Seja a desempoeirar um CD da prateleira ou a tatear o digital, é fácil isolar o paradigma do r&b na década de 1990: não é preciso ir mais longe que a discografia de Mariah Carey. Há quanto tempo não visitam esse empreendimento de milhões de unidades (e dólares), baseado num imaginário de amores e desamores, tempestades vocais de dor e melisma, um arco-íris de poder em polida e aveludada cama de bateria e órgão? O suficiente para que um pequeno fugitivo lhe tenha roubado um recorde de vendas — montado a cavalo.
O nome do desafiador, que levou a melhor no duelo com a diamantada cantautora e produtora, é Montero Lamar Hill; mas é provável que o conheçam como Lil Nas X. Qualquer aproximação com um “N.Y. State of Mind” é pura ficção: este não é o versista do bairro de Queensbridge e, mesmo se estivessem a pensar na grande cidade, também é um recém-estreado no mundo dos arranha-céus e dos ecrãs technicolor. Ele é um auto-proclamado vaqueiro “de Geórgia, no profundo sul”, como conta à revista Dazed, em que é capa da edição de Outono (a entrevista conduzida por Jack Mills é leitura obrigatória). Sabedor dos trilhos de terra, do grão e do pó… objectivamente, essa imagem é demasiado romântica para um jovem de 20 anos, mais confortável nos confins do Twitter do que a calçar botas de cano alto. Mas a metáfora do cavaleiro solitário, à boleia de expectativas e medos, faz-se alto e bom som na inescapável “Old Town Road”.
Não menos universal era a canção com que, há 24 anos, Mariah Carey garantia mais um período de regência na Billboard Hot 100. Era um estado de negócios usual para a voz e letrista de “Vision of Love”, “Emotions” e “Dreamlover”, mas a surpresa reservou-se para a longevidade que atingiu com “One Sweet Day”. A colaboração com o trio Boyz II Men — outro nome essencial do adult contemporary — foi um bálsamo para as rádios, atendendo matematicamente à sua sede por r&b dócil, com o embrulho da batida suave acoplada ao sintetizador celestial, atado com um gradiente de quatro sumptuosas vozes. Sobretudo, foi um abraço terno aos ouvintes, quase como uma tese sobre um lugar-comum ironicamente imortal: a forçosa despedida de um amigo ou familiar que parte para outra dimensão. Partilhando o motivo com tantas canções que são nauseantes, cínicos produtos para puxar descaradamente à lágrima, o single, inspirado na então actual epidemia do VIH, tem algo de poético. É uma confecção estreita, mas ponderada. Há dor e remorso no que faltou dizer e amar, mas aí prefere-se pensar no reencontro eventual, e no quão doce isso será.
Tudo isto contribuiu para as 16 semanas consecutivas em que a artista viu o panorama pop do lugar cimeiro: o número 1 da tabela dos EUA. Mais de quatro meses (o período de 2 de Dezembro de 1995 a 16 de Março de 1996). Se tentarmos equiparar este êxito a algo mais corrente, aproximamo-nos de “Despacito”. Durante o mesmo número de semanas, os incontornáveis Luis Fonsi e Daddy Yankee ameaçaram destronar Mariah, fraquejando naquela que seria a 17ª semana lá em cima. Três anos depois, Lil Nas X redobrou os esforços, pouco interessado neste regime de guarda partilhada.
Com “Old Town Road”, cuja performance em vendas e streams não larga a ordem dos milhares de milhões, a proeza foi fisgada pelo novato. E tem a benção de Carey: sondada por um paparazzo sobre estar preocupada, respondeu com um clássico “dahhling, no”; nas redes sociais, partilhou uma amável montagem em que passa a tocha a um igualmente feliz Lil Nas X. “Continua a viver a tua melhor vida!”, diz numa altura em que o rapper já se pode deleitar, depois da prova de saltos de obstáculos.
Acontece que, em muitos aspectos, a melhor vida de Lil Nas X choca com preconceitos e tabus da indústria musical, do público e do seu país. O mais evidente está à vista de todos, no chapéu, um símbolo para algo que o posiciona na onda sulista de Solange e que o banha alternadamente a camurça ou a franjas florescentes: o despertar do cowboy negro, figura eternamente branqueada, e item urgente na yeehaw agenda. O invólucro é fiel ao interior: a letra recicla clichés da imagética western para lhes dar nova vida; o som é a polinização cruzada entre o country de Nashville e o trap de Geórgia.
A composição simples dança à volta das guitarras, que pontilham o ribombar dos teclados, numa afronta ao purismo. Obra do holandês YoungKio, o instrumental foi interceptado por Nas X no seu quarto, quando se preparava para ficar sem tecto nem plano B para além da música (em que já se estreara com a mixtape Naserati). Respondeu a um desafio com outro, qual self made cowboy, e usou das suas competências virtuais para difundir a música por todos os canais disponíveis. A estratégia repercutiu-se com distinção na aplicação TikTok, onde “Old Town Road” se adaptou ao formato viral de playbacks de poucos segundos, motivados pelo massivo #YeehawChallenge e complementados pelos impulsos do próprio Nas X a timonar o navio — memes incrementalmente mais dementes, cliques e partilhas e reproduções amassados num bolo de múltiplos andares de sucesso.
