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Fotografia: Hollie Fernando
Publicado a: 10/01/2020

Seeking Thrills é o novo álbum da artista britânica.

Georgia: “A música de dança é um meio que acolhe a diferença”

Fotografia: Hollie Fernando
Publicado a: 10/01/2020
Quando Georgia lamenta ter pouco dinheiro no single “About Work The Dancefloor”, é possível que o tenha gasto em material de estúdio. Não seria a primeira vez, recorda a cantora, baterista e produtora inglesa, que anda em digressão com os Hot Chip e aterrou em Portugal para um pouco convencional dia de imprensa. Como quem diz, uma profusão ininterrupta de entrevistas, entrecortadas pelos sentidos que dão de si, atraiçoando a sua desejada supressão. Daí que a conversa seja pontuada com o mordiscar de uma batata frita e o sorver de um chá gelado: num telhado sobre um solarengo Marquês de Pombal, tenta-se enganar a fome. E não há dissonância alguma entre a aura artística e a vida real: Seeking Thrills, o disco que vem promover, é sobre o tipo de boémia que obriga a essas satisfações precárias. Se o magnetismo da pista de dança é urgente, o sono não deixa de lhe ser adjacente; resolve-se com uma pequena sesta, uma disco nap. A necessidade de nutrição é corrigida com comida fugaz. Quando os músculos são levados ao limite, a coreografia suspende-se para permitir um breve descanso. E quando a música acaba? Vai-se em busca de mais.  A electrónica mundialmente voraz com que Georgia abriu actividade não ficou em 2015 — só mudou de prisma. Onde havia estruturas fluidas e prioridade ao design sonoro, residem agora texturas sintéticas e refrões a plenos pulmões. O novo álbum da filha de Neil Barnes dos Leftfield é uma homenagem tripartida à house da Chicago, ao techno de Detroit e à synthpop do seu país natal.  O Rimas e Batidas falou com a entusiástica Georgia sobre música de dança, a colaboração com a mítica fotógrafa Nancy Honey, expectativas baixas e como não gastar o montante de uma bolsa de estudo. Seeking Thrills, lançado esta sexta-feira, tem o selo da Domino.

Fiquei surpreendido por estares a fazer um dia inteiro de promoção em Portugal, isso não acontece muito por cá. Sentes muita pressão para conquistar a Lusitânia inteira em 24 horas? [gargalhada] Sim, eu adoraria! Aprecio muito este país, em particular Lisboa e Porto. Acho que são um povo muito receptivo de música e arte, obviamente a vossa história com arte é impecável. Poder vir cá e espalhar a palavra de Georgia — isso seria um objectivo. Agora temos de fazer a parte contratualmente obrigatória, sobre a tua história pessoal. Achei interessante que começaste a tocar bateria depois de teres jogado futebol. Quando é que a música se anunciou como revolução em ti? Na verdade, eu nasci já no seio da música. O meu pai é músico e eu cresci entre bombos e sintetizadores; no momento em que saí do útero da minha mãe, eu já era música. O futebol era algo que eu podia simplesmente fazer, mas a música foi