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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/10/2023

O mais recente disco do rapper carioca saiu em Agosto.

Gabriel O Pensador sobre Antídoto Pra Todo Tipo de Veneno: “Fala de lutas pessoais, mas também sociais”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/10/2023

Há mais de uma década que não lançava um álbum, mas a espera terminou no passado mês de Agosto. Gabriel o Pensador, um dos maiores e mais influentes nomes do rap brasileiro (e lusófono), regressou com Antídoto Pra Todo Tipo de Veneno, um disco diverso, onde tanto se fala de problemas do indivíduo como da sociedade, procurando descobrir os antídotos certos para cada um dos desafios: a música, certamente, será um deles.

Para este álbum, o MC de 49 anos, natural do Rio de Janeiro, convocou convidados como Xamã, Black Alien, Lulu Santos, Armandinho ou Sant, entre outros, tendo escolhido beats de produtores como Dree Beatmaker, DJ Caíque ou Sam The Kid, que deu um cunho português ao tema “Giro”.

O novo trabalho foi o pretexto para uma entrevista com o Rimas e Batidas realizada em Outubro num hotel lisboeta, dias depois de uma atuação que o músico fez em Beja.



Disseste numa entrevista que ficaste algum tempo sem lançar um disco porque sentias que os álbuns tinham perdido alguma força face ao formato de single. Sentes que recuperaram alguma dessa força?

Acho que sim, vejo as pessoas a lançar mais álbuns e talvez o público a apreciá-los melhor outra vez. Apesar de já não existirem discos físicos, porque muita gente já nem tem leitores de CD, e, para mim, acho que não vale a pena fabricar… Mas até que é cool fazer um vinil comemorativo. Eu vi que o Sam The Kid fez CDs agora recentemente, acho isso maneiro, mas porque aqui em Portugal ainda tem algumas pessoas que conseguem tocar. No Brasil, quase ninguém tem. Talvez o vinil até mais do que o CD, porque os aparelhos sumiram. Mas mesmo assim vemos que as pessoas entendem que um álbum digital é para ser apreciado e ouvido com atenção… Na altura que passei a só lançar singles acho que existia mesmo uma velocidade… Há uma banda chamada Titãs, clássica do rock brasileiro, que chegou a gravar uma música, não me lembro em que ano, mas ali no pós-Napster, e era “A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana”… Era uma brincadeira com essa frase, porque estava tudo muito descartável e efémero.

Mas sentes que hoje, mesmo no digital, as pessoas estão a valorizar mais o álbum?

Sim, e do meu lado eu já tinha feito vários singles com todo o capricho que o single também merece, com todo o lado bom que isso tem, que é você focar em determinado assunto. Não só em relação à letra, mas num determinado som que você quer mostrar, talvez uma mistura diferente, um beat, um flow… Mas agora acumulei beats e ideias musicais, seria difícil querer destacar uma coisa só. Agora estou angustiado para falar da humanidade. Já não estava numa de pegar num só aspecto, num só som… Não iria funcionar muito bem. Fiz o disco com muita calma, foi muito devagar, eu estava na tournée e ao mesmo tempo fazendo os shows de comemoração dos 25 anos do Quebra-Cabeça, que foi algo de que gostámos muito de fazer. Estava toda a gente muito empolgada na estrada e eu não parei. Íamos para o estúdio uma ou duas vezes por semana, depois parávamos, foi feito num ritmo natural mesmo, bem tranquilo. Até demais, poderia ter saído um pouco antes se eu quisesse. Mas foi o tempo que foi preciso.

Foste recolhendo instrumentais que depois deram origem a músicas? Como foi o processo?

