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Fotografia: Arlindo Camacho
Publicado a: 17/09/2021

Não é preciso um palco para se fazer a festa.

Fogo Fogo: “A ideia original do projecto foi mostrar essa Lisboa que nós sentíamos que já existia”

Fotografia: Arlindo Camacho
Publicado a: 17/09/2021

Independentemente daquilo que se queira colar a Lisboa — “nova” ou “nossa” são dois exemplos recentes — para descrever alguns movimentos mainstream que têm sido mais evidentes nos últimos tempos, o facto é que o centro e os seus subúrbios, queira-se ou não se queira, sempre foram o que agora se descortina com mais evidência: um caldeirão multicultural e, entre outras coisas, uma cidade com “uma história africana que será certamente a mais importante da Europa“.

Para os Fogo Fogo, que começaram a ensaiar em Outubro de 2014 e tiveram o seu primeiro concerto em Janeiro de 2015, essa vivência nunca esteve oculta. “A ideia original do projecto foi mostrar essa Lisboa que nós sentíamos que já existia. Que achávamos que existia. E existe. E é”, diz-nos João Gomes. Uma ideia corroborada por David Pessoa, o outro membro que se juntou à conversa por Zoom com o Rimas e Batidas: “Eu acho que a Lisboa multicultural de que se fala hoje sempre houve. Nós que somos músicos, e que vamos beber a vários sítios e amamos música de todo o lado, sempre tivemos essa consciência. E eu tomei conhecimento da música de Cabo Verde muito novo, precisamente por isso. Isso para mim, e para toda a gente da banda, não [aconteceu] agora.”

Chegada a altura de editar o seu primeiro disco de originais, o grupo (que conta ainda com Francisco Rebelo, Danilo Lopes e Edu Mundo) está mais que preparado para assumir esta sua visão do funaná: “Depois de estarmos a aprender malhas/clássicos todas as semanas e, no fundo, a estudar e a aperfeiçoar uma determinada linguagem, tivemos vontade de começar a fazer as nossas ideias — alguns dos elementos da banda têm uma grande veia criativa, há pessoal que curte escrever e fazer músicas e achámos que fazia sentido, apeteceu-nos por causa disso. Desde a primeira que curtimos e sentimos que resultava e que podíamos acrescentar alguma coisa ao universo em que nos pretendemos inserir”, elucida o teclista da banda. Pessoa acrescenta: “Acho que foi um processo bué natural. Tanto que nós lançámos dois EPs, portanto fomos testando os temas. O primeiro EP nem era de originais, foi mais para fins promocionais. E depois foi natural [a partir] daí transitarmos e querermos experimentar cenas originais. Com essas referências que nós já tínhamos desse pessoal todo que nós tocávamos, dando-lhe o nosso input e o nosso cunho, mais as referências individuais que nós temos, que é o punk rock, rock psicadélico, dub, reggae, enfim, está lá tudo misturado no funaná. Acaba por dar a nossa identidade.” 

Apesar de existir um certo senso de comunidade e partilha conotado ao projecto, Fladu Fla, o primeiro longa-duração, é uma exibição das capacidades destes mestres que, neste momento, só enaltecem a linguagem que decidiram abordar. “Nós nos primeiros três anos de Casa Independente tínhamos sempre convidados, mas também tinha a ver com essa postura de aprendizagem e homenagem, e com o facto de estarmos a tocar covers. E isso ficou muito ligado à nossa imagem. Nós no álbum quisemos precisamente tentar sublinhar mais as nossas diferenças e originalidades. O nosso lado, o lado Fogo Fogo. Daí termos optado por fazer tudo só connosco. Os únicos convidados foram o Jon Luz, para meter uns cavaquinhos, que nenhum de nós é cromo do cavaquinho, então como ele muito menos, e o Zé Mário e o Jair, dois percussionistas para acrescentarem um bocadinho mais de ritmo a algumas músicas.”

Para além destes colaboradores externos, houve ainda Kassin, produtor brasileiro com um currículo invejável, na co-produção e o americano Victor Rice na mistura. Todos estes nomes foram importantes para definir um som limpo — numa música com tanta cor, é importante percebermos o tom de cada instrumento e de cada voz, e aqui essa missão foi cumprida com distinção. E não se perdeu nem um pouco a força festiva que associamos ao quinteto.

Para quem se fez em palco perante gente que quer muito dançar, os Fogo Fogo tiveram de esperar a altura certa para soltar este trabalho, isto depois de terminarem as gravações em Fevereiro de 2020. Os tempos mudaram, mas as vontades não. “Às vezes um gajo grava uma cena e passados dois anos aquilo deixa de ter… pá, não é que fique desactualizado, mas deixa de ter aquele… neste caso, eu acho que [isso] não [aconteceu]. Acho que a coisa ainda esteve a maturar mais. Nós ficámos super satisfeitos com o trabalho que fizemos, com o contributo do Kassin, que acabou por limar algumas arestas e tirar algumas dúvidas em termos de arranjos que tínhamos ali, embora a pré-produção estivesse toda muito completa. E ficámos super satisfeitos com a mistura, o som que as músicas têm. Acho que não mudaria nada, gravava era já outro. Punha-me já a compor mais, aliás, que é isso que estamos a fazer”, atira Pessoa.

