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Fotografia: Inês Abreu
Publicado a: 10/05/2025

Fomos ao Armador ouvir o som do futuro.

GeraJazz antes do concerto no Amadora Jazz: “Descobrir o jazz foi como descobrir a pólvora”

Fotografia: Inês Abreu
Publicado a: 10/05/2025

O ensaio está marcado para uma tarde invernosa de domingo na Escola Básica do Armador, ali ao pé da Bela Vista, em Lisboa. No café da praça nas imediações, onde várias pessoas daquela diversa comunidade aproveitam o sol tímido conversando na pequena esplanada, cumprimentam-nos com um caloroso “boa tarde vizinho, que vai ser?”. E apesar de ser dia de folga para alunos e professores, poupando aquele estabelecimento de ensino à habitual e natural azáfama dos dias de expediente, percebe-se alguma agitação nas imediações, entre carros que estacionam e gente mais miúda que sai com malas de instrumentos a tira-colo. Para essa tarde, está programado mais um ensaio da Orquestra GeraJazz, o colectivo que amanhã, domingo, dia 11 de Maio, encerra mais uma edição do festival Amadora Jazz com uma apresentação no Auditório do Cineteatro D. João V (às 16h00).

Eduardo Lala, maestro, está já em pleno labor quando entramos na grande sala onde, noutros dias, os alunos ali fazem exercício e se entregam a múltiplas actividades desportivas. O jogo hoje é outro: de harmonização da secção de metais, de encaixe no groove da secção rítmica, de afinação das vozes que ensaiam ataques a vários standards. “Este projecto”, diz-nos, em conversa, o maestro, “tem um propósito definido, o da integração social destes jovens. Não queremos só que aprendam a tocar. Usamos a dinâmica da orquestra para lhes transmitir noções de organização, de disciplina, de trabalho em conjunto. Uma orquestra é uma espécie de pequena sociedade”.

Nascida no seio da Orquestra Geração, esta GeraJazz tem um swing bem diferenciado. Percebe-se que há um esforço para captar jovens de diferentes origens, de diferentes contextos sociais, incluindo raparigas e rapazes afro-descendentes, fruto de um intenso trabalho que a Geração vem fazendo junto de escolas e comunidades desde 2007, primeiro na Amadora e depois indo bem para lá dos limites do concelho ao ponto de hoje ter uma dimensão praticamente nacional. “A Geração”, explica-nos Eduardo Lala, “nasceu no Bairro Casal da Boba, mas expandiu-se muito ao longo dos anos e hoje conta mais de 1500 beneficiários”.

Foi o trabalho específico com a secção de sopros da Orquestra Geração, mais orientada para reportório erudito, que abriu as portas à exploração do universo do jazz e que levou à criação desta Gerajazz, uma orquestra dentro de outra orquestra. Para manter vivo este organismo musical pulsante, explica-nos Eduardo Lala, há uma complexa rede de financiamentos: “Programas municipais das autarquias da Amadora, Loures, Lisboa, Oeiras, Sesimbra, por exemplo, que são territórios em que trabalhamos. E também algumas da zona centro. Planeamos também abrir uma ‘delegação’ em Évora. E há planos para formação de núcleos em São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau, através de programas do Instituto Camões”. No arranque desta história, esclarece ainda o pedagogo, fundos obtidos junto da Fundação Gulbenkian e outros junto do governo foram igualmente importantes para sustentar os objectivos programáticos da Orquestra Geração.

Esses objectivos são baseados no El Sistema, um método criado na Venezuela em 1975 que depois teve forte implementação na Europa e que procura, através da musica, trabalhar a inserção social de acordo com um muito claro conjunto de valores e princípios que sustentam uma actividade continuada, a procura da excelência, a valorização individual, a integração social, sobretudo junto de jovens oriundos de contextos desfavorecidos. “A orquestra é uma comunidade”, explica Eduardo Lala. “Queremos que estas crianças e jovens aprendam a estar em grupo, que aprendam organização e disciplina, que sejam dotados de recursos que lhes permitam montar projectos”. Exemplo claro disso são combos já formados dentro da GeraJazz e algumas carreiras profissionais já activadas a partir de talento ali formado.

Justificadamente orgulhoso, o maestro enumera casos específicos, como o de Jacqueline, uma jovem violinista saída da Orquestra Geração que seguiu para Londres para fazer o seu mestrado na Gulidhall School of Music & Drama, ou de Maria, trompetista, que está neste momento na Escola Superior de Música de Lisboa e que “já está no mercado de trabalho”, ou ainda de Ester, a violoncelista que em 2024 foi distinguida com o Prémio Jovens Músicos: “Queremos que eles e elas voem”, garante Lala. E há igualmente orgulho em alunos formados no seio da Geração que depois se tornaram, eles mesmos, docentes, transmitindo às gerações seguintes os princípios com que foram educados.



Tal como sucede na efervescente cena londrina, em que instituições formais como a Royal Academy of Music, a já mencionada Guildhall ou o Trinity College foram fundamentais na formação de talentos que hoje têm alcance internacional, como acontece com Nubya Garcia ou Shabaka Hutchings, também em Portugal a academia é fundamental para formar os músicos do futuro. Continuam, no entanto, a ser escassos os casos de músicos afro-descendentes no meio estabelecido do jazz nacional. Eduardo Lala acredita que uma das razões para tal facto se deve ao Jazz ser uma disciplina relativamente recente na nossa rede académica. O que só reforça a importância do trabalho que a GeraJazz tem vindo a desenvolver. 

