LP / CD / Digital

Gabriel Garzón-Montano

Agüita

Jagjaguwar / Stones Throw / 2020

Texto de Luís Carvalho

Publicado a: 02/12/2020

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O acto de conhecer alguém envolve diversas fases e momentos. Primeiro, começamos por conhecer o lado visível da pessoa, depois certos maneirismos e ideias, até que conseguimos, por fim, decifrar a sua personalidade e, quem sabe, com alguma sorte, entender questões tão complexas como o ego, os medos, os desejos e tantos outros factores que completam o ser na sua totalidade.

Diz-se por aí que o uso de um sample de “6 8” por parte de Drake para criar “Jungle” foi a apresentação de Gabriel Garzón-Montano ao mundo. Até pode ser verdade, mas isso nada mais foi que um “olá” envergonhado dado a um estranho. Era a primeira fase desse acto de conhecimento. Na realidade, só trocámos as primeiras ideias e atingimos uma noção mais complexa de quem ele é, dois anos mais tarde, com Jardín, o seu primeiro álbum, onde cavalgou as escadas da notoriedade de forma galopante, passando de nome quase desconhecido para um dos artistas mais empolgantes do momento, mesmo que numa escala mais underground.

Com esse trabalho, Gabriel Garzón-Montano apresentou os seus princípios de linguagem, a forma como trabalhou as suas influências e de como “experimentalizou” o r&b e o funk que tanto o cativam, num novo e elegante som. Foi uma muito interessante segunda etapa neste processo de conhecer alguém. Havia sinais de que podia estar aqui um artista com pedigree, alguém maior do que os palcos que para já pisara e a Jagjaguwar parecia saber disso: a gigante das edições não perdeu tempo e assinou o novo lançamento numa parceria com a influente Stones Throw.



Agüita, o mais recente longa-duração de Gabriel Garzón-Montano, confirma tudo o que pensámos em 2017. Este é um álbum refrescante e extremamente bem produzido, onde encontramos um músico ainda mais confiante e expressivo na sua linguagem e nas suas ferramentas de produção. Há uma vontade maior em explorar e experimentar, o que resulta numa evolução clara e, sobretudo, numa ambiciosa e requintada, aventura de autoconhecimento, algo por vezes ainda mais complicado que conhecer um terceiro. É neste processo que encontramos o brilho maior desta obra. Gabriel Garzón-Montano observa-se e percebe que existe um Gabriel nascido em Brooklyn, que bebe de toda a cultura refinada de composição e de design sonoro de uns Dirty Projectors ou de um Moses Sumney, mas que também se expande em Garzón, filho de mãe francesa, onde se identifica com a teatralidade e o sexappeal, misturando-os em vocalizações doces, sedutoras e provocadoras bem ao jeito de D’Angelo ou de Prince. Contudo, desta feita, a esta sopa de influências que anteriormente já conhecíamos, adicionamos agora o surpreendente lado paterno. Filho de pai colombiano, Montano até podia explorar a cumbia, ritmo tradicional desse país, mas acaba por se perder de amores por outras linguagens latinas, o reggaeton e o trap latino.

É a soma, e sobretudo a forma expositiva, clara e sem qualquer medo como ele se manifesta nestes ritmos universalizados por J Balvin ou Bad Bunny, que torna tudo mais intrigante. Pode parecer uma união estranha ou inusitada, quando misturada com os outros dois perfis artísticos, no entanto, é uma adição tão rebuscada como necessária, porque só assim se pode encontrar totalmente como artista. Neste álbum, ele apresenta-se totalmente despido, como a capa o mostra, sem subterfúgios. É ele mesmo, na sua essência, na soma das suas três camadas, no seu total.

Podemos usar o episódio produzido pela série Colours como um exemplo claro do que vamos encontrar em Agüita. Uma experiência sonora em que as três complexas entidades descritas pelo mesmo como um protagonista afável, um impressionista melancólico e um hitmaker de êxitos latinos-urbanos se misturam e se revezam, apresentando produtos diferentes, linguagens distintas, mas intrinsecamente ligadas entre si. Mesmo que o artista, como vemos no medley, vá perdendo figurinos e vá mudando a sua personagem, é nessa subtracção que se adicionam as camadas e permitem a justaposição desse complexo ser que é o verdadeiro Gabriel Garzón-Montano. É ele que ouvimos. O artista multifacetado capaz de navegar por vários géneros e com isso criar um género seu. Este, mais do que um álbum anti-género, como gosta de afirmar, é um álbum seu, de si mesmo como identificação artística única, ou até, quem sabe, na formação de algo novo. Se há algo que se pode apontar a Agüita é que, talvez, este ainda não contenha a cristalização total. Neste olhar para si mesmo, para as suas origens, para o seu ego, assim como para o seu passado e presente, talvez encontremos mais um primeiro passo que um final. Ainda não sabemos o futuro que esta união pode trazer, mas conseguimos imaginar algo refrescante e novo a acontecer. Imaginem a “Someone”, mas cantado em espanhol. Um casamento entre a arrogância, no bom sentido, do trap latino de “Muñeca” ou “Agüita” e a exímia produção e composição de temas como “Fields” ou “Moonless”. Agüita ainda não é isso tudo, mas é um sofisticado princípio de algo e um belíssimo resultado de autorreconhecimento.


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