pub

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Lucília Monteiro
Publicado a: 25/11/2025

Entre a tradição e o risco.

Frederica Vieira Campos: a harpa que respira neblina

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Lucília Monteiro
Publicado a: 25/11/2025

[O Nascimento do Som]

Há artistas que tocam instrumentos. E há artistas que fazem do instrumento uma extensão do corpo — uma forma de respiração. Frederica Vieira Campos pertence a esta segunda linhagem.

Nasceu no Porto, cidade de pedra húmida e horizonte líquido, onde o vento se confunde com memória. Cresceu entre o rumor do Douro e o eco dos eléctricos, aprendendo cedo que o som não é apenas o que se ouve, mas também o que permanece suspenso entre o ouvido e o invisível.

Na infância, talvez sem o saber, começou a esculpir o silêncio. A harpa chegou como uma aparição luminosa — um instrumento de madeira e metal capaz de traduzir o que o corpo ainda não sabia dizer.

[As Cordas do Mundo]

Com apenas vinte e cinco anos, Frederica transporta consigo uma maturidade sonora que desmente a cronologia. Licenciada em harpa pelo Royal College of Music de Londres, onde estudou como bolseira, mergulhou num ambiente onde a disciplina clássica convive com a sede de inovação.

Entre partituras, ensaios e o silêncio rarefeito das salas de estudo, aprendeu que tocar não é repetir o que foi escrito — é escrever o que ainda não existe. Em Londres descobriu o poder do gesto: a harpa, ao vibrar, não produz apenas notas; gera campos de energia, projecta memória, constrói espaço. E foi nesse espaço intermédio — entre o som e o tempo — que Frederica começou a habitar.

[O Corpo Acústico do Futuro]

De regresso ao Porto, inscreveu-se no Mestrado em Artes e Tecnologias do Som na ESMAE, movida por uma curiosidade que ultrapassa a técnica. Não se trata de dominar o instrumento, mas de o questionar.
Que acontece quando o toque é amplificado, processado, multiplicado em ecos?

Frederica encontrou na electrónica uma nova forma de respiração: o prolongamento digital do pulso humano. A sua harpa é agora também uma máquina de metamorfoses — o som respira, dobra-se, reflecte-se em delay, dissolve-se em reverberação. Entre a tradição e o risco, ela constrói pontes entre séculos.

[A Música como Corpo Colectivo]

O universo de Frederica expande-se para lá da música enquanto objecto estético. Há nela uma necessidade de relação: a música como prática comunitária, como território partilhado. Participa em colaborações interdisciplinares com dança, vídeo e performance, onde o som é matéria viva e o corpo é o primeiro instrumento.

A sua harpa dialoga com gestos, luzes e respirações alheias — transformando-se em estrutura coreográfica, superfície de contacto, corpo de ressonância. Na intersecção entre o clássico e o contemporâneo, a artista faz emergir uma linguagem própria: híbrida, líquida, permeável. A harpa deixa de ser símbolo de erudição; torna-se um organismo poroso, capaz de absorver o caos e devolver-lhe harmonia.

[Conversa em Lisboa: A Harpa Eléctrica e o Corpo que Ouve]

Encontrámo-nos num fim de tarde húmido em Lisboa no meu estúdio. Frederica chega com um ar tranquilo e curioso, uma presença discreta mas cheia de energia interior. Fala depressa, como quem ainda se espanta com as próprias descobertas.

Qual é o nome que usas para os concertos?

Frederica Vera Campos.

És autodidacta ou tens estudos musicais?

Tenho estudos, sim. Fiz o conservatório.

Quantos anos estudaste?

Desde os cinco anos. Depois segui o percurso normal clássico, até à licenciatura.

E essa licenciatura foi também em música?

Em música clássica, em harpa. Fiz em Londres, no Royal College of Music.

E depois? O que estás a fazer agora?

