Na ilha da vegetação da laurissilva, outras luxuriantes presenças se fazem notar no encanto. Há um convite à beleza da existência, seja na paisagem ou naqueles que a povoam e visitam. As noites do Funchal Jazz trazem esse perfume ao prado do Parque de Santa Catarina. A segunda noite de palco principal do Funchal Jazz, dia 11 de Julho, foi feita desse inebriar pela música. Contudo no final deu para entender, também nestes campos, que nem tudo o que reluz é ouro. Dois concertos contrastantes precisamente na leitura e entendimento vindos do brilho nos acessórios da música. O que se guarda para depois, o que fica no interior a ressoar, é de diferentes ordens de grandeza.
Uma das formações mais longevas no jazz português faz, neste 2025, três décadas de existência. O compositor e contrabaixista Carlos Bica, quando se mudou para Berlim, viu actuar o guitarrista Frank Möbus, e disse para si próprio: “Um dia quero tocar com este gajo”. Assim, como recordou em palco, na mesma noite que celebrou o seu aniversário a tocar na ilha da Madeira pela terceira vez com o seu projecto de vida — Azul — junto a Frank Möbus e a Jim Black na bateria. Editavam em 1996 o primeiro registo e homónimo dessa cor do céu e do mar, numa música que se ouve hoje como um marcante momento. Ideias melódicas simples e directas a definirem canções que o tempo soube guardar da melhor forma, pois é aí que se revela o brilho das coisas boas. Sucederam mais álbuns, e é ao marcante Believer que vão retirar “John Wayne” com que abrem o concerto desta noite. Sucedem-lhe “Lã e a Neve” do disco More Than This e “Canção Vazia” do anterior Things About, ambos editados pela Clean Feed, a editora que acompanharia os restantes capítulos de Azul e de Bica.
O concerto desenha uma aura como que num baixo relevo, a atração está na descoberta e no envolvimento que pede uma ligação que de facto é conjunta entre músicos e plateia. Aliás, encontra-se mais relevo até no baterismo fulgurante de Black, uma luz imediata e atractiva ao primeiro escutar. Essa evidência fica bem exemplificada em “11:11”, pela introdução servida em baquetas. Tema que Bica inscreveu com o seu quarteto, nesse excelente álbum de 2024 com o mesmo título, numa vida além do seu trajecto Azul. Invariavelmente surge alinhado “Believer”, que tem provavelmente a mais icónica linha do seu contrabaixo. Ainda apresentam “Lucky”, que Bica aproveita para expressar o que significa tocar com estes companheiros a sua música — um sortudo. Seremos nós também ao receber uma mestria musical como esta, que entra sem intrusão e fica para durar, em 30 anos de um Azul profundo e marcante. “P-beat” sela uma actuação discreta mas efectiva, por dispensar o foco para atingir a projecção longínqua — para isso está a música.
Neste segundo dia, houve ainda a presença de Lakecia Benjamin no Funchal Jazz. A compositora e saxofonista americana é, assumidamente, uma figura que se quer mitificar antes mesmo de o conseguir ser. Tem tido todo os focos e luzes da ribalta apontados à sua personagem de forma histriónica. Bastam segundos do seu espectáculo — mais até que concerto — para se imaginar o restante, na musicalidade que condiz com a estética de palco. É por isso que entra em cena mais tarde, bem depois dos restantes músicos que a acompanham — Oscar Perez no piano, Elias Bailey no contrabaixo e Quentin Baxter na bateria — darem início à acção. Muito brilho, euforia e desejos de máxima atenção. Muita proclamação de amor, paz e… redenção ao espírito pastoral de Benjamin. Tem no álbum Phoenix de 2023, como que um renascimento pós-traumático e uma força de para fazer viver — sabendo da história contada, isso até faz sentido… Mas a vida, e mesmo a de placo, é feita de outros momentos, outras narrativas pelo meio. Contudo, Lakecia Benjamin aponta para o alto constantemente, assim como toca bem alto o seu saxofone alto — tudo alto e reluzente! Ambiente de festival perante uma vasta plateia, parece resultar num habitat perfeito, e assim se produz um espectáculo. A que não faltem outros, trazidos à festa de celebração, e assim acontece com “My Favorite Things” de Coltrane e “I Wish I Knew How It Would Feel to Be Free” de Nina Simone — ícones na música que o tempo nunca apagará o brilho, certamente. Benjamin parece, contudo, querer e, com todas as suas forças, trazer e manter isso por perto da sua música também. Mas será com total generosidade? É caso para perguntar, mesmo que a resposta surja além do palco para Lakecia Benjamin. O que torna a música e os músicos brilhantes serão mesmo os focos de luz, o reluzir das lantejoulas e até o tocar mais alto?