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Fotografia: Carolina Santiago
Publicado a: 15/07/2025

Do trio de Fred Hersch à música de Maria Schneider & Orquestra de Jazz do Funchal.

Funchal Jazz’25 — dia 3: franjas de poesia circundante

Fotografia: Carolina Santiago
Publicado a: 15/07/2025

No fecho do festival Funchal Jazz houve poesia do princípio ao fim da noite de 12 de Julho. O céu mais profundo e sereno de todas as noites, frescura celeste, algumas estrelas para um nascer da lua no Atlântico como não antes vista. Reflexos da música em palco ou, bem mais real, como acompanhamentos a condizer com os sons vindos ao prado do Parque de Santa Catarina. “Que noite magnífica para se tocar e ouvir música!” — mote expresso pelo pianista Fred Hersch, num das primeiras intervenções feitas ao leme do seu trio. Uma noite ideal para navegar, e também Maria Schneider trouxe essa motivação ao final do seu concerto dirigindo a orquestra de jazz da terra insular.

Precisamente Hersch, que deu uma aula magistral no Conservatório do Funchal. A última do alargado programa de masterclasses programadas durante a semana, onde houve lugar para outros músicos, nos dias anteriores. Começando Perico Sambeat sobre “Rhythm and Improvisation”, sucedendo Maria Schneider em “Composition: Discovering your own musical DNA” e Jim Black abordando o tema “Everything you want to know about groove and were afraid to ask”. Hersch, no dia 11 explanou — e com música — o que se pode retirar e esperar desse espaço do “Deep Listening”. Ele que foi deixando expresso, entre a plateia em grande medida feita de novos músicos, que importante é “tocar por diversão, tentando uma prática pela experimentação, e ousar na criatividade”. Uma ideia e lugar a ter em absoluta presença na abordagem musical. Para Hersch, o tocar deve ser “muito mais na intencionalidade que na intensidade”, mas advertindo que ele mesmo se escusa a acreditar no sempre e no nunca. É uma longa trajectória dedicada à prática do piano, e com os seu companheiros de trio presentes não envida a tocar um par de temas do seu muito fresco novo álbum The Surrounding Green pela ECM. Com Drew Gress no contrabaixo e Jochen Rueckert na bateria, o inescapável tema “Anticipation” soube a prenúncio do que se ouviria em palco.

Um concerto pleno de lirismo, assim como a voz de apresentação o sublinhou. Paulo Barbosa, enquanto director artístico e que tem esse toque extra em cada concerto, chama os músicos e a música ao público. Começo em discurso aberto e confesso ao que o traz com o tema-título “The Surrounding Green”. Esse espaço de inspiração para a composição de Hersch e que é devolvida em grande medida no que se escuta profundo no prado verde. Harmonia ajustada e todo um alinhamento por diante. O toque de Hersch traz uma indisfarçável presença de tons brasileiros, como o de Gismonti. A confirmar isso serve “Palhaço”, composição de Egberto Gismonti. Mas mesmo o da sua autoria, que serve em seguida, a tal “Anticipation”, tem essa legado. Gress e Rueckert estão a tocar ao seu lado mas em sintonia lírica, como se nada perturbasse o seu piano, o que representa suporte e volume sem ser um concerto solo. Até que o trio traz uma combinação de temas e em “Lonely Woman”, de Ornette Coleman, divergem e exploram. São de facto três em palco, mesmo de olhos bem fechados. Um tema que Coleman inscreveu nesse seminal álbum que como em título mudaria a forma do jazz por vir. Há lirismo melancólico a ceder a estruturas melódicas incomuns e dando lugar ao improviso e experimentação — vê-se Hersch a mergulhar nas cordas do piano. Rueckert é uma leveza nas vassouras em grande medida da actuação, mas neste tema tem um fulgurante começo a solo de baquetas felpudas. Visitam “Embraceable You” de George Gershwin, e fica bem ilustrado em palco, como também no álbum novo, como Hersch adora fazer da música dos outros a sua também, mas intervindo numa apropriação como o bom diseur de poesia alheia. Uma revisitação a Monk aparentou o fecho de actuação. Mas deu-se um regresso para um solo deslumbrante, em que Hersch serve o tema “And So It Goes” de Billie Joel. As “palavras” ficam ditas nas teclas do piano, nesse lirismo de que subentendeu parte do refrão que a música contém: “And this is why my eyes are closed / It’s just as well for all I’ve seen / And so it goes, and so it goes / And you’re the only one who knows”.