Depois fiquei com vontade de tocar música improvisada, música experimental. Foi em Londres que comecei a aprender… Mas também vinha muito cá ao Porto. Sou do centro, de Cedofeita. Vi o filme Sisters with Transistors, sobre as grandes mulheres da música electrónica, e percebi que esse podia ser um bom caminho. A partir daí, inscrevi-me no mestrado em Artes e Tecnologias do Som na ESMAE, que estou agora a terminar.

Começaste então com improvisação total?

Sim. No início usava a harpa de pedais e o computador. Processava o som em tempo real com o Ableton Live.

E quando é que surgiu a harpa eléctrica?

Comprei uma à Angélica Sálvi, que tinha sido minha professora. Ela queria vender a dela, e eu fiquei com o instrumento. Depois o Gustavo Costa falou-me do no input mixing — tocar com mesas de mistura, ligando saídas às entradas, tornando a mesa num instrumento. Pedi uma mesa emprestada a um amigo, o Sérgio Cachibache, e ele deu-me uma TAPCO MIX 220 FX, já velhinha. É com essa que toco. É o meu novo bebezinho.

A harpa passa pela mesa?

Sempre. E o som é imprevisível — às vezes há ruído, interferências… Mas eu gosto disso. A mesa parece ter vontade própria.

Usas a harpa eléctrica de que forma?

De forma tradicional, mas por vezes preparada: ponho ferros, molas e outros objectos nas cordas.

Falaste num projecto com uma bailarina…

Sim, com a Beatriz Moreira. Chamamos-lhe “Festa do Pijama”. A ideia é simples: duas amigas, domingo à tarde, uma dormiu em casa da outra, não há nada para fazer. Usámos um telemóvel antigo como microfone ligado ao Ableton e um telefone analógico que parecia funcionar, mas era tudo encenação. Ela falava para as colunas com efeitos, e eu punha samples de telefones a tocar. Era tudo mentira — o telefone nem estava ligado! [Risos] É uma mistura entre música e performance. Às vezes levamos sininhos e brinquedos. Tudo muda conforme o dia.

E o teu projecto “Well That Was Quick, Wasn’t It?”?

Foi a minha primeira aventura pela electrónica, em 2022. Fiz para uma cadeira da licenciatura, mas apresentei-o várias vezes. Tem harpa e Ableton. É sobre o tempo e as várias versões de mim. Usei vídeos que fui filmando entre 2019 e 2022. Há uma backing track feita com samples que eu própria gravei — sons de harpa, de papel, de chaves, de bancos de piano a ranger, da janela da sala de harpa da faculdade… Tudo processado até quase deixar de ser reconhecível. Quando toco ao vivo, o filme passa e eu toco por cima. É um diálogo entre as minhas versões passadas e a presente. Estou a tocar comigo própria.

Fala-me da tua peça de mestrado, “Velcro e Cola Branca”.

No início queria musicar uma peça de dança, mas percebi que o que me interessava era construir instrumentos. Inspirei-me na Sonoscopia, no Gustavo Costa e na Luísa Saraiva, que usa objectos sonoros criados por ela. Quis fazer instrumentos que se tocassem com o corpo inteiro, um híbrido entre dança e música. Na minha peça, a dança cria o som em tempo real. Fiz fatos de roupa em segunda mão com velcro, e cada andamento correspondia a uma família de instrumentos com nomes onomatopaicos: Grr Grrr, Tlim Tlim Tlim, Pum Pum-tac Xá, Uóu uóu, wi wi wiConstruí tudo com o meu avô, na oficina dele. Usei metais da sucata, flautas alteradas pelo Gustavo, sistemas de feedback com colunas e microfones presos ao corpo. O som surgia da aproximação física.

E quem participou?

O meu irmão Vicente Campos e a Marina Gouveia. Eu também estava em palco.

Quando apresentaram?

A 5 de Setembro, no Quarteto de Contratempos. Casa cheia. Foi perfeito.

E agora, há novos projectos?

