O calor aumenta em Sines e a moleza acompanha a subida. Felizmente, estamos no FMM, um dos mais priveligiados festivais portugueses do ponto-de-vista geográfico, já que a distância da sua principal artéria até à Praia Vasco da Gama a pé dura uns cinco minutos e, por isso, são-nos proporcionados mergulhos regulares que ajudam a reactivar fisicamente e a reequilibrar temperaturas. Quem também agradece é o estômago, que por estes dias tem a possibilidade de digerir o peixe e marisco fresquinhos tão típicos da região. Nem parece que, fora deste pequeno paraíso, o resto do mundo está virado do avesso, como Bia Ferreira tinha feito questão de frisar na actuação da noite anterior. Mas este é um tópico que a arte não nos deixa esquecer — e ainda bem que assim o é —, sendo que também ontem, 25 de Julho, houve espaço para a música reflectir sobre o actual estado da sociedade.
Quando ainda o sol batia com força nas nossas cabeças, um par de concertos ajudava-nos a refrescar as ideias. Primeiro apresentou-se em palco Zeltia Irevire, banda galega que aposta numa sonoridade folk que vai beber influências a diferentes “tribos” do globo e apregoa mensagens de esperança na humanidade. A seguir foi a vez do cantautor luso-brasileiro Luca Argel, ele que através da sua singular visão em torno da MPB e da poesia procura pôr dedos nas nossas feridas, fazendo das cantigas armas de protesto. Com estes dois ideais em mente, pudemos depois expurgar as almas à medida que o céu ia escurecendo ao som de Mats Gustafsson e Kimmo Pohjonen, saxofonista sueco e acordeonista finlandês, respectivamente, que juntos deram corpo a uma das sonoridades mais arriscadas de todo o programa do FMM, aventura puramente instrumental capaz de unir os universos da folk, do free jazz e da electrónica.
A primeira grande actuação da noite estava marcada para as 22h15, quando Capicua se voltou a apresentar no Castelo de Sines, precisamente 10 anos após a estreia naquele mesmo palco. Com Um Gelado Antes do Fim Do Mundo ainda a cheirar a fresco e sem dar sinais de estar a derreter, a MC portuense trouxe consigo uma renovada performance, arriscando por várias vezes um modo mais cantado para nos entregar as suas palavras, contando também com o suporte do coro formado por Joana Raquel e Inês Pereira. D-One (DJ), Virtus (MPC) e Luís Montenegro (baixo e guitarra) completam o conjunto de músicos que acompanha Ana Matos, num espectáculo que prima também pelo recurso a muito material visual que é bem mais do que um mero complemento da própria musica — a originalidade deste lado estético é um ponto bem forte no universo de Capicua.
E se a rapper já era conhecida por se recusar calar face aos podres que reconhece na nossa sociedade, parece que essa veia lhe ficou ainda mais saliente na presente era da Um Gelado Antes do Fim Do Mundo, álbum editado este ano cujo título aponta desde logo para o cenário apocalíptico que atravessamos. Lá do alto do seu privilégio branco, Capicua podia ficar-se pela luta feminista quando chega a altura da sua caneta rasurar novas rimas, mas o seu lado activista fá-la dar o braço a todas as outras causas que mexem consigo — afinal de contas, a desigualdade deve ser completamente erradicada, seja em que campo for. E ao contrário de Bia Ferreira, muitas vezes bruta na forma como expõe a sua visão, Ana Matos transmite a sua mensagem de forma mais carinhosa, como uma mãe que pacientemente explica aos filhos a diferença entre o certo e o errado. Diferentes backgrounds geram, logicamente, modos de operar distintos, mas aquilo que mais importa é o resultado final e nisso a portuguesa empata com a brasileira. Havia muita comunhão e alegria no ar enquanto Capicua teve todas as nossas atenções, fosse durante temas interventivos como “Chiaroscuro” e “Que Força É Essa Amiga” ou nos momentos mais solares à boleia de “Vayorken” e “Meia Romã”.
Embalados pela contagiante energia da Orchestra Baobab, uma banda senegalesa que conta com mais de cinco décadas de história e um arrojado número de músicos em palco, voltaríamos a chafurdar a cara num banho de realidade com o som pesado, mas também exótico, dos históricos Nação Zumbi. Às 00h45, o conjunto brasileiro dava-nos a oportunidade de fazer parte das comemorações de Da Lama Ao Caos, seminal álbum de 1994 editado ainda com o eterno Chico Science a liderar o conjunto na voz. Agora com Jorge du Peixe a cumprir essa função, o grupo foi o responsável pelo primeiro moshpit que vimos nesta edição do FMM, de tão forte que é a sua fusão entre o lado mais abissal do rock, muitas vezes a roçar o metal, e a tradição do maracatu, passando também em revista outras sonoridades como o funk, o hip hop ou a electrónica.
A nostalgia de poder escutar clássicos tão marcantes de uma fase muito específica da música brasileira é uma das faces dessa moeda chamada Nação Zumbi. Mas o sabor geral é agridoce, pois do outro lado há a impossibilidade de deixarmos de pensar que muito pouca mudou nos 31 anos que passaram desde o lançamento de Da Lama Ao Caos, um disco recheado de palavras de ordem e crítica social e política, como podemos escutar na faixa-título do LP ou noutras como “A Cidade” e “Monólogo ao Pé do Ouvido (Vinheta) / Banditismo por uma Questão de Classe”. É uma luta que não cessa e estamos todos juntos nessa marcha, com um pezinho de dança pelo meio graças a “Samba Makossa” ou “Maracatu Atômico” e “Manguetown”, estas últimas duas já pertencentes ao não menos clássico Afrociberdelia (1996). Militância também tem festa rija e só faltou estar alguém do IPMA a medir os níveis de poeira no ar para melhor conseguirmos explicar em números o quão bom foi ter Nação Zumbi em Sines.