O 97° concerto na piscina do Hotelier proporcionou um encontro entre nomes incontornáveis do jazz português — um fundamental cultor dessa arte dos sons na cidade do Porto, João Pedro Brandão, e o inquieto quarteto lisboeta Garfo. E essa hedionda dicotomia portuguesa, muito enraizada na futebolândia — do Norte contra o Sul (ou vice-versa) — em que se tem que ser de um ou do outro, em que se afinca muito mais o que os separa do que os abraça, ficará sempre exposta ao irrisório quando vista com olhos de ver e de escutar. Em tempos, também na música houve essa ponte unificadora com o selo NorteSul (subsidiário da Valentim de Carvalho), em que dois polos uniam ao invés de separarem um espaço comum e contínuo. Este encontro faz, nos campos do jazz, também essa franca e salutar ligação.
O Hotelier é um desses outros espaços que importam, onde há lugar para um outro modo no fazer, como se deu conta na estreia da nova rubrica no Rimas e Batidas. Sito na Rua Anselmo Braamcamp, porta 324, no Porto, onde há espaço, numa idealizada piscina (embora seca) para se darem novos mergulhos na música, também ela muito feita do novo. Em sessões sempre ao final da tarde e que já quase se contam por 100 as vezes que tiveram lugar.
Desta feita ouviu-se jazz livre de amarras e definições concretas, na frescura da livre improvisação. A música que se vê para se ouvir melhor. João Pedro Brandão é um dos timoneiros da Porta-Jazz, fundamental pilar associativo, dínamo aglutinador e editora destas sonoridades na cidade do Porto. Mas Brandão é antes, ao mesmo tempo e acima de tudo, músico, compositor e livre improvisador. Voltando à flauta transversal, o seu primordial instrumento, tem-se feito notar mais nos sopros do saxofone alto e mais recentemente enveredou por dar ocupação aos seus pés, trazendo a palcos uma pedaleira de orgão. Foi com essa tripla instrumentação que gravou e tem actuado em Bode Wilson, com Demian Cabaud e Marcos Cavaleiro. Porque é raro o momento de escutar a sua música em solo, demonstra-se imperioso estar-se presente. Foi assim que abriu o concerto na piscina do Hotelier. Uma flauta desprendida, dedos irrequietos e um sopro pleno de ímpetos verticais. Brandão fez-se flauta e dela saboreou-se o desconhecido por campos frescos. Estados houve sem sopro algum, em que “apenas” o som veio dos mecanismos de abertura e fecho, um jogo de chaves a fazer as delicias, o metal sobre a madeira, entre as sapatilhas. Algo assim como se ouve em Tales From the Subterraneande de Julius Gabriel, em que a certa altura é uma catadupa de percussão vinda de onde antes emanava uma voz. A transição ao saxofone foi subtil, momento de pôr à prova a destreza de pés e passarem a ser três instrumentos, já que as amplas harmonias vocais faziam pontes inesperadas. Foi um solo vertical com sentido aprumado, em que as melodias estiveram norteadas por uma exploração sónica, de pendor muito orgânico, de pés e mãos sempre muito laboriosos.
Garfo apresentam-se íntegros, estão de viagem ao Norte, tocaram numa digressão de três datas seguidas de Corunha a Gijón, e de Vigo, rumo ao Sul, ao Hotelier. O Porto vai sendo casa frequentemente visitada por elementos da cena jazz lisboeta e vice-versa, para isso mesmo ajuda a existência de associações parceiras do meio, a Porta-Jazz a Norte (Porto) e a Robalo a Sul (Lisboa). Sempre que conseguem há salutares visitações entre as partes. Sejam os músicos do universo Porta-Jazz na Robalo, sejam os da Robalo na Porta-Jazz. O Hotelier é esse outro espaço, que serve de anfitrião. Garfo têm nos dois discos editados uma excelente porta de entrada na sua musicalidade. Depois do álbum homónimo em 2021, surgem com Órdia em final de 2024 pela Robalo Music, precisamente. Um disco que, logo na foto de conjunto, os coloca numa rota musical para Sul ao encontro das canículas e timbres quentes.
