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Fotografia: Andriana Oborocean
Publicado a: 19/04/2021

A banda sonora de um filme que ainda não existe.

Gal Go Grey: “Provavelmente é mais fácil rappar com o saxofone do que com palavras”

Fotografia: Andriana Oborocean
Publicado a: 19/04/2021

King Krule é o elo de ligação entre Tom Grey e Ignacio Salvadores: o amor partilhado pela música do autor de Man Alive! foi a ignição indirecta para uma chama que se transformou num grande fogo que se espalhou por oito músicas.

Londres é a base dos Gal Go Grey que absorve a neblina e a densidade da cidade britânica, criando uma névoa que inclui jazz e house de baixa fidelidade mas que, no seu cerne, é experimentação pura de artistas que partiram de lados diferentes para se encontrarem no mesmo sítio sónico (e a localização, nesse sentido, é mais difícil de categorizar.

Também lhe chamam música para filmes, mas daqueles que só podiam ser rodados na capital inglesa. Fomos falar com estes dois “realizadores” sobre o seu projecto de estreia enquanto dupla, as curvas da vida que os colocaram no caminho um do outro e a fantástica impressão com que ficaram de Lisboa.



Gostava de começar pelo início: digam-me como é que foi o vosso primeiro contacto com música. Tu, Ignacio, o que é que te fez pegar no saxofone quando toda a gente na tua geração andava a pegar em guitarras ou computadores-

[Ignacio] Eu primeiro peguei na guitarra [risos].

[Risos] Fala-me sobre isso.

[Ignacio] Eu comecei a tocar guitarra quando tinha à volta de 8 anos, acho. Eu recebi uma guitarra eléctrica no Natal e toquei durante 10 anos. E foi depois desse tempo que dei de caras com o saxofone. Basicamente eu comecei a tentar tocar jazz na guitarra e compreendi que queria tocar um instrumento diferente para isso, algo que fosse mais divertido porque eu gosto de guitarra mas… eu viajei para Nova Iorque quando tinha 17/18 anos — na altura tinha terminado o secundário –, fui visitar um amigo e fomos a muitos concertos em que eu fiquei, “porra, eu preciso de tocar um instrumento de sopro”. Foi aí que comprei um trompete. 

[Risos] Foi uma longa caminhada até ao saxofone. 

[Ignacio] [Risos] Não. Três dias depois de ter comprado esse trompete, eu troquei-o por um saxofone [risos]. Desde aí fiquei-me pelo saxofone. 

E tu, Tom?

[Tom] Eu não era muito musical quando era novo. Mas fiquei muito interessado em hip hop e no J Dilla, principalmente, e queria fazê-lo. E eu andava a rappar com pessoal. Eu e os meus amigos costumávamos fazer freestyles em parques por Londres, apenas a divertirmo-nos, e depois… ninguém fazia beats, por isso arranjei um sampler depois de receber o primeiro ordenado do primeiro emprego que arranjei. Comprei uma MPC e um pequeno gira-discos e comecei a produzir dessa maneira. Samplando…

Por curiosidade: qual era a MPC?

[Tom] A MPC1000.

De volta a ti, Ignacio: existe uma mudança da Argentina para Londres a certa altura da tua vida. O que é que te fez tomar essa decisão e o que é que te atraiu para Londres?

[Ignacio] Vim cá algumas vezes em tour para tocar em 2013 e 2015. Estava intrigado com a cidade. Especialmente pela cena musical daqui. Comprei um bilhete para Londres e não pensei muito nisso, para ser honesto. Apenas aconteceu. 

Mas existe uma história interessante por trás, certo? Pelo que tenho lido, a conexão com o King Krule também é uma história. O que é que te fez mandar-lhe um e-mail com aquele vídeo teu a tocar debaixo da ponte?

[Ignacio] Eu só queria tocar música com pessoas, especialmente com pessoas de quem eu gosto. Eu toquei muito antes disso e só queria fazê-lo com pessoas com quem sentisse outro tipo de ligação. Senti que queria tocar com ele. Senti essa ligação com ele. Estava a ouvir o álbum dele a solo e apenas aconteceu dessa maneira. Pensei que seria uma boa ideia abordá-lo dessa maneira.

Foi uma surpresa para ti? Que ele tenha aceite a tua sugestão? Normalmente isso não acontece. 

[Ignacio] Sim, claro que fiquei surpreendido. Eu estava tão perdido no momento em que recebi a mensagem… estava a mudar de casa… aconteceu três semanas depois de eu ter chegado. Mas essas três semanas foram bastante duras porque eu não sabia o que podia fazer, andava à procura de trabalho, não podia tocar saxofone no sítio onde estava a ficar por isso ia para essa ponte (onde gravei o vídeo) para tocar todos os dias. Houve uma altura em que não sabia o que ia fazer. E descobri que Londres era um sítio bastante caro para se viver e eu não tinha grandes poupanças. Muitas coisas aconteceram nesse dias.

Uma última questão para ti antes de voltar para o Tom e começarmos a falar do álbum que vocês fizeram juntos. Fala-me de Vacío Fuego, o disco que fizeste antes de se juntarem. Como é que o descreves e o que é significa no contexto da tua carreira?

