[TEXTO] Moisés Regalado
Um dos Rakims do trap é produtor e chama-se Zaytoven. Future escreve como um rapper e só não se exprime como um cantor de r&b porque as cordas vocais não dão para mais — mas principalmente porque o campeonato em que joga não é exactamente esse. E é daí que vem grande parte do seu encanto, de todos esses versos propositadamente mal cantados com que constrói canções a sério, agora que o rap já não se divide apenas entre letras e instrumentais. A introdução do vídeo como parte da equação está longe de ser uma novidade (apesar do duo ainda não se ter lançado por aí), e, a exemplo do que já aconteceu noutros nichos que entraram em contacto com o mercado pop, o trabalho de estúdio não conta menos que o trabalho de casa.
Sendo verdade que a integração plena do fenómeno hip hop na cultura de massas foi, em parte, causa e consequência da crescente qualidade técnica associada aos artistas do meio (por exemplo: “todos” os cantores e rappers profissionais beneficiam das maravilhas do Auto-Tune, sendo ou não perceptível), é injusto reduzir fenómenos como estes — de Future, Zaytoven, mas não só — ao peso das circunstâncias. As fórmulas e os procedimentos mainstream fazem parte da máquina, é certo, só que o sucesso de personagens como Future tem raízes tão antigas quanto, por exemplo, as do dub jamaicano, que surgiu no final dos anos 60 com o especial propósito de revolucionar a sonoridade reggae.
Os princípios do rapper e do produtor não diferem assim tanto daqueles que distinguiram King Tubby: fazer o que sempre foi feito, manipulá-lo como nunca e procurar a arte pela forma, numa libertação espiritual tão digna quanto a que provém da palavra. Mais do que reciclar, o mote é reutilizar, mas BEASTMODE 2 é a prova de que as contas começam a não bater certo. A revolução deu lugar à manutenção da ordem e chega a ser preocupante ouvir Zaytoven dizer que as músicas recém-lançadas saíram de uma fornada de cem novos temas. A dupla nunca perde o controlo ao rigor e à competência que o mercado exige, mas parece que tem cada vez menos para dizer — ou fazer.
A monotonia do alinhamento é obstáculo a superar pelos fãs mais acérrimos, e todos os pontos realmente altos parecem remeter para outras janelas temporais, com vista privilegiada para o passado. Os instrumentais de “Doh Doh” e “Hate The Real Me”, dignos de um sistema de som que se preze, parecem saídos do primeiro disco rígido de Zaytoven. “When I Think About It” é quase uma nova versão de “Used To This”, single de 2016. Nada disso será coincidência e funciona mais uma vez como reflexo do que exige a indústria. Mas o passado recente ensina o resto da lição: “6 Foot 7 Foot” foi um sucesso mas não haverá muita gente a lembrá-la imediatamente como um marco na carreira de Lil Wayne. E os que se lembram recordam-na como uma cópia da inigualável “A Milli”.
Nem Rakim foi Rakim duas vezes e, sem esquecer os inúmeros artistas que merecem semelhante estatuto, será justo atribuir o mesmo privilégio aos (já) veteranos do da Geórgia. BEASTMODE 2 é para ouvir, como um dia disse Ace, “bem alto, no autocarro de phones ou a pé para o trabalho”. Só isso. Sem grandes expectativas e, de preferência, sem foco — se a arte (também) serve para distrair, poucas obras serão tão indicadas para o efeito quanto esta, e tentar absorvê-la não trará nada de benéfico. A história destes dois já está feita e o resto é apenas uma mistura de trabalho com entretenimento que pode ultrapassar a atmosfera ou, como agora aconteceu, ficar em órbita a marcar presença.