Sim, tenho um projecto com a violoncelista Bruna Moura, chamado “URTIQA”. Vem da palavra “urtiga” — uma planta mal vista, mas medicinal. O nosso som também é assim: por vezes abrasivo, por vezes modal e bonito. Tocámos juntas pela primeira vez no Festival Apura, em Coimbra. Foi o nosso primeiro encontro real — ensaiámos na varanda do Salão Brazil e tocámos à noite, completamente improvisado. Agora vamos tocar no Space Festival, em Novembro [o evento aconteceu no passado dia 13 e foi reportado por cá].

[Três Espelhos do Som: A Matéria, o Corpo e o Grito]

Em “Well That Was Quick, Wasn’t It?”, Frederica faz da harpa um laboratório de ecos. Cada corda, ao ser tocada, expande-se em espirais de ressonância que parecem prolongar-se pela própria atmosfera. O som nasce e dissolve-se em ondas que respiram com a natureza. As percussões subtis nas cordas — raspadas, dedilhadas, quase acariciadas — criam pequenas pulsações, instantes de matéria viva. Entre elas, o som concreto surge como fragmentos do quotidiano reconfigurados: o ranger de um banco, o estalar de um papel, o rumor do ar sobre o metal. Tudo se funde em texturas electrónicas que nunca se fixam, ostinatos de energia que oscilam entre o humano e o mecânico. O resultado é uma peça de verdadeira música acusmática, onde o espaço é tão importante como o som, e onde a escuta se torna acto espiritual. Os timbres etnográficos, as gravações processadas e a harpa digital transformam-se em ecos da Terra — uma obra-prima da música concreta, luminosa e inquieta, feita de tempo e de pólen.

Em “Velcro e Cola Branca”, a harpa cede lugar ao corpo. Aqui, a música não vem das cordas, mas da fricção entre pele, tecido e gesto. O corpo torna-se instrumento, e o espaço transforma-se em partitura.
Os três performers — Frederica, Vicente Campos e Marina Gouveia — movem-se como se o som lhes brotasse directamente dos músculos. A roupa, coberta de velcro, é também o instrumento; colar e descolar passa a ser composição, o atrito converte-se em melodia. Cada movimento é um gesto musical, e cada som, um prolongamento do corpo. A música só existe se há movimento, e o movimento é, aqui, a própria música. Trata-se de uma criação radical, que funde coreografia e composição numa só respiração. O público não assiste: partilha um rito onde a imaginação se torna matéria sonora.
É um manifesto sobre a fusão entre som, corpo e gesto — uma das mais ousadas intersecções entre dança e música criadas em Portugal nos últimos anos.

No concerto na Mala Voadora, Frederica apresenta talvez a síntese da sua pesquisa. O espectáculo inicia-se com ruídos eléctricos — interferências entre inputs e outputs da mesa de mistura, agora assumida como instrumento musical. Desses zumbidos nascem pulsações electrónicas que evoluem em ostinatos nunca iguais, repetições assimétricas que criam um estado hipnótico. A harpa eléctrica entra então, primeiro tímida, depois plena, fundindo-se com o som da mesa. É impossível distinguir onde termina o ruído e onde começa o toque. Mesa e harpa respiram juntas — uma simbiose de timbres, frequências e acidentes. As notas longas da harpa, quase drones, cruzam-se com pequenas interjeições da mesa envelhecida, que responde como se tivesse alma própria. A certa altura, o som transforma-se em corpo — Frederica ataca as cordas com ferros, molas, dedos metálicos. O som da harpa torna-se matéria — raspa, estala, vibra. E quando o feedback começa a nascer, já não é ruído: é voz. O noise instala-se como lamento, alternando-se com silêncios longos e reverberações suspensas. É uma peça dedicada à Palestina, um grito de dor e de esperança, onde o som se faz acto político e elegia cósmica.
Aqui, a música não consola — desperta.

[Epílogo: A Harpa que Sonha com o Futuro]

Frederica fala como quem inventa um idioma novo: mistura o técnico com o instintivo, o digital com o afectivo, o rigor com a inocência. A sua música é feita de experimentação, amizade, ruído e memória.
Entre cabos, velcros e colunas antigas, há uma harpa que respira — uma harpa que, como ela, sonha com o futuro.


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos