numa sociedade que não tivesse outra realidade para ver além daquela que é mostrada. Porque acho que está também muito nas nossas mãos, o pessoal das artes, o pessoal do cinema, o pessoal que tem alguma influência e algum tipo de poder e decisão junto dos seus pares, trazermos este tipo de assunto cada vez mais à baila. Não fazermos disto um assunto de um determinado grupo de pessoas, porque isto é um assunto nosso, muito geral… Daí ser cada vez mais pertinente falar disto, porque estivemos tanto tempo a meter isto para o cantinho do prato que deixaram de haver cantinhos. Agora está aqui tudo aglomerado e quase dá a entender que isto é novo. Mas lá está, nunca foi novo. Há muito tempo que não é novo. E agora torna-se cada vez mais difícil combatermos isso exactamente porque fazemos ouvidos moucos. E deu nisto. 

São temas que te interessa continuar a abordar enquanto realizador, João?

[JMG] Sim, são temas pertinentes que fazem parte da minha vida, de alguma maneira. Fazem parte do meu grupo de amigos, de pessoas que conheço e com quem me dou. E acho que o Bruno tem toda a razão. Estes assuntos têm de deixar de ser só debatidos pelos mesmos. Pessoas que vivem noutros contextos também têm em elas próprias o dever, até o prazer e a determinação de querer e poder falar sobre isto para que outras pessoas que estão noutros lugares possam também ouvir falar disto. Para que se perceba que estas coisas são inaceitáveis. Sim, acho que vou continuar por aqui.


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