O Amor Encontra-te no Fim. Não, não é uma tradução livre de “True Love Will Find You In The End“, de Daniel Johnston, mas sim o título do álbum de estreia a solo de Fred, nome que dificilmente faltará na história que se irá escrever sobre os últimos 20 anos da música portuguesa — em 2014, por exemplo, entrou na lista da Blitz que enumerava “Os 30 maiores bateristas da música em Portugal“.
No entanto, a inspiração para o título veio certamente da canção do cantor norte-americano, que é recuperada para encerrar o disco numa toada esperançosa. Se o estado mental de Johnston, que foi diagnosticado com esquizofrenia e transtorno bipolar, levou-o até a uma situação que dificilmente se reverterá, o caso de Fred é, obviamente, diferente, resolvendo uma altura “nublada” da sua vida através do refúgio numa pequena sala com a sua bateria, mas também de retiros de silêncio no Centro de Meditação Kadampa Deuachen, um templo budista localizado em Sintra.
E voilá: temos um primeiro longa-duração (com contribuições de AMAURA, Francis Dale, Carlão, Marcelo Camelo, Valete e Ricardo Riquier) que se afasta das suas experiências em 2015, mas que carrega um pouco do lado nocturno que ouvimos na sua produção de 5-30 (o grupo que formou em 2014 com Carlos Nobre e Regula) e do balanço rítmico de Orelha Negra (a banda que mais o representa).
Fomos até ao estúdio de Frederico Pinto Ferreira na passada terça-feira e conversámos sobre esta “tempestade criativa” que se transformou num conjunto de canções que tem tudo para marcar a agenda nacional deste ano.
Gostava de começar pelo início da feitura deste disco: em que altura é que decidiste que estavas a trabalhar para este álbum?
Já há algum tempo que eu andava a tentar pensar o que é que poderia fazer. O ano passado fiz um disco, que não saiu, mais diferente, experimental. Mas nunca me senti confortável nessa posição. Sentia-me confortável, mas não era a minha zona de conforto, que era a bateria. Fui pensando nisso e no ano passado, mais a seguir ao Verão, montei a bateria na minha sala, comecei a captar com dois microfones — o disco foi todo captado com dois micros — e toquei sem o compromisso de fazer um disco. De repente dei por mim e já estava dentro de um processo de composição. E comecei a fazer músicas… lembro-me de enviar para os Orelha [Negra] umas faixas de 30 minutos de beats e eles estarem-me a dar uma grande força. Isso começou a entusiasmar-me cada vez mais, e fiz mais, mais, mais até chegar a umas 50 músicas, e depois aí comecei a escolher o que é que eu queria.
Estava a rodar o disco e, no fim, tive a sensação que estava a ouvir a banda sonora de um filme. É tudo muito cinematográfico, até o título do disco. Concordas com isto? Essa ideia estava na tua cabeça quando construíste a narrativa do projecto?
Pode ser um filme real ou fictício. Por ser instrumental remete logo para uma parte de imagem. Eu não pensei muito nisso dessa forma. Houve alguns elementos que me fizeram ter uma narrativa; há um ponto comum em praticamente tudo. No meio destas 50 demos havia muita coisa que estava mais hip hop, outras mais experimentais, mas sempre com bateria. Salvo raras coisas, o disco é todo tocado com bateria, não existe MPC por cima de bateria. Havia muitas coisas diferentes, e eu, a querer construir um disco, fui para o sítio onde me estava a sentir mais identificado no momento, e na história que eu queria criar. Acabei por escolher aquelas músicas que identificam isso.
Quando é que as 50 demos se começam a transformar em 15 músicas?
Eu estava a finalizar umas e ainda estava a fazer outras. Entras ali num loop de composição…. Não são 50 músicas criadas do princípio ao fim, mas tens 50 esboços e depois chega a um ponto que tens mesmo de decidir, se não é uma bola de neve gigante, e eu tive que tomar uma decisão que foi um bocado importante e às vezes nem sempre é a melhor. Eu se tivesse ficado a trabalhar nisto mais seis ou sete meses, o disco ia ser diferente, cada vez melhor, cada vez mais aprimorado, mas por outro lado tive que decidir, “olha, isto foi o meu melhor, fiz sozinho, gravei ali sozinho”. E depois, com a ajuda do Ricardo Riquier nas misturas e na parte da co-produção, pensei: “não há um momento perfeito para terminar o teu processo de composição, então vou parar agora e fechar este ciclo”. E isto foi o melhor que consegui até agora, o próximo vai ser melhor. E com todas as coisas boas e más que isso pode trazer. Mas oiço o disco agora e estou muito contente.