Uma das assimetrias face a 1995 não é tão óbvia: o público recompensou um momento de inovação, praticamente ímpar; ao contrário, há uma razão pela Mariah obteve o recorde com a ultra-segura “One Sweet Day” e não “Fantasy” (outro número 1), o primeiro acepipe do álbum Daydream, que revolucionou a pop ao apresentar-lhe a figura do rapper convidado. Não deixa de ser curioso que despromova um dos maiores monumentos do r&b pacificado e centrista que vigorou nos anos 90, aquando do 20º aniversário de The Writing’s on the Wall, disco em que as Destiny’s Child rumaram no sentido contrário, dando a cara pela revolução desse conservadorismo.
Chegados a este ponto, era altura de relatar o grande percalço que inverteria a história de Lil Nas X, mas a gravidade ainda está para defrontar o cavaleiro; haverá de o fazer, mas tudo indica para que não seja uma breve supernova. Quando o testam, tem vencido. A vitória na secção country da Billboard foi sol de pouca dura, tendo a revista alegado em Abril de 2019 — mês em que se instalava no topo — que lhe escasseavam os ingredientes clássicos do género. “Eliminar [a música] da tabela de country parece-me racista, pura e simplesmente”, notou Robert Christgau, uma de várias vozes na discussão alargada sobre artistas negros à margem de zonas específicas da música. A resposta de Nas X foi uma golpada de gente grande; nem tarde, nem cedo, convidou para a primeira de cinco remisturas outro renegado do country, Billy Ray Cyrus, e foi a trote para um triunfo cada vez mais titânico.
Na Rolling Stone, Elias Leight esmiuça o impacto do streaming não só no caso eminente, mas nas tabelas de vendas como um todo. As assimetrias são profundas entre as metodologias da Billboard em 1995 face às de 2019. Hoje, encontram-se ajustadas para acomodar uma economia musical on demand, medida em tempo real, concentrada num leque menor de músicas; fazem a equivalência (talvez ainda desactualizada) entre streaming e rádio, ao passo que acompanham o declínio radical das vendas. Em 1995, as duas últimas plataformas — o éter e o CD — eram os alicerces da Hot 100, e as bases de campanha de Mariah. Assim, falar dos êxitos de Mariah e Nas X é falar de climas diferentes, e de dois casos que serão sempre, a seu jeito, inigualáveis. Mas, se “One Sweet Day” se sagrou invencível no tipo de clima comercial em que concorreu, “Old Town Road” poderá não ficar solitária para sempre. Que assim seja; há coisas mais relevantes.
Na semana em que se posicionou ao lado de Mariah — e Luis Fonsi, cuja co-propriedade do título tende a ser ignorada —, Nas X pôs fim à especulação e a um passado online cheio de impressões digitais. Assumiu-se homossexual perante uma comunidade de ouvintes que certamente reúne devotos do hip hop e fiéis do country, e a hostilidade de sempre, que a homofobia não tem tempo nem local, surge simplesmente. Foi uma declaração audaz e reproduzida um pouco por todo o multiverso em linha (algo próprio de uma das 25 maiores influências na Internet, como eleito pela revista Time).
Um homem negro gay a restituir uma imagem obscurecida do cowboy. É este o senhor que ocupa o cume da Billboard Hot 100 há 17 semanas, e é uma imagem bela, progressiva, um exemplo que em 1995 nunca poderíamos conceber. Não só o vemos e ouvimos, como o fazemos em números inauditos, com feitos que entrarão nos livros da história, para gerações vindouras. “Para a maior parte das crianças de agora, o [Nas X] é o primeiro cowboy que já viram”, reconhece Bri Malandro na Dazed. “Quando descobrirem a história detalhada dos cowboys negros, não ficarão tão chocados como as pessoas parecem ficar hoje.”
Ele é também alguém que o mundo já quer encerrar no destino do one hit wonder, mas cuja personalidade e material — o promissor EP 7 alberga, além de “Old Town Road”, “Rodeo” com Cardi B e “Panini” — lhe parecem estender o prazo, para crescer ou minguar. Certo é que o recorde para mais semanas consecutivas na tabela dos EUA é agora de Lil Nas X, cuja força o furtou a Mariah Carey — a quem, considerando o seu palmarés e aquilo que continua a fazer em discos e palcos, isso deve significar pouco. Quando se transfere o título para os ombros do artista de 20 anos, o peso torna-se monumental.
Lil Nas X segurará essa coroa até que chegue a hora de um digno sucessor. Poderá até ser outro fenómeno catalisado pelo TikTok ou quejandos; talvez até seja a própria Mariah, cujo single “Obsessed”, há 11 anos editado, volta a ganhar tracção, curiosamente na mesma plataforma que serviu ao seu “adversário”. Mas este momento na história de Lil Nas X e da música pop é um título que já não está em leilão.