[Ignacio] Essa é interessante porque eu sinto que estava bloqueado antes disso, durante uns dois ou três anos, sem lançar música pelo meu projecto a solo. Subitamente senti-me bloqueado com as minhas coisas e eu estava a passar por tempos difíceis. O confinamento e o coronavírus bateram-me e fui para o campo para a casa do meu vizinho [risos] por seis semanas e foi realmente calmante. Pude conectar-me com a natureza e o fogo — todos os dias queimávamos coisas. E comecei a fazer música de novo, a olhar para o que tinha feito antes. Pensei: “preciso de lançar esta música que tenho no meu computador”. Grande parte dessas faixas tinham sido começadas há dois ou três anos e eu decidi que não ia lançá-las porque achei que não eram boas [risos]. E depois foi do tipo, “ok, não é bom, mas é o que eu consigo fazer”. E lancei. Fiz uns vídeos e muito daquilo foi inspirado pelos vídeos que fiz. Criei este EP e tive algumas colaborações de amigos. 

Tom, e tu? Existem lançamentos anteriores a estes?

[Tom] Eu fiz rap durante algum tempo. Produzia e publicava no SoundCloud e depois dava concertos. Há um pequeno catálogo de coisas no SoundCloud com o nome Tom Grey, mas nada sério. Este foi o primeiro lançamento sério. Demorou algum tempo. 

Como é que a vossa ligação se deu?

[Tom] É uma história engraçada. Nós conhecemo-nos brevemente à porta de uma casa de banho num concerto enquanto eu estava à espera de uma senhora. E essa foi a noite em que conheceste o Archie [King Krule], não foi?

[Ignacio] Sim.

[Tom] Um pouco antes. Conversámos um bocado e ele deu-me um autocolante. Ainda o tenho aqui na minha secretária [risos]. Um ano depois encontrámo-nos novamente e eu já era fã de King Krule há algum tempo. Conheci o Ignacio num gig e seis meses depois ele estava na televisão a tocar no Primavera Sound. E estavas com um tipo que andava a fazer uma peça jornalística sobre ti e ele conhecia a minha música de alguma maneira, apesar de só estar no SoundCloud.

[Ignacio] Sim, isso foi muito inesperado.

[Tom] Foi tudo muito estranho. E depois soube que ele estava a trabalhar com a Andrea Balency.  

[Ignacio] Ela é metade mexicana, metade francesa. Nós tínhamos a intenção de fazer música com a Andrea mas só fomos lá uma vez e depois o Tom disse, “eu tenho acesso a este estúdio na universidade onde estudo, é muito fixe, tem um piano de cauda, e todos estes microfones porreiros”. E nós dissemos, “claro, bora lá gravar alguma música”. Mas não tínhamos nada preparado. Só improvisámos. 

[Tom] Eu gravei isso. 

[Ignacio] Ele produziu e gravou essa sessão. Isso foi divertido.

[Tom] E depois tu tinhas um concerto mas não sabias o que fazer, por isso recrutaste-me. E eu usei aquela MPC1000. E foi o nosso primeiro concerto. Nasceu tudo fruto da necessidade.

Quanto daquilo que ouvimos no álbum foi gravado nessa primeira sessão e quanto é que foi feito depois?

[Ignacio] Essa primeira sessão foi apenas uma live session, nós não gravámos. Nós tocámos mais três ou quatro concertos e tocámos um em Edimburgo e gravámos antes desse concerto. Eu disse, “porque é que não gravas este ensaio?” Seis meses depois — e nós nem ouvimos essa gravação –, fomos para um parque com uma coluna bluetooth e tocámos o que tínhamos feito no ensaio [risos]. E soou muito bem. Decidimos torná-lo num álbum. Mas muito do som vem dessa sessão. Grande parte das performances de saxofone, as vozes.

[Tom] Electrónica gravada ao vivo.

[Ignacio] Houve muita coisa que não pudemos mudar por causa da maneira como foram feitos. Acho que essa é uma energia muito fixe para ter numa gravação — gosto de como as coisas soam mais vivas quando não são muito produzidas. Nós ouvimos essa gravação e tem algo. Foi um bom ponto de partida.

[Tom] Sim, acho que não conseguíamos recriar aquilo. Muito veio de um lugar para onde não consigo voltar. Os solos de saxofone… o som na “COAST” quando os drums entram, o saxofone nesse tema é tão alienígena. Não sei como o fizemos. E a maneira como o Ignacio está a tocar é fantástica. Nós tentámos refazer algumas coisas mas percebemos rapidamente que a magia estava naquela sessão. 

[Ignacio] Nós tentámos fazer tudo de novo de uma maneira mais limpa, mas não soou como deve ser. Preferimos como estava inicialmente. A primeira faixa era muito diferente, no entanto. Conseguimos levá-la para um sítio diferente. Depois há estes interlúdios todos, a quarta e a oitava faixa, que vieram de uma jam que nós fizemos com um sintetizador analógico que eu comprei a um amigo. 

