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Fotografia: Maria Nolasco
Publicado a: 03/07/2025

Outras cordas, a mesma poesia.

Filipe Furtado: “Eu queria coisas que só o piano me permitiria fazer”

Fotografia: Maria Nolasco
Publicado a: 03/07/2025

Filipe Furtado é um músico e compositor açoriano radicado em Coimbra. Depois de ter sobrevoado o mar rumo à cidade dos estudantes para se formar em jornalismo, a música, primeiramente vista como um hobby, foi ganhando cada vez mais espaço na sua vida.

Estreou-se em 2022 com Prelúdio, gravado nos estúdios da Blue House, usando a guitarra com principal instrumento. No seu mais recente Como Se Matam Primaveras (2025), trocou de cordas ao sentar-se diante do piano, tecendo uma música que é como uma viagem entre o íntimo e o colectivo, entre a canção e a improvisação, com raízes no jazz, mas sem medo de beber do cancioneiro tradicional e da poesia — umas vezes declamada com a sua voz, noutras puramente musical.

É neste segundo registo de originais, gravado entre Lisboa e Coimbra, na Escola Superior de Música e na Blue House, respectivamente, que se apresenta no formato de trio, contando com o saxofone de Filipe Fidalgo e a bateria de Paulo Silva. E é no seio desse grupo que tem montado o seu laboratório de experimentação sonora, onde as composições ganham vida através de uma linguagem própria, tão fluida quanto os tempos incertos em que vivemos.

Como Se Matam Primaveras é um disco que fala de ciclos, de coisas que morrem e renascem — talvez como as utopias com que sonhamos num mundo em constante convulsão. O álbum navega entre momentos líricos e instrumentais, entre o jazz e o indie, sempre impressos numa estética cinematográfica e feitos com uma liberdade que reflecte tanto a maturidade do grupo quanto a urgência de criar arte em tempos de desassossego. Cravado com poemas e títulos de canções expansivos que podem dar aso a diferentes interpretações, este LP apresenta-se como um convite para respirar, desacelerar e escutar o que está entre as notas, fintando a urgência que o mundo digital nos tenta diariamente impingir.

Numa ligação via Zoom que aconteceu dias antes de uma apresentação ao vivo do trio, Filipe Furtado falou-nos do seu percurso até aqui chegar e das questões que inspiraram a feitura do seu novo longa-duração.



Desenha-me assim a traços largos como é que foi o teu percurso até este disco.

Eu vim estudar jornalismo para Coimbra, mas já vim assim com o bichinho de estudar música. Já no final da licenciatura, ainda estava a acabar o último ano, andava à procura de ganhar ferramentas e entrei no curso de jazz da TONE Music School cá em Coimbra. Portanto, entre fazer o curso de jazz e depois começar a escrever as primeiras canções, nasce o primeiro disco, o Prelúdio, com muita presença da música brasileira, digamos assim — tinha muito essa influência da bossa nova e que não é um universo desconhecido do jazz. E portanto, dessa incursão nas primeiras canções, das primeiras experiências, de tentar musicar poemas de outros e de escrever as primeiras letras, surge a oportunidade de começar a tocar ao vivo e a estabelecer caminhos possíveis, e também o procurar outros caminhos para além do que já fazia com a guitarra. Durante esse processo de editar o primeiro disco, que vão distando alguns anos, fui fazendo essa transição lenta para tocar cada vez mais piano e estar à procura de outras referências, se calhar já mais longe dessa estética muito próxima do Brasil e mais próxima de uma mistura entre a canção — o escrever canções — e o tornar a música num formato mais híbrido, na procura de um espaço para a improvisação ou para o jazz. É uma linguagem mais contemporânea, mais cinematográfica. Portanto, é ir para a escola de jazz, depois sair um bocadinho desse universo muito específico, andar a escrever canções e depois perceber como é que essas coisas podiam navegar por outro sítio. Isso culmina neste novo disco, Como Se Matam Primaveras.

Muito bem. O que é que esteve na base da decisão de trocar Ponta Delgada por Coimbra?

Bem… [risos] Tirando as loucuras normais da idade, das paixões fortes, eu sabia que ir para Coimbra me dava mais possibilidades de aprender jornalismo de uma forma mais interessante, que foi o que aconteceu. Na primeira semana em que cheguei a Coimbra envolvi-me com o jornal universitário A Cabra, para o qual escrevi uns quantos artigos. Mais tarde liguei-me com a Rádio Universidade de Coimbra. E senti que esses três anos de curso foram muito mais intensos e muito mais enriquecedores, portanto essa foi a principal razão. Eu sabia que podia ter ido para a Universidade dos Açores, mas sabia que teria um contexto muito mais interessante para fazer essa aprendizagem aqui, até por causa desse contacto com o universo cultural e musical, em que a cidade de Coimbra é muito rica, com muitos concertos todas as semanas. Acho que uma coisa junta com a outra, de certa forma.

E tu continuas a escrever enquanto jornalista? Como é que está essa parte da tua personalidade? Não sei se há por aí uma intenção profissional mais clara ou não, mas o que é que o jornalismo representa para ti neste momento?