sempre o meu objectivo. Tornei-me confiante a fazê-la com cerca de 20 anos, quando mostrei algumas canções à minha actual manager e ela achou que eram muito boas. A partir daí, considerei que poderia fazer carreira nisto. Começaste por escrever ou a experimentar com produção? Estava sempre a escrever as minhas próprias canções e fascinada por instrumentos. Aos 12 anos, deram-me um gravador de cassete com quatro pistas: dava-me a capacidade de gravar quatro elementos e introduziu-me ao mundo de gravação de som e como eu poderia concretizar as ideias que estava a ter, ouvi-las de volta. A gravação de som tornou-se uma paixão minha, que arrancou com a minha faceta de produtora. És confrontado com limitações em relação àquilo que podes gravar numa cassete, pelo que tive de pensar como um produtor, a experimentar com o som, acordes e canções, fazer versões, experimentar com caixas de ritmo — tudo começou com 12, 13 anos. Ao longo da minha educação, continuei a fazer tudo isto no meu quarto.  Não o devia dizer, mas quando fui para a universidade, gastei a minha bolsa de subsistência num computador e na licença do [software de produção] Logic. Transpus para o computador tudo o que tinha feito em analógico e acho que, nesse momento, soube que conseguia passar aquilo que idealizava para o computador, o que me ajudou a desenvolver a ideia de que consigo fazê-lo sozinha. Estou a fazê-lo desde sempre, mas tem sido uma viagem longa em desenvolvimento. Não posso deixar de reparar na tua camisola, que diz “A Woman’s Place”. Cresceste a tentar sofisticar a tua técnica; estavas contextualizada e ciente do que significa uma mulher ser produtora, numa indústria que acomoda pouco esse papel feminino? Claro, sabia que era um mundo de homens. Nesse processo de crescimento e de perceber o que eu poderia ser, senti-me magnetizada pelas mulheres desse mundo: Missy Elliott e Kate Bush, ou Joni Mitchell, sempre em controlo da música dela, Björk… Penso que elas foram as pioneiras ao mostrar que se pode ser uma mulher no campo da produção. Sempre alimentou esse ímpeto em mim, de querer estar no estúdio, e as pessoas perguntarem: “Quem é esta? O que é que ela faz?” E eu responderia “Yeah, I’m fucking killing it”. Essa garra procede da invisibilidade das mulheres nesse espaço. Recordo-me sempre da Björk a aconselhar todas as produtoras a tirarem fotografias junto da mesa de mistura, caso contrário, as pessoas não acreditam. Totalmente. Totalmente! Aquele disco da Kate Bush que ela produziu sozinha, o The Dreaming Exacto! Oh… Um dos melhores álbuns de sempre. É mesmo. Da primeira vez que ouvi, pensei mesmo: “De que outra prova precisarias?” Acho que é lamentável que as mulheres tenham sempre de estar a dar provas de si — mas disso faz-se grande arte. Não podes ter uma ou outra, tens de ter um pouco de ambas as situações. Embora seja algo infeliz de se dizer, acho que se não fosse pelo esforço e pela necessidade de me fazer valer, não estaria aqui.

