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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/11/2022

Um disco que entende quando um loop deve terminar.

funcionário: “Cavalcante é o som do cavalgar de toda a gente presente no disco”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/11/2022

E eis que funcionário lança o seu novo álbum, Cavalcante, que pode bem ser a sua melhor obra até à data. Dois dos colaboradores são Gabriel Ferrandini e Pedro Sousa, o que desde logo indica o que podemos esperar – mesmo que este Gabriel e este Pedro não sejam aqueles a que estamos habituados.



O texto de apresentação deste novo Cavalcante aponta a influência de Jon Hassel sem qualquer prurido, ao contrário de outras obras alinhadas com a ambient music que têm sido editadas por cá e não o mencionam. Se, de facto, essa referência se faz sentir, há algo de Hassel que não está presente: a música deste sustentava-se no relacionamento do seu instrumento com a electrónica, enquanto neste álbum é o sampling que baseia e envolve cada um dos temas. Mesmo os músicos convidados, Noiva, Gabriel Ferrandini, Pedro Sousa e Adriana João, são samplados, ou pelo menos processados de alguma maneira. Seria um bom princípio de conversa falares sobre esta ligação não-passiva entre funcionário e Jon Hassel. 

A título de referência para esta entrevista, o disco foi fechado no início de 2020, para bem e para mal, antes de conhecer o trabalho importantíssimo do Jon Hassell (a pandemia trouxe muita coisa boa). Importante referir também que o texto de apresentação foi escrito pelo André Santos, um dos manda-chuvas da Holuzam. Deixa-me trazer também outro nome à conversa, igualmente sublinhado indireta e diretamente no meu trabalho: Yasuaki Shimizu, particularmente o disco Music For Commercials. Aqui temos um saxofonista / produtor e mais que trabalhou muitos tipos de sons diferentes – aconselho a audição para entendermos o que está aqui a ser falado- Este último é um projecto variadíssimo que consiste em músicas curtas, compridas, abstractas, pop, etcs para anúncios. Knorr, Honda, Shiseido (…) Tanto o Jon Hassell como o Yasuaki Shimizu têm o próprio instrumento acústico de sopro que toca, eu não tenho nada disso, apenas o restante que eles também têm, amigos músicos sem medos de experimentar. O meu trabalho passa por eles no sentido em que também produzo, misturo e altero gravações acústicas de todo o tipo de instrumentos + TUDO O RESTO. É tratar a voz como um violino e o oposto. Muito sampling como o Shimizu e muito processamento de sopros como o Hassell. Os músicos que tocam neste disco são todos os que estão na contracapa do disco, não apenas os aqui mencionados.

O meu background sonoro passa por virtualmente todos os cantos da música embora com um gosto especial pelo que me faz sentir. Vejo-me em Setúbal a fazer algo meu, e não de cá, nem de música. Já vi a Ramzi a passar-se com perguntas mais soft. Em suma, é seguir em frente, em todos os sentidos.

O que me chamou a atenção desde logo no disco foi a especial atenção dada ao som, ou mais especificamente aos tratamentos feitos à volta dos timbres e dos pitches das tablas indianas e da harpa (ou será uma kora?), que são recorrentes. É uma premissa do álbum, e da sua música em geral?

Todo o processamento foi feito em super tempo livre, muita experimentação, muitos anos a escavar, como em escultura, à procura, através de um processo de redução de material para criar uma forma qualquer, sem a saber à priori. Samplando coisas da net, coisas que gravei com amigos, coisas minhas. Isto é algo que eu faço porque me apetece e porque não sei melhor.

Outro factor interessante é o lugar que dá a Britot e trash CAN na composição e na produção de duas peças, “En Garde!” e “Au Orvalho”, sendo que, no caso de Britot, é logo a faixa de abertura. Porquê?

O Bitrot aka Ben já tocou muitas vezes a acompanhar-me ao vivo em concertos de funcionário. É a pessoa que talvez perceba melhor o que estou à procura para este meu projecto. Tocou vários sopros, synths e afins, co-produziu essa faixa e mixou o disco. O trash CAN aka Luan toca comigo em Império Pacífico e começámos a fazer música juntos. Ao início Império Pacífico soava mais assim, quando éramos mais nós os dois em vez de banda. Tocou e co-produziu.

Todos os temas de Cavalcante são de curtíssima duração, entre os 00:48 de “Sadino Queue” e os 03:16 de “Verde”. É como se o álbum funcionasse como uma colecção de sketches, de miniaturas. Expõe-se uma situação e esta termina quando menos esperamos, não havendo propriamente resolução. Como nem sequer se trata de uma adopção do formato pop, quais foram as directivas ou o alcance intencionado?

A última faixa tem 6 minutos e 40 segundos. Tive aulas com Alexandre Estrela na faculdade, foi aí que acordei para a necessidade de saber quando o loop deve acabar. Tudo sentimento.

Ao mesmo tempo, fica-se com a sensação de que tudo funciona no seu conjunto, que uns temas se remetem para outros, como se fossem faces de um mesmo prisma. Uma peça parece completar-se em outra(s), e não apenas na que vem a seguir. É assim?

Excelente questão. Cavalcante é o som do cavalgar desta gente toda aqui presente no disco. Fico feliz que isso tenha transparecido.

Há uma certa noção do que é considerado “bonito” ou, mais classicamente, de belo. É um fundamento no conceito aplicado? Porquê, muito concretamente?

Fui à procura daquilo que me apetecia ouvir na altura que o fiz.

O que o motivou a incluir como convidados dois músicos que trabalham na área do avant-jazz e da música livremente improvisada, como Ferrandini e Sousa, transformando até o som habitualmente áspero deste último em algo de suave?

Não só estava a trabalhar com o Gabriel Ferrandini na altura (no último disco dele) e tive acesso a muitas gravações que ele fez, como de uma forma mais despreocupada me ia juntando com o Pedro Sousa para gravarmos e fazermos o que nos apetecesse em estúdio. Apetecia-me ouvir algo que eles nunca tinham feito, principalmente o Sousa, vi isso como um desafio quase involuntário ao trabalhar com ele.

Cavalcante é um trabalho de looping por camadas e de desconstrução das notas (geralmente poucas) surgidas nos samples, com esses loops a complexificarem as vertentes (poli-)rítmicas e harmónicas que nos conduzem, por vezes, ao inesperado ou nos deixam suspensos. Encontramos isso em Hassel e em Brian Eno, sem dúvida, mas torna-se impossível não pensar no minimalismo de um Steve Reich. Há também essa referência?

Steve Reich? Muito relevante para o meu trabalho. Adoro a música dele. Todas as músicas do disco começaram como loops. Do ponto de vista da pessoa que fez a música do Cavalcante, posso dizer que a óptica era mais esculpir por processo de redução a camada sonora que criei no Ableton, que era cada música/loop e não tanto como o amigo Reich fazia.

Cavalcante sai em vinil. Alguma motivação particular para essa opção de superfície, seja a objectual ou em termos de som?

Apeteceu-me lançar aquelas músicas em vinil e à Holuzam também. Pode-se dever também ao facto de gostar que as pessoas tomem uma audição mais atenta que talvez não se consiga tão facilmente no touchscreen, se bem que o disco foi feito no mundo digital e não só há formato digital à venda/pirateado na net como também aconselho vivamente uma audição deitada e de fones, sozinho, tal e qual como preferia ouvir o disco quando o estava a limar.


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