LP / CD / Digital

FKA twigs

MAGDALENE

Young Turks / 2019

Texto de Miguel Alexandre

Publicado a: 11/11/2019

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Ao pé de Tahliah estão os pedaços do mundo que desmoronou à sua volta, os fragmentos do que demorou a ser construído e que subitamente jaezou o seu fim. Este risco era contado, talvez pelas pessoas que observavam a sua obra à distância, talvez por uma porção adormecida do seu inconsciente. Seria um erro, na verdade, se ela o tomasse como garantido, mas o que resta agora é tentar seguir em frente, e Tahliah demorou a fazê-lo. O processo foi moroso, restrito — uma pequena demonstração que lhe era permitida de tempo a tempo antes que se tornasse em algo público. De repente, a pessoa que parecia ter tudo era vista de mãos vazias, completamente vexada do seu corpo, da sua história. O isolamento parecia inevitável.

Em 2014, ficámos a conhecer FKA twigs, uma visionária que tocava na música pop e experimental em igual medida e que se apresentava como uma antagonista às estrelas do círculo popular que se ouviam na altura. Nela havia uma fórmula ainda descodificada, controlada e presa infimamente aos detalhes. Quando falava, era o misticismo que pousava nas suas palavras que parecia puxar cada vez mais pessoas para o seu núcleo. A sua presença era perfumada por uma essência insonte, ingénua, como se visse o mundo ainda de uma forma pura de coração e limpa de alma. Balançava-se entre o mundo real e irreal, entre variações que pareciam ser retiradas de filmes de Tim Burton e de visões de uma era vitoriana. twigs era estranha, mas não conseguíamos parar de tentar decifrá-la. A música, por sua vez, era uma surpresa ainda maior. Uma arquitectura sónica metalizada e assente em dinamismos psicadélicos e experimentais que corriam em câmara lenta: percussões electrónicas, vocais aéreos e cheios de subtileza. Quando cantava, conseguíamos facilmente encontrar momentos de solidão, melancolia, mas também auto-determinação. Os cenários vêm somente da sua cabeça, mas nunca isolados de si próprios, conseguindo criar espaços de respiração para fora. No primeiro álbum, LP1, o primeiro choque foi difícil de superar. Aliás, cinco anos depois e ainda o ouvimos e encontramos a mesma frescura. Ela cantava-nos directamente do seu coração a sangrar e não interessava se o que nos era transmitido acontecera na vida da artista ou não. Esse mistério faz parte do próprio processo. Interessa, sim, se aquilo que nos é dado a ouvir e a ver nos interpela, provoca, toca.

twigs recebeu aclamação por parte de quem se atrevia a tocar no seu material. Ela era tida como um cruzamento entre Kate Bush, Beyoncé, Aaliyah, mas sempre dentro do seu território, sempre dominante da sua mestria. LP1 foi considerado um dos álbuns marcantes de 2014 e da década. Mas com isto, o escrutínio ficou cada vez mais íngreme: notícias de um relacionamento com Robert Pattison tornaram-se manchete e projectaram-na para o centro de um circo mediático que só terminou em 2017, com o rompimento do noivado com o actor. Rapidamente tornou-se numa das mulheres mais odiadas da indústria por amar um dos homens mais desejados de Hollywood. Após uma cirurgia de alto risco para retirar quatro tumores do seu útero, twigs caiu em plena escuridão e consolou-se na história de Maria Madalena, entre as personagens mais criticadas do Novo Testamento, cujas complexidades do seu carácter foram reescritas por clérigos chauvinistas de modo a denegrir a imagem da mulher caída na vida de Jesus Cristo. A artista sentia-se assim: uma personagem secundária na vida de um homem, que era sempre tida segundo padrões antigos e opressivos.

Numa era onde temos a possibilidade de observar cada passo das celebridades, twigs tentou manter o controlo sobre o que faz. É incrível como é que preferiu manter o anonimato durante tanto tempo, evitando qualquer contacto público. Até agora. Cinco anos depois de tudo ter começado, é-nos apresentado MAGDALENE, o seu lado da história: uma obra que traça contos de traição, decepção, zanga, auto-reconciliação, misturando a perspectiva da mesma (vinda do mais claro poço de transcendência e conhecimento) com a de milhares e milhares de mulheres que ficaram perdidas no tempo, abafadas pelos contos heróicos de homens, e que nunca tiveram a oportunidade de serem efectivamente escutadas. twigs chora por todas elas, mas também luta para que tal não aconteça no futuro. Entre sobreviventes e defuntos, este trabalho é severo, é litúrgico, é uma ferida aberta de quem não desiste de se levantar, especialmente quando já foi abatida vezes e vezes sem conta.