Ajuda-te a superar limitações… Provavelmente, a Kate teve mesmo de se pôr à prova, assim como a Björk, a Missy, ou a Joni. Infelizmente ainda estamos nessa posição, mas é nela que criamos grande arte. A cultura de discoteca é o tema global do novo álbum. Quando é que irrompeu pela tua vida, e que papel desempenhou na tua evolução musical? A música de dança deu à minha família uma vida — uma boa vida, aliás. Sinto-me emocionalmente vinculada a esta música, de uma maneira em que sempre a compreendi, sempre me fascinou: o que é que faz com que milhares de pessoas dancem colectivamente, num espaço, e se sintam transportadas para um universo diferente? Essa ideia sempre me fascinou, porque a presenciei enquanto criança. Eu estava lá. A minha mãe levava-me, com seis anos, às raves dos Leftfield. Questionava-me: “O que estão todas estas pessoas a fazer? Porquê?!” [risos] Para este disco, houve uma parte de mim que quis entrar em contacto com as minhas raízes. Também nesse sentido, parei de beber, tornei-me vegan, perdi muito peso; fiquei consciente da minha saúde. Comecei a pesquisar sobre música de dança e onde surgiu, o que me levou a Chicago e a Detroit: como é que esta música se desenvolveu e pelas mãos de quem; as centenas de artistas, os milhares de canções que foram lançadas. Fiquei obcecada com ambos os movimentos.  Tenho uma grande curiosidade sobre como a música percorre o mundo inteiro e afecta outras culturas, e afecta a música, e faz o processo inverso, e viaja até ali e acolá. Sempre tive um grande fascínio com isso e sempre quis fazer parte disso com a minha música. De repente, comecei a cruzar os caminhos entre a synthpop britânica dos anos 80 e a house de Chicago. Estava verdadeiramente obcecada com os Depeche Mode. “Esperem lá um minuto, o Dave Gahan está na festa do Frankie Knuckles. Esperem lá, aquele é o Marian Gold com o Larry Heard! Esperem lá, ali está a Madonna com o Juan Atkins e o Jeff Mills! Os Pet Shop Boys estão com eles, e os Eurythmics!” Eles estavam literalmente a ter uma conversa musical uns com os outros.  Com essa obsessão, encontrei a direcção para as músicas. Questionei-me como é que certa música dos Depeche Mode fora número 1, o que não aconteceria nos dias que correm. Porquê? Porque as pessoas estavam sedentas por um som que fosse diferente, mas familiar em simultâneo. Não terias música pop mainstream sem a house de Chicago e o techno de Detroit.  Entrando na questão da pista de dança, tornou-se muito evidente para mim que a house de Chicago era mais que uma cena musical: era uma cena cultural e política. Nos anos 80, mas também agora, Chicago era uma comunidade completamente segregada, que não aceitava gays, negros, indivíduos LGBT, hispânicos… Era um panorama duro, mas a cena house de Chicago recebia toda a gente. Essas pistas de dança não eram apenas sítios onde dançar, eram fóruns onde as pessoas conheciam outras que também pensavam como elas, e onde se expressarem de forma livre e aberta. Essa mensagem inspirou-me imenso e tornou-se a ideia subjacente ao álbum: estas canções foram feitas para te empoderar, para te fazer sentir e fazer algo diferente, para ires à procura do que te excita — como essas pessoas fizeram. É a essência do disco. Interessante como falas de encontrar essa essência através dum caminho transcultural na música. Essa perspectiva estava patente nos samples do teu primeiro disco; na faixa “Kombine”, por exemplo. Muitos jornalistas te compararam com a M.I.A., com o Jai Paul, e agora fazes um desvio para a música de dança mais assumida. Porque a música de dança sempre foi um espaço aberto para explorar outros sons. É um meio que acolhe a diferença, tal como a música pop que é interessante: a Kate Bush estava a incorporar sons vindos de todo o mundo, técnicas que aprendia a ouvir músicos diversos. São esses os artistas… e como poderia deixar de parte a M.I.A? E, sim, o Jai é um bom amigo meu. Todos são artistas que admiro completamente, porque são ousados e estão dispostos a encaminhar os seus ouvintes para novos sons. É por isso que a Billie Eilish é absolutamente brutal: ela pegou no regulamento e deitou-o fora, e diz “quero fazer uma música punk! Agora um êxito pop! Quero adicionar aquele som e o outro de dança”. Lembro-me de, há dois, três anos atrás, estar numa loja de discos e deparar-me com a tua cara na secção de electrónica. Ohhh, não é verdade! Oh, meu Deus. Pensei que poderia soar muito interessante, então li o código de barras numa máquina ancestral — foi assim que te descobri, por força do magnetismo daquele retrato na capa. A estética sofre uma mudança neste Seeking Thrills. Como é que traduz a música? Para este álbum, tive um director criativo a ajudar-me com a arte gráfica. Um dia, estávamos sentados a pensar porque era tão boa a capa do primeiro disco: porque tinha sido feita por um fotógrafo chamado Jamie Hawkesworth, que se tornou um fotógrafo muito reputado. Jonny Lu, o tal director, sugeriu que trabalhássemos novamente com ele. Sempre me senti ligada à fotografia, algo que a minha mãe adora e a que me introduziu muito cedo, e ela mesmo é uma óptima fotógrafa. Contudo, o Jamie estava ocupado, e não conseguíamos conceber outra ideia boa o suficiente. Um dos amigos do Jonny introduziu-o a uma mulher chamada Nancy Honey, que está hoje na casa dos sessentas, e é um enigma no mundo da fotografia, mas é das mais influentes fotógrafas do século XXI.