Estavas a falar do outro disco que fizeste e que não saiu. Como é que separas esse álbum deste que agora acabas de lançar?
O outro disco é electrónica experimental, não tem nada a ver. E está fixe, até gosto, mas não me define na minha totalidade, na minha essência mais pura, e eu desta vez fui sem pensar muito. Primeiro vou sentar-me a tocar bateria, depois vou pegar em samples de algumas cenas, depois vou aprender a tocar algumas coisas de Rhodes, depois vou fazer basslines… e começas a construir a partir daí. Eu ao princípio nem achava que ia ser um disco, estava só a curtir. E depois o pessoal começa… os Orelha, o Tekilla, que também foi uma pessoa importante neste processo, ajudaram-me muito e deram-me muita força. Pessoal a dizer vai vai vai, está fixe e tu vais-te entusiasmando. E realmente este universo deste disco tem muito a ver comigo.
Esta é a primeira vez em que te atiras ao processo de composição dessa maneira, a abordar os instrumentos todos, não é?
Sim, é a primeira vez. Foi um processo estranho até. Eu agora olho para trás para essa fase e foi [uma altura] muito nublada da minha vida. Estava muito perdido. Não sabia o que é que havia de fazer na vida. Estava assim nesse ponto de introspecção e de fazer um balanço do que fizeste mal e bem, e o que é tu podes mudar em ti para te sentires bem e poderes demonstrar às pessoas que gostas delas. Coisas básicas que nós nem sempre pensamos, e eu pensei um bocado sobre isso. E tive um encontro muito importante, que se calhar nunca tinha tido desta forma, que foi um encontro comigo próprio. Em vez de me refugiar em trabalho e concertos, desta vez… não é nada dramático, é só uma cena de parar… vi a minha toda… vivi tudo para a música e para poder tocar, que é o que eu mais gosto, para estar com os meus amigos e viajar… e agora parei. E depois aparece-me uma pessoa à frente, que sou eu, e pergunta-me: “como é? Estás feliz ou infeliz?” E aí tu começas a pensar na vida — pelo menos eu pensei.
E isso tudo transformou-se numa tempestade criativa dentro de mim muito grande e fez-me ficar ali fechado e tentar pôr cá para fora as coisas. Foi isso que me deu força para entrar no processo. Foi só um momento de paragem que eu nunca tinha tido na vida. E tive nesse processo muito tempo e estou, digamos, a meio da análise.
Tens aqui uma série de nomes nos créditos, mas todos eles parecem servir um propósito maior em vez de virem “roubar” os holofotes. Nesta questão de produtores e convidados, existe sempre quem se queira moldar e quem molde à sua maneira. Neste caso, parece-me óbvio que tu já apresentaste o “guião” às pessoas que convidaste. Foi assim que funcionou? Como é que estas pessoas surgem?
São pessoas que eu admiro muito e gosto muito delas. As músicas têm tantas formas, a do Francis Dale com a AMAURA estava fechada de uma maneira, mas de repente eu não estava a curtir, a música esteve para ficar de fora do disco. Foi a última que eu fiz. Depois estava a ouvir um som de Curtis Mayfield, e ele estava a falar sobre sentir saudades de alguém, amar uma pessoa e eu, “aí, é mesmo isto”. Identifiquei-me com aquilo e depois dei um toque à Maura, só que eu não sou muito bom em inglês, então disse-lhe, “faz i love you, sinto bué a tua falta” [risos]. E ela fez. E depois disse ao Francis para vir e o processo foi igual. Eles deram o toque deles e eu dei o meu.
Com o Carlão foi: “mano, tenho aqui um som que acho que podia ter uma cena tua mais falada sobre o equilíbrio das cenas”. Lá está, aquilo que estava a falar sobre a dose certa que tu tens de ter nas coisas para te poderes equilibrar. E nem sempre na vida nós conseguimos ter a dose certa de tudo. Lá está, dá a volta e bate no ponto em que eu estava-te a falar do disco e do pensamento de introspecção, do momento introspectivo em que eu fiquei.
Tendo em conta os exemplos que temos de discos de produtores, por assim dizer, O Amor Encontra-te no Fim é algo mesmo muito pessoal em que só fazia sentido meter pessoas que encaixassem mesmo no que tu imaginaste.
Eu queria estar sozinho. E dou muitas graças a poder ter contacto com bué pessoal que eu gosto. Por exemplo, o Samuel [Mira], que talvez seja uma das minhas maiores referências de sempre como músico, amigo, é uma pessoa que é sempre uma grande mais-valia num trabalho que tu faças, porque ele é muito criativo e escreve muita bem. Claro que tu sonhas sempre em poder pedir ao Samuel se ele pode cantar, mas eu não achei que fazia sentido. E o disco até vai sair pela TV Chelas.