Existe algo muito especial neste disco. Obviamente, vocês vêm de duas culturas diferentes, tanto musicalmente como em termos de linguagem. Mas vocês arranjaram uma maneira de comunicar e fazer essas duas experiências trabalharem realmente para criar algo novo. Eu sei que vocês são artistas e que não devem estar preocupados com rótulos, mas como descreveriam esta música que criaram juntos?

[Tom] Sim, é engraçado. Descrever música é sempre difícil. É interessante ver as outras pessoas a descreverem-na. Nós não pensámos em géneros ou como misturar as nossas diferentes influências. Tudo aconteceu sem ser preciso falar. Nunca houve menções sobre géneros enquanto fazíamos a coisa.

[Ignacio] A “Burns” é lo-fi house. Outra anda à volta do jazz, mas não é jazz. 

[Tom] É muito cinematográfica. Parece música para filmes. Mas não é para nenhum filme que eu tenha visto [risos].

Se é de um filme, então de certeza que esse filme foi rodado em Londres.

[Ignacio] Sim, foi onde nos conhecemos.

E há outra coisa que eu quero mencionar, Ignacio, porque eu não sei o quão ligado estavas ao hip hop antes disto, mas — e existem muitos textos que abordam o facto do saxofone ser muito próximo da voz humana — há faixas em que parece que tu estás a rappar através do saxofone. Isso faz algum sentido?

[Ignacio] Sim, faz sentido. Eu acho que algumas disciplinas precisam de se misturar com outras. Eu ouço música muito diversa e acho que o que enriquece a minha técnica é deixar essas coisas surgirem através de mim e, sim, provavelmente há muito disso. Eu tenho andado a tentar tocar em cima de rappers e sobre esses beats de grupos como A Tribe Called Quest. Eu meto sempre instrumentais deles. E sim, eu abordo a música ritmicamente como se estivesse a rappar. Provavelmente é mais fácil rappar com o saxofone do que com palavras. 

Como é que vocês se encaixam na cena londrina que tem captado bastante atenção? Parece haver muitos projectos que levam o jazz para novas paragens. Vocês sentem-se ligados a essa cena em particular ou não?

[Ignacio] Eu acho que ainda estamos a descobrir — até aqui não existia nada lançado. É algo a descobrir nos próximos meses.

Vocês têm concertos marcados?

[Tom] Ainda não.

[Ignacio] Mas adorávamos. Neste momento está um pouco incerto agora, por isso é difícil viajar. Não vejo isso a acontecer no Verão. 

[Tom] Isto é um projecto para tocar ao vivo. Foi assim que começámos. 

Tu estás a estudar música na universidade, Tom?

[Tom] Sim. 

Qual é o ângulo?

[Tom] O curso chama-se Música Popular. É muito avant-garde, acho. Há muita teoria. Muita teoria cultural. Também estudo coisas diferentes como Música Comunitária, Música Para Filmes ou Terapia Musical. É um curso estranho, mas é bom.

Eu estava a ler online uma entrevista e apanhei uma história em que falavas de um concerto fantástico que viste em Lisboa. Fala-me sobre isso. Fiquei surpreso que conhecesses o Hot Clube. 

[Tom] Foi numa viagem com a minha mãe. Eu e ela viajámos muito. 

Foi há quanto tempo?

[Tom] Há quatro ou cinco anos, penso. Foi, muito provavelmente, o primeiro concerto de jazz a que assisti. E acho que foi o melhor a que já fui [risos]. 

[Ignacio] Provavelmente por causa disso [risos].

[Tom] Talvez. Mas foi incrível — e eu estava sob o efeito certas substâncias na altura. Mas foi muito mágico. Nós tínhamos acabado de ficar amigos de um tipo, um baterista, que tocava todos os tipos de música. Nós também conhecemos uma psicoterapeuta que estava a trabalhar em maneiras estranhas de tratar o cancro. Nós conhecemo-la numa cidade diferente de Portugal. Mas voltando ao baterista: nós conhecemo-lo no Hot Clube na última noite em que estivemos lá. Foi um espectáculo fantástico. Todos foram embora e eu e a minha mãe e o baterista ficámos a falar num canto. 

E tu, Ignacio: conheces Lisboa?

[Ignacio] Sim, ia agora contar isso. Eu fui a Lisboa há três anos… com a minha mãe também. A minha mãe vive na Argentina e na altura eu vivia em Madrid e ela veio e eu disse-lhe, “mãe, não conheço Lisboa”. Toquei perto do Porto e fui ao Porto e queria ir a Lisboa, por isso convidei a minha mãe. Apanhámos o comboio de Madrid para Lisboa e ficámos lá uma semana. Também fomos a alguns concertos perto do rio. Existem algumas salas perto do rio. Um deles era uma jam session de jazz. Foi muito bom. Fomos a restaurantes ilegais e super baratos. Divertimo-nos muito. Depois fomos a Sintra. 

Última questão: têm outros projectos planeados para 2021?

[Ignacio] Seria fixe lançar o disco em que trabalhámos juntos com a Andrea, a pianista de Mount Kimbie. Eu quero fazer um filme para isso. Não está definido, mas gostava.

[Tom] E isso é, definitivamente, música para filmes. 


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