Ganavya esgotou ontem a lotação disponível na Sala 2 da Casa da Música, espaço onde assinou um dos mais extraordinários concertos que quem assina estas linhas teve a oportunidade de ver este ano (e já lá vão uns quantos…). Acompanhada apenas por Charles Overton na harpa e Max Ridley no contrabaixo, a performance da cantora nascida e criada em Nova Iorque por pais naturais de Tâmil Nadu, na Índia, não podia ter sido mais simples: sem truques de iluminação, sem quaisquer dispositivos cénicos para lá de uma cadeira que usou esporadicamente, Ganavya deixou que a música monopolizasse as nossas atenções. E isso foi suficiente.
Dotada de um impressionante instrumento, de afinação perfeita e absoluta, treinado nas elaboradas técnicas vocais da rica música clássica indiana, Ganavya é um verdadeiro prodígio, capaz de nos enredar no seu singular timbre através de sinuosas modulações que se espraiam por várias oitavas. Ainda assim, usa de forma parcimoniosa a sua ampla capacidade vocal, nunca cedendo à tentação da exibição fútil e desnecessária. Pelo contrário. Pode não parecer, mas a autora de Daughter of a Temple é capaz de uma contenção extrema, algo necessário para cumprir com rigor as “normas” da música que interpreta com total desenvoltura.
Ontem, Ganavya concentrou-se sobretudo em material de Nilam, o álbum com que sucedeu a Daughter of a Temple (2023), trabalho que foi bastante aplaudido na imprensa internacional. Se nesse disco a cantora nova-iorquina de raízes tâmil já revelava uma abordagem profundamente espiritual à canção, em Nilam esse traço surge ainda mais depurado e pronunciado. Gravado, como se explica nas suas notas de lançamento, quase por acaso num intervalo inesperado entre a sua estreia esgotada em Berlim e um concerto na Union Chapel, em Londres, Nilam é o resultado de uma breve passagem pelo estúdio Funkhaus, em Berlim, com o produtor e compositor Nils Frahm. E o que poderia ter sido um registo circunstancial transformou-se numa obra que soa inevitável, como se já estivesse destinada a existir. A sua força reside na quietude e na profundidade: as canções, muitas delas amadurecidas em anos de performance ao vivo, transmitem uma sensação de movimento interior e de silêncio partilhado. A voz de Ganavya — descrita pelo New York Times como algo que “se sente como uma oração” — guia-nos nesse território de intimidade e de escuta.
E realmente, na apresentação na Casa da Música, a genuína espiritualidade de Ganavya foi o principal elemento da performance, com a qualidade meditativa que rapidamente se desprende da sua performance a mostrar ser capaz de arrebatar a atenta plateia: a atenção com que o público a escutou, o silêncio reverente, a quantidade de olhos fechados e sobretudo a total ausência de ecrãs na sala foram sinais claros do carácter muito especial da noite.
É importante destacar a discreta, mas decisiva contribuição dos dois músicos para a elevada fasquia da performance: Charles Overton é um mestre na harpa e se é verdade que basta a presença deste instrumento em palco para justificar comparações a Alice Coltrane, não é menos verdade que o seu estilo é profundamente distinto do da autora de Journey in Satchidananda. Overton é um tecedor exímio de harmonias e um melodista de vívida imaginação. O que, em conjugação com os drones de elegância pura debitados por Max Ridley quando usava o seu arco ou com o seu económico mas sabedor dedilhado melódico do contrabaixo, gerou molduras de beleza infinita que Ganavya usou para expor os seus quadros de transcendente humanidade.
A cantora dirigiu-se ao público por um par de vezes. Os discursos foram longos, quase sussurrados, mas claros: agradeceu de forma tocante aos músicos que a acompanharam, ao seu marido e manager que descreveu como um porto seguro, ao engenheiro que nos brindou com um som de sala magnífico e falou-nos também do poeta da Palestina Suheir Hammad, o autor das palavras da comovente “Land”. Depois também convidou a plateia a juntar-se a ela em momentos de comunal harmonização. O mais especial foi mesmo no final, quando Ganavya surpreendeu o público ao entregar-se ao velho clássico folk “500 Miles”, um sucesso durante o revival folk americano de inícios da década de 60 do século passado nas harmonizadas vozes do trio Peter, Paul and Mary. Foi bastante curioso ver a plateia, com muitos portugueses, mas também bastante preenchida de público internacional, a entregar-se de forma estranhamente harmoniosa a uma canção que aborda a ausência e a solidão imposta pela distância transformando-se num muito afinado coro comunal espontâneo. No final havia, claramente, gente feliz com lágrimas no rosto. Sinal claro do elevando grau emocional da performance. Esta noite, Ganavya apresenta-se em Lisboa, no B.Leza, uma oportunidade que vivamente aconselhamos a não perderem.