À 25ª edição, é preciso estofo para continuar a promover um bom festival a todos os visitantes, mantendo antigos adeptos contentes, mas também aliciando novas gentes a juntarem-se à festa. O FMM Sines conseguiu esse feito ao promover uma série de bons espectáculos — podem encontrar por cá as reportagens do primeiro, segundo e terceiro dias de programação principal — e ao manter o espírito de liberdade e comunidade que sempre o caracterizou. Neste pedaço de Verão musical acolhido pela cidade à beira-mar, todos somos iguais independentemente do background que temos, da tribo urbana a que pertencemos ou dos números exibidos nas contas bancárias de cada um. Sinal disso mesmo são as inúmeras bandeiras da Palestina que foram sendo erguidas na plateia ao longo dos dias, nenhuma delas a sofrer qualquer tipo de censura, ao contrário do que acontece em muitos outros eventos semelhantes com a desculpa da neutralidade política. Só que nada do que se diz “neutro” pode cortar com a liberdade de expressão. Nunca se esqueçam disso.
O programa das festas para o dia 26 de Julho, o último da edição deste ano do FMM, acabaria por promover o melhor encerramento possível — e também o mais impactante do ponto-de-vista simbólico. Entre África, Europa e Ásia, o arranque das festividades fez-se à boleia do moçambicano Roberto Chitsonzo, com uma série de canções populares interpretadas a solo recorrendo apenas a voz e violão; a tradição portuguesa com toque modernista aplicado pelos Miss Universo sob a forma de quinteto; e ainda os ancestrais cantos de devoção indianos trazidos pelos Warsi Brothers.
Instalada a noite em Sines, os maiores espectáculos do serão voltaram a ter todos palco no Castelo, onde uma brisa voltava a obrigar muitos dos visitantes a equipar-se com um casaco ou uma camisola um pouco mais grossa. Mas se a pele esfriava, o coração e a alma aqueciam com o carácter mais espiritual que esta recta final de programação parecia englobar. Dos domínios do sagrado dos Warsi Brothers, somos invadidos pela pluralidade sonora de Rokia Traoré, uma das grandes surpresas de 2025, que recorre à cultura sonora do seu país, o Mali, numa reformulação sónica que facilmente escorrega dentro de ouvidos ocidentais, de tão próximas que as restantes influencias que compõem a sua tela musical estão do nosso universo. Não percebemos a língua, mas o corpo reconhece a ginga, a começar desde logo com a reivenção do samba que é “Djamako Alégresse”, que abriu o espectáculo, passando depois por um longo repertório que assenta muito na estética do jazz.
Do ponto-de-vista da performance, o jazz teve mesmo uma grande palavra a dizer nesta despedida do FMM’25. Regressados ao certame de Sines, os Kokoroko assinaram aquele que foi o nosso concerto favorito desta edição e que facilmente vai perdurar na memória enquanto um dos mais interessantes que pudemos ver ao logo de todo o ano de 2025. Com o novíssimo Tuff Times Never Last na bagagem, era de prever que, face ao título a obra, a banda inglesa nos ia entregar uma prestação bem solar com sons que nos enchem o peito de esperança. Liderados por Sheila Maurice-Grey (dócil na postura, muitas das principais linhas melódicas principais vinham do seu trompete ou da sua voz, veículo de poderosos mantras espirituais) e Onome Edgeworth (que se desdobrou por entre um kit de percussão apetrechado de diferentes sons e um baixo), os Kokoroko repescaram também algumas malhas de projectos anteriores, cobrindo uma ampla gama de ritmos, da música caribenha ao afrobeat, sempre mascarados de um jazz contemporâneo ultra-eficiente que deixou toda a gente engajada. Sairam de cena sob uma enorme chuva de aplausos e tiveram como momentos mais altos duas coreografias feitas com a participação do público, mais um par de inebriantes solos vindos das mãos de Yohannes Kebede, que estava a fazer pura magia ao leme de vários teclados.
Embaixadores do shamstep, um estilo que representa uma mescla de sonoridades urbanas, do hip hop à electrónica, com a tradição árabe do dabke, os 47SOUL eram um dos nomes mais esperados para a edição deste ano do FMM, muito pelo carácter humanístico em que assenta o festival. O trio formado por Tareq Abu Kwaik (aka El Far3i), Ramzy Suleiman (aka ZthePeople) e Hamza Arnaout (aka El Jehaz) representa a modernidade sonora da Palestina e, por isso, face ao estado actual do conflito bélico em que se encontra envolvido o país, o público tinha reservado todo o seu calor e energia para dar algum alento ao conjunto numa altura tão delicada da sua história. Musicalmente, a fórmula dos 47SOUL é muito boa e certamente consegue funcionar bem em qualquer parte do mundo, servida na companhia de versos de rap que tanto focam a identidade da banda como veiculam mensagens reivindicativas. Fica apenas a sensação de que muitas das partes dos instrumentais vinham de backing tracks e que aquilo que os artistas estavam a “tocar” servia apenas para agradar à vista. Outro ponto talvez não tão positivo — depende do ponto-de-vista — foi o facto de uma parte do espectáculo de fogo de artifício que assinala o final do certame ter decorrido a meio de uma das primeiras músicas do grupo, com o som dos foguetes a cortar por completo a percepção da música que vinha do sistema de som. Mesmo em cima das nossas cabeças, houve quem ficasse assustado com o momento e facilmente nos veio à mente a ideia de uma simulação daquilo que é a experiência do povo palestiniano nos dias que correm com consecutivos bombardeamentos. Por um lado, não parece simpático que o som que vem do palco deixe de se ouvir durante uns minutos, mas por outro, estas explosões talvez possam ter feito passar realmente algum tipo de mensagem pretendida tanto pelos protagonistas como pela organização. Seja lá qual tenha sido o motivo, a verdade é que muita poeira se levantou durante esta actuação e os 47SOUL foram, sem dúvida, um dos projectos mais abraçados da 25ª edição do FMM. Free Palestine — reclamaram eles e nós todos.
Findado o programa do Castelo, o Rimas e Batidas foi repor as energias para o regresso a Lisboa, onde nos esperava uma outra missão no dia seguinte. Mas a festa prosseguiu noite fora e era audível até mesmo dentro de quatro paredes, com Fidju Kitxora, Bateu Matou e Bazzookas a protagonizarem uma daquelas farras bem rijas como tanto gostamos.