O Tekilla, meu grande amigo, também me ajudou imenso no disco. Eu desta vez preferi mesmo fazer sozinho. Nunca tinha experimentado e é tudo novo para mim. É bué estranho falar sobre uma cena tua… é completamente diferente eu estar aqui sentado a falar contigo sobre isto do que estar a falar de um disco dos Orelha. É completamente diferente e eu não sabia disso. Sentes-te muito mais exposto, mais frágil e é uma cena que eu estou a aprender. E estou a gostar, mas tive necessidade de o fazer sozinho. Acho que é um caminho sozinho e sabes que tens [sempre] o conforto de várias pessoas, dos teus amigos, de pessoas que tu podes chamar para entrar, para participarem, para não te sentires tão sozinho dentro de um disco…
O Valete também aparece na “Amigo”. Como é que isso acontece?
Eu pedi para ele mandar uma mensagem de voz sobre o disco. Eu até achei que ele ia mandar uma mensagem de voz a falar sobre a visão dele do que ele tinha ouvido, porque ele tinha estado aqui a ouvir o disco. E mandou-me mensagem bué fixe a dizer aquilo. Pá, eu senti-me tão acarinhado. Achei bonita a cena dele.
Apresentas o álbum ao vivo no dia 16 de Abril. O que é que vai acontecer em cima do palco?
Vai ter uma componente visual bastante forte, com o Rui Vieira, que é o responsável por uma parte dos visuais dos Orelha Negra. Vou estar acompanhado pelo Ricardo Riquier, Alberto Vieira e Ricardo Dias Gomes. Eu estou a tentar ser um bocadinho mais multifacetado desta vez.
Vais tocar mais instrumentos para além da bateria?
Vou. Estou a tentar conseguir participar no concerto sem ser só com bateria. Mas lá está como é a primeira vez que vai acontecer, ainda estou a tentar equilibrar tudo e ver até que ponto é que aquilo fica o mais confortável possível para todos. Quem gostar do disco, ao vivo vai ficar bonito e vou tentar transportar o ambiente que eu vivi quando o fiz, que foi todo na minha sala, que é uma sala pequeninha. Tudo gravado ali dentro. Vou tentar criar essa sensação que tive ali ao máximo possível no concerto.
Esse processo de auto-análise, que nos trouxe a este disco, também esteve relacionado com o papel da bateria no teu percurso? Sentiste a necessidade de mostrar a ti próprio que podias fazer mais?
Eu sinto-me muito acarinhado pelas pessoas e fico feliz que respeitem o meu trabalho como eu também os respeito e não sinto a necessidade de ter que mostrar que consigo fazer mais coisas.
Eu sinto que eu tenho a necessidade de fazer mais. Eu tenho a necessidade de pôr esse desafio a mim próprio. E tive a necessidade de fazer aquelas músicas da forma que eu achei que deviam ser feitas para mim. Claro que fico muito contente se as pessoas gostarem e claro que vou ficar muito contente e agradecido por irem aos concertos e isso tudo, mas não é para provar nada a ninguém, é uma coisa minha. É uma cena minha que eu quero riscar [da minha lista], quero melhorar. É uma estrada nova que eu estou a percorrer e até agora ainda estou assim um bocado a ver o caminho todo ao fundo e a apalpar o terreno para ver como é que as coisas são.
A ideia é levar este disco para mais datas, certo?
Sim, espero que sim. Já tem algumas coisas [em vista], mas com o que isto é. É uma coisa pequena, está a começar, sou eu e irei fazer o que conseguir, sendo que vou sempre dar atenção à parte visual, por isso requer alguma estrutura para fazer o concerto. Vou querer tocar mais ao vivo com isto, mas sempre sem deixar de pensar nos Orelha Negra, que é a minha banda do coração, assim como outras coisas… a Banda do Mar, por exemplo.
Aproveito a deixa: porque é que os Orelha Negra são a banda que mais te representa?
Eu não consigo fazer nada que não seja honesto. Quer dizer, toda a gente consegue fazer alguma coisa, musicalmente ou no trabalho, que não seja aquilo com que tu te identificas, mas em princípio é uma coisa que tu sentes. Eu sempre estive ligado a música rock, e adoro, e também me identifico muito, mas, quando eu digo que o que mais me representa são os Orelha Negra, é porque são a mistura de todos os géneros. Tem elementos rock, hip hop, soul, funk, que eu já tinha com outras bandas, mas ali é a junção de tudo. Eu não estou a menosprezar nada do que eu fiz e que faço; gosto mesmo muito de tocar todos os géneros de música.