Com ligações umbilicais aos Orelha Negra e aos Cais Sodré Funk Connection, a palete sonora dos Fogo Fogo está bem definida e inclui funaná, funk, dub e rock embebido em psicadelismo, uma série de elementos que são facilmente manuseados por estes instrumentistas com alguma rotação nisto. Mas quando é hora de compor, como é que decidem para onde vão? Gomes esclarece: “É relativamente fácil porque nós temos as nossas influências, referências, [as] zonas musicais por onde nos queremos movimentar [estão] muito bem definidas entre nós, portanto qualquer um que traga um input criativo, uma ideia, [ela] muito raramente não tem a ver. Mas temos vários exemplos no álbum de formas diferentes de como surgiram as músicas. A maioria foi uma ideia de alguém que depois foi trabalhada em conjunto mas há casos de músicas em que um de nós já apresentou já quase tudo feito.”



Pessoa, um dos vocalistas e letristas, continua o pensamento, usando uma faixa específica como exemplo: “Há temas que surgem de uma ideia e depois se leva para a sala de ensaios e cada um trabalha e dá o seu input… eu lembro-me que o ‘Ca Ta Da’ foi assim o que teve menos arranjos, porque a malha ia toda já mais redondinha. Eu já sabia ou já tinha uma noção do que cada um ia fazer. Eu às vezes ponho-me aqui a ver as maquetes, a compará-las com as versões do disco e, em termos de arranjo, essa está praticamente igual. Está é bem gravada e bem tocada. Mas há outras que estão completamente diferentes.”

O teclista conclui: “E essas que estão completamente diferentes normalmente são aquelas que tiveram mais trabalho de banda na sala de ensaios, de viajar mais e experimentar.”

Sobre criar um diálogo aberto com Cabo Verde e o funaná feito por lá, Gomes recorre a uma interacção com uma banda lendária para falar sobre isso: “Uma vez tivemos uma conversa com os Ferro Gaita em que eles diziam, ‘vocês têm uma sorte de não viverem em Cabo Verde e de não serem cabo-verdianos, têm muito mais liberdade, podem fazer a cena bem, mal ou diferente que não vão levar com a censura dos cabo-verdianos’. Portanto, temos essa liberdade de sermos tugas, ou pelo menos habitantes de Lisboa, que estão a usar isso como influência porque tem a ver com a nossa cultura e a nossa história. Sempre ouvimos esses estilos de música, mas [executamo-los] com a nossa abordagem. E longe da ilha.”

Para uma primeira vez num formato mais longo, e depois de Francisco Vidal assinar as capas de Nha Cutelo (2018) e Dia Não (2019), o grupo foi buscar um dos grandes, Alexandre Farto, para assinar o trabalho gráfico: “No meu caso e do Chico, que fazemos parte de Fogo Fogo mas também de Orelha Negra e Sam The Kid, nós já conhecemos o Vhils há muitos anos. Há mais de 10 anos ele já fazia participações em espectáculos do Samuel, depois com Orelha Negra, portanto sempre mantivemos uma amizade e contacto. E ele é uma pessoa muito interessada e atenta às novidades musicais e novas correntes da nossa cidade. Ele desde sempre que nos seguiu e que demonstrou interesse e carinho, foi ver a banda à Casa Independente e já nos convidou para o Iminente”, revela João Gomes.

A par de instrumentos musicais, pratos de comida ou bebidas, Jimi Hendrix, José Mário Branco, Tim Maia, José Afonso, Lee “Scratch” Perry e Orlando Pantera são algumas das caras mais reconhecíveis que por lá encontramos, que, segundo Gomes, resultaram de um trabalho conjunto: “Conversámos um bocado sobre as coisas que gostávamos de ter na ilustração. Primeiro, no conceito daquele tipo de imagens que, muito tempo depois de as teres visto [pela primeira vez], ainda [andas] a descobrir pormenores. Eu gosto de uma capa de disco que tu podes ficar a olhar para ela durante muito tempo. Enquanto ouves o disco, por exemplo. Depois fizemos uma lista gigante de influências, objectos ou de imagens que poderiam fazer sentido. E ele escolheu.”

A “festa consciente” proporcionada pelos Fogo Fogo ainda não teve oportunidade de acontecer em Cabo Verde, mas é uma ideia que agrada muito a ambos, muito mais agora com este disco: “até acaba por fazer mais sentido nós irmos com o nosso som, o nosso funaná, com o funaná Fogo Fogo, do que irmos fazer versões. Era um objectivo tocar lá, sem dúvida. Na Baía das Gatas era lindo.”

A ânsia para voltar a tocar ao vivo é grande (“estamos, como é óbvio, super desejosos, queremos levar o disco ao máximo de sítios que pudermos) e já há uma série de datas no horizonte para Outubro: o primeiro é no festival FNAC Live, no dia 2, a segunda é no Iminente, no dia 10, e a terceira no Hard Club, no Porto, no dia 15. Esta sexta-feira, os elementos da banda juntam-se a Rui Miguel Abreu para um FNAC Talk.

Depois de um tempo “de castigo” devido ao potencial festivo da sua música — a pandemia não se ajusta a esses ritmos –, o grito de guerra é simples e directo: “[Queremos] abanar o máximo de rabos que conseguirmos. Seja na cadeira ou de pé.”


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