Por esta altura do ano, Sines move-se a uma velocidade diferente do resto do país. A pacata cidade à beira-mar plantada ora abranda, ora acelera à medida que as horas passam e chega até a tornar-se imprevisível. Nas ruas, há alturas em que parece que pouco se passa e outras em que é possível sentir o verdadeiro frenesim típico do Festival de Músicas do Mundo. À frente dos palcos secundários, tanto podem estar literalmente zero pessoas como uma legião de gentes famintas por ondas sonoras. A praia é um dos poucos locais com um fluxo constante, com toalhas a serem deitadas e levantadas da areia a toda a hora até o sol de pôr.
Também no Castelo, à noite, onde decorrem os principais concertos, a afluência é constante, embora existam momentos em que até nos questionamos onde se meteu toda a gente, para logo de seguida o quadro humano voltar a ficar composto e quase encher o recinto. Afinal de contas, o FMM é um evento dinâmico, que embora não apresente a envergadura de outros festivais acaba por se espalhar por vários outros pontos de Sines — seja através da sua programação oficial, seja pelas diferentes iniciativas “marginais” que algumas pessoas ou colectivos trazem até às redondezas, das bancas de vendas ambulantes aos sistemas de som caseiros que criam novos palcos a partir do nada.
Do Brasil a Cabo Verde, pudemos testemunhar as diferentes tradições invocadas por Gabriel Leite e Fábio Ramos durante a tarde como banda sonora perfeita para as horas de maior calor. Já pela “fresquinha”, uma outra tradição, que não ouvimos tão frequentemente, invadiu o Castelo. A Bulgária esteve representada neste cartaz pela impressionante polifonia coral de The Mystery of the Bulgarian Voices, aqui em colaboração com Georgi Andreev e o Quarto Quartet.
Independentemente de quem fossem as entidades convocadas para a noite de ontem, seriam sempre facilmente eclipsadas por Bia Ferreira, que um pouco após as 22h15 deu uma verdadeira aula a todos os presentes. Embaixadora da música negra, a brasileira carrega no seu repertório um infindável leque de influências, desde o mais óbvio samba e MPB até às sonoridades da soul, do funk, do reggae ou do hip hop. Mas mais do que uma representante de um certo tipo de som, Bia Ferreira é, acima de tudo, uma voz bem activa em todo o tipo de movimentos que visam lutar por igualdades e direitos. Nesse capítulo, é fracturante e fraterna em igual medida. Tanto é capaz de nos pulverizar com as suas mensagens de amor, como nos dá valentes raspanentes para que não nos deixemos adormecer nestes tempos tão cruciais que atravessamos. Chega a causar arrepios a forma como apregoa a sua mensagem, mas é assim mesmo que tem de ser feito. Tal como a “pastora” da Igreja Lesbiteriana nos lembra recorrentemente, esta é a altura de nos juntarmos e erguermos os nossos punhos e vozes. Não basta ser anti-racismo ou anti-homofobia apenas no comentário leviano entre amigos. É preciso confirmá-lo com acções, sejam elas manifestações pacíficas ou o confronto directo quando a injustiça está mesmo a acontecer diante dos nossos olhos. Mais do que música, Bia Ferreira é fonte da energia que todos precisamos de injectar para não perdermos as forças nesta era tão conturbada da nossa sociedade.
E quando a mensagem é tão boa e nos é veiculada através de uma performance que a consegue igualar em termos qualitativos, então é porque estamos mesmo diante de um verdadeiro fenómeno. Por cá, no Rimas e Batidas, Bia Ferreira já tem sido alvo dos mais variados elogios, e ontem voltámos a confirmar-lhe todo o potencial. A cantautora brasileira é um verdadeiro animal de palco e lidera o espectáculo de forma bem natural, como se tivesse nascido com a missão de o ocupar. Não precisa de quem lhe dobre a voz, pois assegura a entrega dos versos completamente sozinha, e ainda manuseia as cordas da guitarra de forma exemplar, conseguindo casar o acto de cantar com o de dedilhar riffs complexos, ao ponto de quase nos deixar tontos só de olhar. Pontua ainda a actuação com momentos a capella e de beatbox, sendo também exímia na arte de conduzir o público — são poucas as plateias que seguem tão à risca o que lhes é pedido por parte dos artistas. 100% completa, arriscaríamos dizer que pode até actuar completamente sozinha sem perder a pujança. Mas, claro, será sempre melhor vê-la assim com uma banda que, apesar de pequena, é composta por competentíssimos músicos — Bibi Nobre (baixo), Marcelo Araújo (bateria) e Erick Endres (guitarra) fecham o elenco.
Num cenário perfeito, findaríamos a nossa missão pelo dia 25 de Julho no FMM a assistir ao lendário Max Romeo. Infelizmente, o ícone jamaicano faleceu em Abril passado e o concerto em seu nome acabaria por virar um tributo levado a cabo pela banda que o costumava acompanhar e mais umas quantas vozes convidadas. Conhecendo o seu legado, sabíamos que íamos certamente ouvir algumas das mais icónicas malhas da cultura reggae ao vivo, mas havia a incerteza a pairar no ar quanto à entrega das mesmas. O concerto arrancou com uma sucessão de performances por parte dos seus três filhos Xana, Azizzi e Romario, todos eles a tentar substituir a aura do pai sem grande sucesso. Foi um momento claramente ingrato, não só porque nenhum aparenta estar neste momento preparado para a tarefa que lhes foi designada, mas também porque, afinal de contas, a morte de Max Romeo não foi assim há tanto tempo e não deve ser nada fácil ter de vestir a pele do pai quando ainda só passaram três meses desde o adeus. O publico mal reagia e nem uma das canções mais conhecidas, “War Ina Babylon”, conseguia arrancar grande reacção. Outros cantores mais experientes, como Kenyata Hill e Cedric Myton, também surgiram em cena e conseguiram elevar ligeiramente o espírito do concerto, mas talvez este projecto de tributo precise de mais tempo para se reformular e conseguir entregar a energia certa. De qualquer forma, há pelo menos uma certeza: quase meio século depois, “Chase the Devil” ainda é uma das faixas mais emblemáticas da cultura reggae e foi aquela que realmente fez o público acordar, usada como trunfo para o último suspiro do espectáculo e motivo para que todos os vocalistas se reunissem em palco para o interpretar a várias vozes.