Maria Schneider, que passou uma semana na ilha a ensaiar a sua música com a Orquestra de Jazz do Funchal, estava agora prestes a ter todo o palco. Esse lugar cimeiro para a música vê-se encher na total dimensão. Uma orquestra a que se assomaram uns quantos convidados extra-insulares e de relevo: Perico Sambeat no saxofone alto, soprano e flauta; João Barradas no acordeão; e José Diogo Martins no piano. Uma orquestra que tem dois elementos muito responsáveis pelo impulso criativo e jovem que a ilha tem na música jazz. Alexandre e Francisco Andrade são trombone e saxofone tenor, mas são além disso catalisadores de novos fluxos musicais. Sem a sua presença a realidade era outra. Schneider sabe-o e comenta isso mesmo concerto adiante, numa das várias ocasiões em que apresenta os músicos que tornam possível a sua música. Além de Andrade, o naipe das trompetes e fliscornes conta com Rui Vidal, Henrique Pinto e Vasco Moreira. Um degrau abaixo na escadaria dos metais encontram-se Xavier Sousa, Luís Rodrigues, Ricardo Sousa e Francisco Pestana. Na frente, na linha das madeiras, além da presença de Perico Sambeat e Francisco Andrade tem Tomás Noronha e Francisco Aguilar nos saxofones, Vítor Fernandes também no clarinete baixo e Ana Catanho na flauta e flautim. O orquestra tem na secção rítmica mais jovens músicos como Emanuel Inácio no contrabaixo e Francisco Coelho na bateria. Juntam-se Bruno Ponte em guitarra eléctrica, José Diogo Martins no grande piano e João Barradas no acordeão — três músicos convidados. Em entrevista ao Diário de Notícias (Madeira), declarava Schneider como ficou realmente surpreendida com a qualidade e o talento dos músicos que veio a encontrar e a trabalhar na ilha. Destacando que “há músicos muito jovens na banda que são mesmo muito bons. Fiquei… maravilhada.”

No concerto derradeiro no palco principal, o maravilhamento passa a ser colectivo: da maestrina, dos músicos e da plateia — a maior das três noites. A música de Schneider é dessa ordem de grandeza, pelo requinte, a combinatória instrumental e a melodia poética que inscreve em cada tema seu. Todo o programa da noite é da sua autoria e confirma-a como uma das mais fabulosas compositoras para big bands em todo o mundo. Despontam com “Bluebird”, tema feito de intricadas linhas e melodias, como voos de aves canoras. O desprendimento dos trombones definem a dimensão do espaço que os demais sopros percorrem. Os solos de Sambeat no alto e Barradas no acordeão fazem as delícias logo no primeiro dos temas apresentados. Outros se sucedem-se e são referidos como monsters e bombs, pela própria maestrina e compositora, dizendo bem da grandeza das composições. Há um começo de espairecer, através dos trombones em modo surdinas, escutam-se solos deslumbrantes, do saxofone tenor de Francisco Aguilar ao de Xavier Sousa em trombone. Noutro tema, como que uma bomba em azul vem em seguida, e chega-se à frente o solo de trompete entusiasmante de Henrique Pinto, acelera no trombone a solo Ricardo Sousa e que o contrabaixo de Inácio suporta em grandeza empolgante até ao momento do alto de Tomás Noronha assumir um cume. Depois houve uma peça que cativou pelo brilhantismo e finura do acordeão de Barradas. Um divertido duelo de trompetes é apresentado com Alexandre Andrade e Henrique Pinto em “Dance You Monster to My Soft Song” e que traz à cena uma cadência rítmica empolgante, cheia de trama e narrativa que chama pela guitarra de Bruno Ponte, em partes bem trabalhadas na secção rítmica da orquestra. Schneider traduz no rosto esse maravilhamento, a sua condução é emocional e expressiva, a estante de partituras é tantas vezes deixada de lado. A maestrina conduz junto aos músicos, dedicada a cada naipe, a cada voz, a cada um deles, como que pedindo expressão poética.  

“Walking by flashlight
at six in the morning,
my circle of light on the gravel
swinging side to side,
coyote, raccoon, field mouse, sparrow,
each watching from darkness
this man with the moon on a leash.”

A poesia de Ted Kooser, trazida para o palco por Schneider, servindo de apresentação ao tema “Walking By Flashlight”, que traz lirismo em absoluta medida, escrita para 5 partes de solo de palhetas. Aqui é servida para um enternecedor saxofone soprano de Sambeat. Um poema musical sobre o homem que caminha na neve antes do solo nascer — privando-se dos seus primeiros raios de luz directa. Também Schneider madrugou neste dia para ver a luz a romper no mar, lá no cimo da ilha, comenta na apresentação do tema. Simples e directo à compaixão, um dos momentos deslumbrantes do concerto. Com “Coming About”, tema de encerramento, vem a ideia do velejar. A noite estava bem propícia a isso. Schneider é velejadora nos lagos interiores do Minnesota natal. Nesta composição pretende a autora transpor a maravilhosa sensação de navegar à vela. Uma peça escrita para orquestra com solos de saxofone tenor e piano. Para tal esteve Francisco Andrade na frente em dois momentos distintos, como que dois grandes bordos num marear tranquilo e muito de uma brisa tão a favor servida pelo brilhantismo e a deliciosa lírica ao piano de Diogo Martins. Que melhor forma de fechar um concerto, um festival e uma noite de música verdadeiramente poética se poderia imaginar?


Ricardo Vicente Paredes viajou com o apoio da Associação de Promoção da Madeira.

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