João, um jovem baixista de 24 anos vindo de Sacavém e presente na sessão de ensaios na Escola do Armador, explica-nos que começou na Geração a estudar tuba, mas que se apaixonou pelo jazz e mudou para o baixo eléctrico. “Quando descobri o jazz foi como se tivesse descoberto a pólvora”, diz-nos, sem esconder o entusiasmo. A sua ascendência angolana alimentou-lhe ainda a curiosidade pela música africana e quando o questionamos se foi ouvir os clássicos Angola 72 e Angola 74 de Bonga, responde-nos que está mais obcecado com a música do Zimbabwe, especialmente de Oliver Mtukudzi: “Gosto de tudo nele, da voz, da música, da mensagem. Tenho aprendido muito a ouvi-lo”.

A Margarida, que tem apenas 15 anos, vem de Oeiras e é pianista, recorda como se “deixou levar pelo jazz” quando a Orquestra foi à sua escola. Depois, foi ela a responsável por inspirar Madalena, um ano mais nova e frequentadora da mesma escola, a levar a sua guitarra também para a GeraJazz: “Já tocava desde os 5 anos, sobretudo em casa, um bocadinho na escola, mas isto tornou-se mais sério quando entrei para a GeraJazz”, admite a jovem guitarrista.

Juntos, o João, a Margarida e a Madalena, e ainda a Maria, trompetista oriunda de Sintra, mais umas quantas dezenas de crianças, entre os 12 anos — caso de um jovem trombonista presente no ensaio — e os 24, preparam com afinco standards como “Afro Blue” de Mongo Santamaria, “Moanin’” de Art Blakey ou “The Chicken” de Jaco Pastorius, mas também “Bom Feeling”, de Sara Tavares. A orquestra denota o longo trabalho feito ao longo dos anos quando se atira, com bem balançado swing, a esses e outros temas, com Lala a dar especial atenção ao entrosamento entre as diferentes secções, aos ataques dos diferentes instrumentos, e à fluidez colectiva. “Temos um reportório vasto”, aponta o maestro, “e temos também dado muita atenção à música africana. É de lá que esta música vem, afinal de contas”.

Todos estes alunos — os guitarristas e pianistas, os baixistas, trompetistas, trombonistas, saxofonistas, bateristas, etc. — são apoiados com os instrumentos: “A orquestra garante o acesso aos instrumentos, alguns deles são muito caros e estão fora do alcance das famílias, mas não é por isso que os alunos deixam de poder tocar, garantimos formas de o fazerem”, sublinha, referindo que mecenas diversos ou pontuais acções de angariação de fundos são importantes para colocar os instrumentos certos nas mãos certas. Neste trabalho de desenvolvimento de todas estas jovens promessas, conta também o contacto com “craques” e Eduardo Lala enumera com orgulho as experiências já proporcionadas aos jovens músicos da GeraJazz: “Já tocaram com músicos como o Mário Delgado, o Mário Laginha, o Ricardo Toscano ou o Iúri Oliveira”, diz-nos. “É muito importante e inspirador para todos eles, mas acredito que desses encontros esses grandes músicos também retiram proveitos”.

A palavra “comunidade” nunca está longe do discurso de Eduardo Lala. A Geração é uma grande comunidade, a GeraJazz outra, mas a comunidade mais alargada que envolve os pais dos alunos, os bairros de onde são oriundos, são igualmente importantes. “Para nós esse trabalho mais alargado é fundamental. O que os jovens aprendem e desenvolvem na orquestra tem depois reflexos em casa e na rua”. João, o baixista, concorda, e conta-nos como o simples facto de ser visto com o instrumento no seu bairro já inspirou um par de vizinhos mais novos a enveredarem pela música, seguindo o seu exemplo: “Um dos meus vizinhos, inspirado por mim, acabou por entrar para a orquestra e estudar trombone. Acho que nunca tinha pensado nisso, mas nós acabamos por inspirar os mais novos. Aliás, para mim, a Maria é grande referência: aos 12 anos ela já tinha ido tocar ao Japão, algo que eu nunca fiz”, admite ele, visivelmente orgulhoso dos feitos da sua companheira trompetista.

O maestro refere que há uma atenção especial à captação de talento feminino para a orquestra, que é importante trabalhar o potencial destas instrumentistas. E os frutos desse particular investimento são bem visíveis durante os ensaios na escola do Armador. Esse entusiasmo é notório quando a orquestra se atira a “Let the Good Times Roll”, peça que Margarida afiança ser dotada de “um grande groove”. Está tudo preparado, portanto, para que amanhã o público presente no espectáculo de encerramento de mais uma edição do Amadora Jazz possa aplaudir efusivamente esta GeraJazz. Um prémio que claramente merecem depois de tão dedicado trabalho.

No caminho para casa, depois de terminado o ensaio, nos ouvidos destes jovens, nas playlists que vão desenrolar nos seus auscultadores, haverá, muito provavelmente outra música, que os ancora a todos neste plural presente e que talvez molde no futuro uma diferente percepção do jazz. A Maria diz que gosta de ouvir pop e R&B; Plutónio é uma referência para a Madalena, que nos confessa ainda gostar tanto de Tyler, The Creator, Childish Gambino e Frank Ocean como de Ella Fitzgerald ou Bill Evans. Se isto não nos deixar em estado de alerta para o futuro que está já aí ao virar da curva, é porque não andamos a olhar para o sítio certo. É que a GeraJazz soa a futuro.


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