Dispostos a retemperarem a sua musicalidade vindos a Norte, abrem caminho a quatro, lado-a-lado. João Almeida aqui toca um instrumento de bolso, sem deixar de ser trompete, um desses como tão bem uso faz Sei Miguel, Rob Mazurek ou mesmo o seu mentor de um certo tempo que foi Peter Evans. Bernardo Tinoco não abdica do seu tenor, hábil e caloroso como tem sido. João Fragoso é parte integrante do contrabaixo, deixa-se ocultar pelo agigantar das madeiras e do grave das cordas. João Sousa traz e faz sempre muito de um conjunto de aparentes reduzidos recursos. A alma de Garfo está no que surge dentro da sua naturalidade, há um à-vontade, destemido e criativo. A linguagem que servem nunca se repete e anda de braço dado com a espontaneidade em frequentes sintonias. Recombinam-se em partes, e dum quarteto se passa a duo a operar — contrabaixo e bateria, tempo e ritmo de organicidades. É flagrante e rítmico ver como Sousa toca, num só escutar imaginava-se com um bendir — mago pandeiro circular berbere. Mas só que não, é uma tarola no seu jeito. Talvez seja esse o mote, no idioma chamativo desse rumo ao Sul, que esta musica contém. A certa altura, a mão esquerda de Sousa é quem mais ordena de palmo aberto face às peles. A isso respondem os frequentes uníssonos dos sopros, no desenharem a nova combinatória, em novo duo entre os quatro. Tinoco é quente no tocar melódico, enche o espaço, e a companhia do trompete de bolso de Almeida traz frescura e espuma na frente da música.
Agitam-se as águas secas da piscina, transbordam e ondulam contra os rebordos da sala. O tenor ouve-se como onda gigante — sem alertas para evacuar a plateia. Há caixas de ressonância mesmo à beirinha e as baquetas surgem-lhes na razão. Prossegue o trompete em subtilezas. Fragoso volta ao toque de acordes, prescinde do tempo, preenche e convoca para serem quarteto. Este tempo musical aproxima-os de uma queda — escala em descida a prumo no contrabaixo. Os sopros amparam e previnem o estatelar e refaz-se o tempo para dar toadas groove.
Garfo convocam Brandão e, afinal, a adição de 1 com 4, vira a quinteto em acção. Soa ao novo quando os dois saxofones (alto e tenor) se tornam pulsares da música. Recombinam-se com trompete-bateria-contrabaixo, descanso efectivo das palhetas, escutar para saber voltar. Nesse regresso a cinco, o entorpecer passa a ordem e consequente perda do tempo da música, o que é o mesmo que ouvir uma música sem tempo, mas com lugar — rumo a Sul. Volta em bordão o tom mais grave, e é como se ouvisse um muezzin subido ao alto dos minaretes — inebriante ressoar. Depois houve um delicado sabor, delícia melódica feita de tenor conjugado com o contrabaixo e bateria, um trio marcante entre o quinteto. A candura com que em seguida Brandão faz inscrever a flauta transversal é um sinal para Tinoco suspender nos tons, em surpreendentes sussurros. Passa-se para uma harmonia de sons suaves. Há silvos subtis na flauta, as escovas nos címbalos e o tampo e ilhargas são o lugar da fricção no contrabaixo.
Parecem aproximar-se como no começo a solo. Brandão descreve uma melodia abstracta que liga ao tempo do primeiro mergulho, a pique sobre a não-água, que é rasa. Surgem em cumplicidade os sopros em textura. Tudo tem um fim, e aqui foi decidido em concílio — a cinco, que contrabaixos não há argumentos! Fragoso ficou com as honras de balanço final — nada de grave, era só o som do único instrumento com cheirinho de amplificação a ouvir-se em desfecho. Foram incontáveis os mergulhos acústicos, como num festim nu — William Burroughs haveria de ter gostado de estar aqui.