Na ilha da Madeira, o Funchal Jazz conta com tantas edições quantos os anos deste milénio. Tem marcado o panorama musical da cidade e é um evento social aguardado pela comunidade cultural local. Há uma combinação de vários factores para essa razão, desde logo a localização imbatível: num jardim altaneiro como o Parque de Santa Catarina — um prado virado para a baixa da cidade, sobranceiro ao mar, cuja luxuriante flora envolvente cria um cenário edénico. A programação inclui uma leitura atenta à dinâmica actual do jazz das duas margens do Atlântico. Voam livres as borboletas-monarcas e as endémicas lagartixas-da-madeira aproveitam os raios de sol. Conjugadas as partes, revela-se o acontecimento, e que nas últimas edições tem sido pontuado por uma antevisão das festividades no anfiteatro ao ar-livre do jardim municipal.
Tal programa de arranque, de entrada livre e com concertos ao final da tarde, teve nas actuações de dois compositores e guitarristas madeirenses palco de desfecho desta edição. No dia 9 de Julho actuaram duas visões que caminham em destintos sentidos. Primeiro o quinteto de Filipe Freitas (na guitarra eléctrica), com José Diogo Martins ao piano, Francisco Andrade no saxofone tenor, Ricardo Dias no contrabaixo e Luís Caldeira na bateria. Um repertório inédito que espelha a frescura autoral de Freitas enraizada numa tradicional guitarra jazz mas contemplando elementos de exploração tímbricas e texturais. Viu-se nas ousadias de Andrade no tenor, com a colocação de objectos inusitados na campânula, como que criando surdinas inesperadas nessa procura sonora. Mas houve no tema “Ossos e Frutos” uma expressão esclarecida desta música, uma progressão sustentada que se escuta do piano, evolui com a guitarra e ganha volume com o contrabaixo. A merecer um registo que a torne ao alcance de outros mais que aqueles que vieram escutar a música entre os chilreios das aves do jardim. Sob a identidade de Benji’s Toolbox, o compositor e guitarrista Bruno Ponte mostra a sua galhardia autoral através de um sexteto idealizado para os dias que aí virão. Conta na voz com Maria Luísa, no saxofone tenor Francisco Aguilar, no piano Luís Lélis, no baixo eléctrico Diogo Alexis e na bateria Ricardo Oliveira. Têm um primeiro registo, lançado neste ano, em Making a Toolbox, de que fazem constar parte do alinhamento em palco. Mas o caudal criativo de Ponte traz mais dois temas inéditos, apresentados pela primeira vez ao público — um sinal de vitalidade. Uma deles composto em modo balada com um outro inventivo e irrequieto compositor que é Tom Maciel, que se revelou com Cíntia. A música de Ponte com Beiji’s Toolbox traz uma brisa que refresca e ascende, muito envolta num guitarrismo em espirais cumuladas que chegam a encontrar nas melodias vozeadas de Luísa camadas estratosféricas. Terminam a prestação, ainda que sem saber disso, numa ligação perfeita ao que o programa viria a trazer ao palco principal no dia seguinte, com “A Tin Can’s Pulse” — assente numa construção em loop.
O acordeonista João Barradas tem honras de abertura do palco principal do cenário montado no Parque de Santa Catarina. Para isso apresenta-se em formato trio com André Rosinha no contrabaixo
e Bruno Pedroso na bateria, mas contando, como convidado especial vindo do outro lado do Atalântico, com o guitarrista Jonathan Kreisberg. Esta conjugação em palco torna a ocasião num cruzamento harmonioso entre a música de ambos compositores — uma guitarra harmonizada por um acordeão sempre que se escutam as composições de Kreisberg, e um acordeão MIDI a convidar as cordas no processo de harmonização à musica de Barradas. A dupla do tempo e ritmo de Rosinha e Pedroso funciona como uma estrutura fluida mas de relevante sustento. Os dois primeiros temas são de Kreisberg, mas poderiam até ter sido de Barradas, dada a estrutura que vai apresentando noutras composições suas. A escolha e convite é por isso muito propositada. Mas com a peça para vocoder de Barradas entra-se num espaço futuro onde, tema adiante, ao binómio acordionista–vocalista modulados num só tempo se juntam as demais instrumentações para o presente. A ideia mais recente que Barradas tem vindo abordar no cromatismo em fole é melhor expressa com a indicação expressa do seu programa Aperture. Em “Escadas” há essa circulação modulada por uma ideia visualmente tão bem ilustrada pelo genial Escher. Uma ascensão circular, em que se retorna ao mesmo lugar, mas com uma progressão idealizada e de que se guarda um sentido de progressão. Musicalmente, esse desenho melódico foi trabalhado desde o tempo de Bach e dos temas para cânone. Contudo, na modernidade é retomada amiúde esta ideia, e na estética hip hop é sobejamente utilizado pelo recurso ao loop como ferramenta de melodia cíclica sobre a qual se estabelece um ritmo. Eis que, sem quase se dar conta, estava dado outro passo ao patamar seguinte no programa.
Ambrose Akinmusire é actualmente um dos sopros mais inventivos na composição jazzistica. O seu último trabalho, honey from a winter stone, editado pela Nonesuch Records neste ano, acresce em dimensão à sua música. Um programa trazido ao palco do Funchal num arrojo tanto composicional como na própria programação do evento. Um palco para nove músicos, com Akinmusire a chamar, além do seu quinteto com Sam Harris no piano e teclados, Reggie Washington no baixo eléctrico, Justin Brown na bateria e o mestre de cerimónias Kokayi na voz, também um quarteto de cordas. Desta feita, ao invés do disco, está o North Sea String Quartet — George Dumitriu e Pablo Rodriguez em violinos, Yanna Pelser na viola d’arco e Thomas Van Geelen no violoncelo. Esta música de Akinmusire alia criatividade e emoção. Vai beber à influência do compositor Julius Eastman. Sobre essa fonte ficam as palavras profundas do MC Kokayi, toda uma reflexão da pessoa negra, dos seus medos e conflitos.
Toda a música aqui é um fluxo, incorporando elementos que vão da música de câmara ao hip hop, numa possibilidade viabilizada pela mestria de Akinmusire enquanto compositor. Ouve-se uma odisseia textural perdurada, em que o trompete intervém com rasgos discursivos que ampliam as palavras e devolvem arrojadas frases que exploram outras possibilidades imaginadas — do som ao desejo social. Como nesse “Bloomed”, onde uma floresta se começa por desenhar em exploratórios significados através dos sons contemporâneos das cordas do quarteto. Depois, um aturado e gigante interlúdio feito em solo de bateria de Brown é capaz de demonstrar uma sincope abusada, devolvendo festividade além dos compassos hip hop, em que houve muita mais palavra para se escutar. Debitando Kokay um discurso com referências a essa Babilónia, tudo isso numa trama envolvendo pizzicatos e mais tarde abrindo para um portentoso e esclarecido discurso de Akinmusire na trompete. Sopro esse que teve sempre duas vias à disposição — uma ecoando as frases, ampliando-as, e outra limpa de efeitos, directa e acutilante. Um ensemble alargado nas ideias e interventivo na música, que procura um melhor entendimento social. No final, Akinmusire estava radiante e muito agradecido ao quarteto e à presença de todos que deram com a sua música um desejado salto — em loop, mesmo que por uma noite de Verão num jardim à beira mar.