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Publicado a: 09/12/2015

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[TEXTO] Sidónio Teixeira

 

Melhor do que ser reconhecido por algo, é receber mérito por mais qualquer coisa. Uma doutrina americana – “going the extra mile” -, ainda sem tradução capaz, é a máxima que se encontra no trabalho aqui apresentado. Shadow of a Doubt é um dos últimos foguetes do ano a ser lançado pela ESGN através da mão, voz e sabedoria tácita de Freddie Gibbs – referência que entre experimentalismos também deixou marca numa das peças do passado ano, Piñatalado-a-lado com a eloquência criativa de Madlib, que por ali cravou a hipotética sequela de Madvillainy.

Anotar o histórico de Gibbs é recitar um curriculum vitae: o MC tem tanto de experiência como de certificação de capacidades; as suas propostas convincentes, ao longo dos anos, provieram de estilos que podemos comparar não entre critérios “bom” e “mau”, mas sim entre “bom e “menos bom”. Numa avaliação conjunta, todos os seus trabalhos são peças que constroem uma credibilidade conquistada e que o tornam num rosto e voz únicos na cena hip hop proveniente do Indiana, na zona mais ocidental da Eastside. Faixa-a faixa, a narrativa, em muito autobiográfica, constrói-se à semelhança da ascenção e queda e de um herói ao estilo Scorsese: há prosperidade envolta em dependências, vícios, extremos e limites quebrados naquilo que foi a construção de um legado – o de Gibbs.

Se Piñata foi então a sua tirada mais experimental, cimentada sobre samples orgânicos e ritmos mais etéreos (porque trabalhar com Madlib é isso mesmo), Shadow… é o seu oposto: traz uma produção mais musculada, pesada e sombria – sinais claros daquilo que está inerente à passagem do tempo: a maturidade. A inspiração, essa, tanto vem de back vocals ao estilo Jeezy como em samples a partir de diálogos da série The Wire, introduzidos de uma forma inovadora e sugestiva, impendindo-nos de acreditar que o brio deste produtor tem limites. Mas a história não começa aqui.

Foi em 2006 que Gibbs assinou pela Interscope, aposta que precocemente viria a falhar quando o homem que lhe passou o contrato (Joe “3H” Weinberger) abandonou os estúdios da editora. O chão fugira-lhe dos pés, mas Gibbs soube sobreviver, para depois responder, puxando cartadas – entenda-se mixtapes – umas atrás das outras: midwestgangstaboxframecadillacmuzik (2009); The Miseducation of… (2009); Cold Day in Hell (2011); Baby Face Killa (2012) e, eventualmente, o destacável ESGN, de 2013, além do já falado Piñata. Não seria anormal que depois de um percurso destes Gibbs optasse por tirar férias, mas assim não foi. Este selfmade man preferiu sim continuar a trabalhar na divulgação da sua mensagem: seguiram-se festivais, tours e ainda dois EPs. Ah, e ainda conheceu a alegria de ver nascer o primeiro filho.

Tudo isto ajuda a explicar a maturidade com que Shadow nos chega aos ouvidos. Rearview, por exemplo, pontifica algumas das passagens mais marcantes dos últimos anos da vida de Gibbs, desde a luta pelo seu estilo – com trademark – próprio e que outros tentaram roubar, à dependência e sobrevivência de um passado afogado em drogas e comprimidos (“I bet you got it twisted, you dont know who to trust / So many playa-hatin’ niggas tryna sound like us (…) I bought a ounce of cocaine for I bent her over / And I remember when the boards used to put me out / Cars I was sleepin’ out / Pill hella heavy, hella bars I can’t even count / LA county jail and got my mom’s here to bail me out”.

Nesta narrativa de storytelling auto-didacta, seguem outras faixas como Insecurities ou Fuckin’ up the Count; a primeira remete para a altura em Freddie sobreviveu a uma tentativa de assassinato a tiro contra ele planeado; e a segunda, fixa em arestas de drama e tensão, desde logo pelo já mencionado sample que dá início à história, retirado de um diálogo entre Wallace e Sarah, da série The Wire. Sarah não consegue resolver um problema de matemática, mas é ela a responsável por manter as contas do tráfico em ordem.

-“How the fuck you able to keep the count right when you’re not able to do the book problem man?

– “Count be wrong, they’ll fuck you up”, responde-lhe.

 


 

 


Mas nem todo o álbum é um relato estóico do passado. Gibbs sabe deixar o protagonismo biográfico de parte e supreender – sem espantar – com outro tipo de sonoridade menos tensa. E digo sem espantar porque esse registo é um dos seus rastos ao longo dos anos: “Mexico” e “Packages” fazem parelha com “Lay it Down” e “Have U Seen Her”, ambas de ESGN, de 2013. Regressam as batidas de um trap muito rítmico, com flow formado por back vocals synth e drums que quase parecem bongos em fast forward, a balançarem todo o impulso com hooks chamativos.  Pelo meio de tudo isto encontramos “McDuck”, um regresso  às origens através de um excerto correspondente a uma entrevista – entenda-se conversa – entre Snoop Dogg e Gibbs.

SG: “You just sound like you not from nowhere.

FG: “I created that sound.

Em tudo isto e muito mais residem razões suficientes entrar na experiência que é este Shadow of a Doubt: aspirações cada vez mais altas, provas de uma subvalorizada versatilidade e uma dedicação de corpo e alma que não dá sinais de abrandamento. Quem mais tem, mais quer, e é assim que Freddie Gibbs estabelece objetivos cada vez mais ambiciosos. Acabar 2015 com um trabalho destes é terminar o ano em grande, fazendo crer que o hip hop e o rap não revelam rugas, mas sim regeneram células.

Faixas essênciais: “Rearview”, “Careless”, “Fuckin’ Up the Count”, “Extradite”, “McDuck”, “Packages”, “Insecurities” e “Cold Ass Nigga”.

 

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