Há umas em que a letra vem primeiro, e depois escolho um beat. Antigamente eram sempre as letras antes. Agora varia. Às vezes posso pegar numa série de ideias… O Dree Beatmaker, DJ que estava a viajar comigo, está sempre a mostrar-me as coisas dele, e agora até lhe estou a dever uma letra, para um projecto dele. Mas ele está sempre a fazer muitos beats, e acabaram por ficar quatro no álbum. Mas, no começo, eu já estava a fazer letras para testar com estes beats mais novos, mais modernos, meio trap, meio pesados, e depois mostrei para o Keviin, que também me convidou para fazer tudo no estúdio dele. Acabei por ver que ia centralizar a produção nas mãos dele, ele também tem um estúdio com muita qualidade. Chegámos a gravar algumas vozes na Rocinha, porque o Dree tem um projecto social para oferecer equipamentos a quem quer aprender a fazer beats e não tem como comprar equipamento, e tem um estúdio lá. Mas depois migrámos para o Keviin. Quando percebi que isto podia ser um álbum, também me lembrei de uma música que estava a fazer com o André Gomes; de uma outra que já estava a ser feita há algum tempo no estúdio do Papatinho, que era a “Burn Babylon”; com o DJ Caíque, fiz um elogio porque ele produziu o álbum do MV Bill e ele mandou-me uns beats, acabou por entrar um para a última faixa; por isso, depois, em casa, ia vendo os beats que tinha, vendo o que se poderia fazer… 

E o resultado é um álbum muito diverso em termos sonoros, o que se explica facilmente com esse processo orgânico.

Por exemplo, há uma que o Armandinho me enviou com um refrão: “Liberdade, consciência, juventude e fé”. E era um mantra de reggae. Ele fez num ensaio com a banda dele, em que tentou fazer uma melodia sem letra, e depois eu escrevi para ele. Mas gostei muito daquilo, já tinha um refrão. E aí ele me procurou, porque acha que a nossa juventude de hoje precisa de mais consciência, mas que também existe uma juventude que está afim, que tem vontade, e que tem de buscar esse caminho para não se perder nas outras coisas. E tivemos uma conversa e ele disse-me: faz a letra, mostra-me, mas eu imaginei isto. E falou-me de algumas coisas. Eu também imaginei outras. E assim saiu a letra. Dali saiu o título do álbum, porque há uma frase que fala do Antídoto Pra Todo Tipo de Veneno.

E sentes que essa perspectiva que ele te estava a transmitir, dessa tal necessidade de atitude, tomada de consciência, acaba por reflectir o álbum?

Acho que sim, parte do álbum. Porque há coisas ali que são mesmo de uma busca pessoal, que serve para todos. Uma busca na nossa alma, contra a depressão, contra as frustrações, “a cada decepção aumenta a percepção que a fé não pode falhar”. Não é uma coisa tão social, às vezes é uma luta pessoal que todos temos de ter contra os venenos de que nós mesmos nos alimentamos muitas vezes. De expectativas, ideias confusas… Temos sempre aprendizagens pela frente. Há uma música que até fala do Cristiano Ronaldo [risos], por relembrar do lado bom da incerteza do futuro. Se a gente já soubesse tudo o que vai dar… Que vai dar sempre certo… Não teria graça.

Por isso é que é para todo o tipo de veneno, para os mais pessoais e para aqueles que são mais globais e sociais.

É, acho que está bem abrangente, e escolhi essa frase para o título porque acaba por combinar com os dois lados do álbum.

Obviamente, com 30 anos de carreira não tens nada a provar. Mas ao mesmo tempo pode ser desafiante estares sempre a trazer algo de novo, a reinventares-te, mantendo também a tua identidade. Sentes que esse desafio está sempre presente, é sempre constante a cada novo passo?

Para mim, mais do que um desafio é um prazer. Eu tinha duas ou três músicas que descartei e que estavam boas. Mas não achei que estivessem assim tão boas e falo da minha parte, da letra, que não me estava a agradar a 100%. Portanto, é um desafio, mas sempre fui…

Perfeccionista?

Não perfeccionista porque até parece uma palavra… A perfeição a gente não alcança mesmo. Mas é o capricho com o detalhe, a vontade de fazer bem feito. Da forma das palavras ao flow, à entoação da voz, gosto mesmo desta experiência no estúdio, de cada instrumento que vem, de cada convidado… Sentimos um prazer enorme ao fazer um álbum ou um single ou um videoclipe, o que seja. Por isso, para mim não tem um peso. É prazeroso. Mas, ao mesmo tempo, consome-me mesmo. Fico ali focado, quando estou no meio do processo. Entro num transe. Mesmo na hora de escrever a letra é bem curioso. São momentos de concentração total, às vezes também de muita emoção. Mesmo sozinho, fazendo a mesma parte da letra, emociono-me bastante.

Reescreves muito? Ou estás muitas vezes imerso naquele momento de transe e aquilo sai-te de forma fluida, naturalmente, naquele momento?

Flui mesmo, mas não com muita velocidade. Às vezes pode vir-me uma história de madrugada e só vou dormir às duas da tarde, quando terminar a história. Ou pode ser que conclua ali uma estrofe e sei que irei querer retomar, isso varia. Mas em relação a reescrever, a reler com calma e a aperfeiçoar algumas frases, também acontece. E temos o refrão, que muitas vezes é algo que não vem primeiro. Posso fazer uma letra e depois deixar amadurecer uma ideia para vir o refrão. Também não há uma fórmula.

E o refrão é mais simples quando já tens um instrumental e te podes guiar pela melodia?

Nem sempre… Consigo imaginar bastante algumas coisas mais melódicas e também gravo as ideias sem instrumental. E houve algumas em que tive a ideia e fiz o groove todo com a boca e o pessoal só reproduziu depois, e fiquei mesmo como autor de letra e música. “A Cura Tá no Coração” é uma delas. Tenho a gravação disso, de eu sozinho a criar! Veio já pronto para a minha cabeça. Claro que, depois, quando o músico vai fazer, ele ainda melhora. E há outra música que eu gravei com uma banda chamada Maneva, a “Um Só”, e fiquei orgulhoso porque também fiz tudo com a boca, e o refrão é bastante melódico. Já sabia que não era para eu cantar, mas acabei a imaginar tudo o que ele poderia fazer. Mas o jeito de criar varia muito.

E este é um disco com bastantes colaborações. Procuraste isso ativamente? Ou foi o processo natural de achares que, nesta ou naquela música, fazia sentido participar alguém com certa característica e lembras-te daquela pessoa?

Foi pensado música a música, eu nem sabia quantos convidados quereria ter no álbum. Houve músicas que acabaram por não entrar, como eu disse há pouco, mas o Sant, por exemplo, eu queria fazer uma coisa com ele… E essa música, a “Boca Seca”, é uma das minhas preferidas. Acho que precisava de um rapper bem poético, com uma densidade com mais peso, capaz de entrar naquela faixa e foi muito bem… o Xamã veio um pouco pela própria letra, porque eu precisava de ressuscitar o “Cachimbo da Paz”.

Também te queria perguntar sobre isso, já tinhas feito a “Tô Feliz Matei o Presidente 2”, agora fizeste a nova “Cachimbo da Paz”. Gostas dessa ideia de novas versões dos clássicos?

E até já havia a “Retrato de um Playboy 2”! A gente até esquece. Cada uma foi por uma razão. A do “Playboy” foi pelo assunto da juventude gostar de briga, cobardia, provocar confusão nas festas, agredir inocentes… Isso estava muito em alta e quis retomar isso, na altura o meu irmão tinha sofrido uma agressão. E na altura do “Tô Feliz Matei o Presidente 2” foi por um clique de um decreto-lei que o Michel Temer, presidente, ia fazer passar sem aprovação do Senado nem da Câmara para liberar uma área gigantesca da Amazónia para exploração. Ele acabou por voltar atrás, mas esse foi o ponto de partida para a letra. E agora o “Cachimbo da Paz 2” foi por um assunto que é pesadíssimo, que é o tráfico de droga e aquilo que ele alimenta… É inócua a forma como o tentam combater, cada vez com mais armas e mortes. De polícias, de inocentes, de jovens que são atraídos para esta vida no tráfico e que não deveriam, porque esta atividade nem deveria existir… Deveria haver outras oportunidades mais acessíveis. Eu já trabalhei na Rocinha, num programa social de hip hop que durou sete anos, e sabemos quão fácil é para uma criança pré-adolescente ter curiosidade para entrar no tráfico. É realmente um problema que não deveria ser normalizado como é. Podemos ver uma criança morrer, uma mulher grávida… De tão repetitivo, isso tornou-se quase normal para os olhos das elites, principalmente, e meio que o aceitam como danos colaterais de uma guerra do tráfico que não faz sentido nenhum. Porque ela não produz resultados. O traficante morre e vem outro e outro e outro. Não vai acabar assim. E é um assunto que eu já abordava há 25 anos, que a “nossa sociedade está atrasada demais”. Hoje nós estamos mais do que atrasados, o mundo também é muito atrasado em relação à maconha, especificamente, ainda são poucos os países que experimentaram a liberação. Mas já se provou que dá certo e funciona. E desta vez quisemos deixar marcado um pedido de respeito aos indígenas. Na letra do “Cachimbo 2” esse é o maior twist, o tema da causa indígena dentro desta história. E aí o Xamã também é um rapper que tem uma ligação com esta temática e essas causas. E o Lulu Santos, o meu parceiro na primeira… Tínhamos o desafio de fazer uma letra e uma música e um refrão à altura do “Mariazinha”, que é tão gostoso, de que nós gostamos tanto, e de que tanta gente gosta. Mas ele conseguiu. O refrão tranquilizou-me. 