Ela é o Jai Paul da fotografia. Totalmente! O Jonny propôs simplesmente contactá-la, perceber como ela é, deixá-la ouvir o disco, aferir se ela quer envolver-se nisto connosco. E ela queria! Ouviu o Seeking Thrills. O meu director criativo explicou um pouco sobre como eu era uma mulher a fazer isto sozinha e tudo mais, e ela identificou-se com isso. A minha manager adorou o trabalho dela. Toda a gente concordou que seria esta a opção!  Conheci-a no apartamento dela em Londres, decorado com fotografias na parede; ela é uma californiana muito modesta que viveu em Inglaterra durante 40 anos e continua obcecada com a cultura inglesa, em particular a cultura da classe trabalhadora. Muitas das fotografias dela retratam crianças do operariado, no Norte — que, nos anos 80, estava a atravessar uma altura complicada, obviamente com a Margaret Thatcher a destruir os mineiros e os sindicatos. A Nancy Honey fotografou várias destas crianças. Ela sentou-se e disse-me: “Adoro a música. Vamos trabalhar juntas, escolhe quaisquer fotografias que queiras, vamos fazer isto.” E eu nem estava a acreditar. Analisámos a série com essas crianças, intitulada Woman to Woman, nas quais ela questionou sobre o que gostariam de fazer no futuro — o fulcro era a inocência, a juventude.  Acho que há algo na música de dança, sobre estares na flor da idade, que é nostálgico. A imagem que escolhemos para a capa do Seeking Thrills, a representar esse momento puramente eufórico, e uma rapariga a olhar discretamente — para mim, resumiu o disco. Fiquei boquiaberto: numa fracção de segundo, ela capturou algo brilhante. Acho que funciona muito bem, e ter a parte dela na história conferiu ao álbum uma certa autenticidade, o que era importante, porque todos os sons que nele ouves são feitos com equipamento dos anos 80. Foi a cereja no topo de bolo. A música electrónica exprime essa euforia, muitas vezes, em criações exploratórias e longas. É um desafio comprimir esse êxtase e fazê-lo caber num formato pop? É um álbum pop, completamente. Não é assim tão difícil, porque muitas canções de Chicago que eu estava a ouvir eram como música pop para mim. Estavam a seguir estruturas similares — obviamente tinham versões alargadas, mas muitos dos vocais, letras e conceitos eram pop. Na verdade, foi um processo incrível retirar elementos disso e convertê-los em música pop. Não me era assim tão pouco familiar, dado que muitos artistas o têm feito há décadas. Foi realmente estimulante poder pensar “Como é que o Frankie Knuckles fez isto? E o Larry Heard? Ou o Jeff Mills?” Adorei entrar na cabeça deles e perceber a feitura dos seus discos. Aprendi tanto, e é por isso que pratico esta forma de arte: porque quero instruir-me, melhorar, desenvolver-me. O processo deste álbum ensinou-me muito. Há um paradoxo nisto — entre a libertação numa discoteca e a tentativa de racionalizar este sentimento — que o single “About Work The Dancefloor” propõe. No meu caso, sou uma pessoa bastante cerebral e encaro a pista de dança como algo catártico. Como é que balanças isso: dançar, pensar, trabalhar? Nasceu da constatação de que, enquanto sociedade, perdemos isto um pouco: a capacidade e a importância depositada nas pistas de dança como espaço onde te podes expressar. Foi desse ponto de vista: quem ouvir a música pode nunca ter tido essa experiência, não saber que é libertador… Queria dar o impulso ao ouvinte para sair e fazer isso mesmo. “About Work The Dancefloor” é uma letra ambígua para o ouvinte assumir e decidir que também pode ter essa experiência. E funcionou, evidentemente: ganhou o invejado prémio Popjustice’s Twenty Quid Music Prize.  Sim! [gargalhada] É um prémio fantástico para ganhar. É? A maior parte das pessoas nem o conhece. É votado por um bando de pessoas a embebedar-se num bar. O que é que fizeste com as 20 libras e as jardineiras? Não as recebi! Ouvi o disco e retive a adrenalina das quatro primeiras faixas, mas o que me poderás dizer sobre a faixa final, “Honey Dripping Sky”? Queria fechar o álbum com uma espécie de viagem. Aliás, todo o álbum é uma jornada: começa com quatro explosões, depois atira-te para algo diferente, regressamos à discoteca com a faixa “The Thrill” e culmina com a “Honey Dripping Sky”. Para acabar num tom mais emotivo, voltar à terra no fim da viagem, desfrutares nos teus headphones, e “ahhhh”. É muito emotiva, tem aquela secção mais dubby… Quando falas do primeiro álbum, és bastante directa sobre como foi criticamente aclamado, mas não terá vendido muito. Não para ser fatalista — considerando o apoio que este disco tem recebido… Sim! Basicamente, é outro disco, que penso que será mais acessível — quem sabe? As minhas expectativas são baixas quanto às vendas, mas este é definitivamente um salto artístico para mim. E foi sempre isso que quis. Acho que o terceiro álbum, depois, será a grande coisa. Estou entusiasmada com isto, mas não tenho muitas expectativas — é isso que tens de fazer enquanto artista hoje em dia, manter as expectativas baixas. [risos]

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