“thousand eyes” abre este disco na sua pose mais austera, buscando inspiração na polifonia da música clerical medieval. Este é o prólogo de um corpo onde as músicas são produzidas como epopeias — com começo, clímax e desfecho. Lida-se com noções de sobrevivência – sendo estas físicas e psíquicas — postas em acção num mundo que a obriga a ser mais assertiva para o seu próprio bem. Existe uma diferença constativa em deixar alguém devido à conduta da outra pessoa e deixá-la para a nossa protecção. twigs não teve escolha: “If you don’t pull me close/ It wakes a thousand eyes”. Este desespero emocional é muitas vezes oscilado entre ira e imprudência, que partem do seu core e arrastam quem se encontra em seu redor. “home with you” é um perfeito exemplo: mesmo no pior dos cenários, ela recusa-se a ser um fardo para a outra pessoa e faz questão de se impor no seu direito de exigir mais – mais amor, mais confianças, mais prazer; no fim de uma relação fracassada, twigs sentiu-se impotente, sem qualquer bala que restasse na sua artilharia e, sem mais opções, voltou a ser quem era quando mais ninguém a ajudava a descobrir tal coisa.

MAGDALENE, tal como Melodrama de Lorde ou Lemonade de Beyoncé, é visceral e directo ao colocar a outra pessoa no banco dos réus, mas também resguarda-se ao tentar proporcionar – ou talvez forçar – um final feliz que englobe todo os sacrifícios feitos no passado. “sad day” é um exercício de tentar ver o máximo de algo positivo, mas que obviamente já está morto. É o momento “hyperballad” de FKA, a sua posição digna no altar de Kate Bush — para além de ser a canção mais cristalina do todo o disco, separada das restantes, é um santuário em nome próprio: produção cinematográfica e absolutamente sublime que chama Nicolas Jaar, Skrillex e Benny Blanco para a sua concepção. Os timbres da sua voz constroem-se à base de um sintetizador inicial, que ao longo dos quatro minutos, explode em percussões alienistas, pianos aéreos e distorcidas vozes de fundo que acrescentam à dor da artista mais peso e significado: “I can’t imagine a world where my arms don’t wrap around you”, canta, de forma desesperada como se soubesse que mais nada pode fazer para que o seu amante fique na sua cama e na sua vida. Mesmo que este single não seja explícito nos seus detalhes – algo que eventualmente melhoria o seu storytelling – a carga emocional que twigs nos mostra é desalentadora, como se estivéssemos com ela a seguir um caminho para um fim moribundo e inevitável.


 

MAGDALENE é singular, mas tal facto não significa que a sua visão seja truncada. O que ela conseguiu alcançar em apenas nove músicas é impressionante, não só a nível artístico, como também pessoal. É uma peça musical, que da mesma maneira proporciona uma componente visual e fortemente imaginativa, de alguém conotado com as estratégias mais perspicazes e inteligentes para singrar num mundo que já a devorou por inteiro, superando ainda as interpretações mais fáceis de quem a vê por fora. “A woman’s work/ A woman’s prerogative/ A woman’s time to embrace/She must put herself first”, canta na faixa-título. É uma ambiciosa obra-testamento, um trabalho que só consegue ver a luz do dia uma ou duas vezes, porque a sua execução é dolorosa e angustiante – e, hoje em dia, nem todas as cantoras deste género conseguem aguentar tal abalo.

A primeira vez que conhecemos MAGDALENE foi em Abril com “cellophane”, a balada mais despida da discografia de twigs. No vídeo, a mesma dança num varão com o objectivo de tentar apelar à satisfação de quem a vê, como forma de redenção ou até mesmo de auto-flagelo – mas é muito mais do que isso: “cellophane” é uma meditação sobre racismo virulento a que foi exposta nos tablóides britânicos; é um feito de forma física perpendicular à força emocional que foi obrigada a obter. É uma dança triste na sua superfície, mas que representa toda a maturidade que alcançou neste trabalho. Esta é a faixa que encerra o álbum, e fá-lo de uma maneira tão formidável e rica que parecemos já convencidos de que efectivamente esta batalha está ganha por ela. O mundo de Tahliah estava destruído, mas twigs pegou nos pedaços e MAGDALENE construiu-lhe um novo.


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