Estavas com receio de revisitar o tema?

Não diria receio, mas, sim, havia uma preocupação. Aí, sim, era um grande desafio. 

E também tens o Sam The Kid numa faixa enquanto produtor, a “Giro”.

É, ele mandou-me duas, três ou quatro opções, e eu gostei logo desta. Ele depois trabalhou mais no beat, porque era um rascunho, e eu fui trabalhando na letra. E no estúdio só acrescentámos um violão, uma coisa bem simples, porque o Sam já mandou tudo bem alinhado. 

Neste caso, foi o beat que te levou para a letra?

Foi mesmo. Eu comecei a escrever já em cima do beat do Sam. E usei uma expressão portuguesa, “Giro”, inspirado por esta parceria. E depois veio-me o assunto da bola, da grande esfera, e aí acabei a dizer o nome de alguns jogadores, e depois falei do Ronaldo.

É a música mais portuguesa do álbum.

Pois é! [Risos] E depois tenho uma faixa com o Black Alien, um dos melhores poetas do rap brasileiro, que tem um trabalho muito bom e é muito respeitado por estar há tanto tempo na cena, e quando fizemos a música ele disse: “Demorámos 30 anos para juntar as canetas”. Porque ele também veio do meu tempo, não é? Era dos Planet Hemp, mas já estava na actividade. E nós conhecemo-nos lá atrás. Não éramos assim tão amigos, mas lembro-me dele até hoje. A primeira vez que o ouvi devia ser 1992 ou 1993. E ele foi crescendo e voltou muito forte nos últimos anos.

Sentes que este é um álbum mais virado para a tua comunidade, e menos para o público tão generalista? É um disco mais voltado para a cultura hip hop?

Nunca pensei muito em delimitar quem é que vai ouvir. Porque é muito abrangente e foi algo que eu busquei desde o início, mesmo antes de saber se iria conseguir gravar o álbum. Desde o início que pretendi mostrar o que era o rap para quem não o conhecia. Até houve uma editora de rap que me abriu as portas, que trabalhava na altura com os Racionais MC’s, mas eu voltei atrás… Porque eles explicaram-me que não iriam conseguir alcançar as outras rádios, que eles não queriam nem sabiam, que estavam era a comunicar para os bailes de São Paulo, uma coisa muito específica naquele momento, e eu já tinha tocado na rádio Crossover no Rio e tinha sido censurado… E o cara lá da rádio disse “parabéns, barrou a Madonna”, por a ter superado nos pedidos dos ouvintes… Eu já tinha esta vontade de expandir a linguagem e a cultura hip hop. E desde a primeira tour que percebi que não me referia só a faixas etárias diferentes mas também a camadas sociais, tribos de gostos musicais, para quem gosta de reggae, os rockeiros… Por isso, quando faço um álbum sinto-me muito livre para fazer algo mais hip hop ou, se também vier uma ideia de reggae, eu faço. Não me incomoda se alguns gostam mais desta ou daquela. E acho que cada vez as pessoas estão menos fechadas num estilo só… Desde miúdo que eu gostava de ouvir vários tipos de música. Era apaixonado por rap, mas era fã do Bob Marley, tinha posters dele no meu quarto. Pesquisava as letras… E também ouvia muita música brasileira. E essas influências também se reflectiram no meu percurso.


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