Quando fui estudar jazz, eu percebi que teria muitas dificuldades em fazer parte de uma redacção a tempo inteiro, ao perceber as dinâmicas, que são um bocado — ou pelo menos na altura eram — complexas para ter horários de estudo mais ou menos certos. Mas eu mantive sempre essa forte ligação com o jornalismo universitário, porque mesmo depois de acabar o curso ainda continuei ligado. Escrevia críticas de discos, continuava a fazer entrevistas, fui director da revista Via Latina, e depois na RUC, onde enquanto radialista continuei a fazer trabalho de entrevistador, às vezes, para alguns projectos. Só mais tarde, para aí em 2021 ou 2022, é que tive assim os meus primeiros trabalhos a sério numa redacção enquanto freelancer da Coimbra Coolectiva. Eu gosto desta ideia de poder escrever algumas coisas, mas sinto que o meu foco passou a ser fazer música. Portanto, essa relação que tenho com o jornalismo é de um certo carinho — é, digamos, um hobby. Quando houver oportunidade de, às vezes, poder fazer algum trabalho jornalístico, fá-lo-ei, mas sinto que não é uma tentativa de carreira. E eu também tentei fazer isso sempre muito ligado à área cultural e, portanto, passava muito tempo em salas de ensaios de teatro e em concertos. Eu gostava, porque na verdade estava nos backstages desse universo. Quando a vida ainda me permite fazer isso, adoro, mas não é uma coisa que procuro activamente, portanto faço-o com muita ligeireza, digamos assim.

Costuma-se fazer a piada de que os críticos de música são músicos frustrados. Portanto aqui podia ser ao contrário, mas tu não és um jornalista frustrado, espero eu.

Não, não. Foi mesmo uma opção. A ser honesto… Quer dizer, eu não me arrependo nada de ter estudado jornalismo e acho até que fortaleceu todas as outras valências a que decidi dedicar-me. Na verdade, foi aquela opção fácil ou óbvia, de quando terminamos o secundário e achamos que a via artística parece mais arriscada. Eu estava a terminar o 12º ano e, embora estivesse a andar à procura de como é que podia continuar a estudar música, lembro-me de ter algum tempo em que pensava que podia gostar de estudar teatro, por exemplo. E se calhar, se tivesse seguido o impulso da minha mãe, teria concorrido para o teatro [risos]. Eu senti que o jornalismo foi uma espécie de ofício seguro dentro daquilo que…

Ui, ui…

Quer dizer, é uma falsa ideia [risos]. Mas depois decidi que ia estudar e ia tentar dedicar-me o máximo possível para ser músico. Portanto, não foi um processo de frustração, se calhar foi um processo de algum tipo de segurança mística que uma pessoa acha que tem quando tem 18 anos ou algo do género.

Fala-me um bocadinho dos teus companheiros no trio. Como é que chegaste até eles? Como é que os conheceste? 

Bem, o mais antigo nestas andanças musicais é o Paulo Silva. Eu recordo-me do Paulo aqui das andanças do jazz, porque ele também frequentava o curso profissional de jazz do Conservatório de Música de Coimbra. Mas eu penso que a primeira vez que vi o Paulo foi numa recriação do disco Por Este Rio Acima, do Fausto, penso que no aniversário da Rádio Universidade de Coimbra. Eu tinha gostado muito do approach dele à bateria, assim também a ir buscar os elementos tradicionais. Mas o Paulo também andava envolvido em muitos projectos com música brasileira, os cine-concertos, então eu senti que o Paulo tinha as subtilezas certas para se juntar àquele tipo de cancioneiro que eu estava a fazer, assim muito influenciado pela música popular brasileira e pela bossa nova. Portanto, ele seria o baterista que perceberia melhor essas dinâmicas. O Paulo foi uma das primeiras pessoas que contactei e a partir daí fez parte do processo, ou parte desse processo de finalizar o Prelúdio, porque foi um primeiro disco que teve várias fases, andamentos, em que testei muitas coisas até estar tudo no sítio certo. A relação com o Paulo é a mais longa, vem desde a gravação do primeiro disco. Com o Filipe Fidalgo, embora também o conhecesse de vista dessas andanças aqui dos bares em Coimbra e de algumas noites de concertos, foi, digamos, um dos nomes que o Paulo sugeriu quando chegou a altura de começarmos a dar concertos, ali por volta da altura da pandemia e tal. Tínhamos os singles a sair e era a altura de irmos começar a ter concertos. Na altura, o Miguel Ferreira, que era meu colega da escola de jazz e que gravou os trompetes do disco, ia “reformar-se”, digamos assim. Ele era engenheiro e decidiu: “Pá, Filipe, eu não vou continuar com esta vida de músico, não é uma coisa que agora tenha interesse.” Então fui à procura de outros músicos. E numa fase inicial surgiu-nos o Fidalgo, que acho que tinha uma linguagem interessante, só que com o confinamento e todas as restrições durante o período pandémico, acabámos por adiar… O dia em que nos devíamos conhecer musicalmente a ensaiar, ele por acaso estava com o meu irmão em Lisboa, na Escola Superior a ser gravado numa sessão qualquer, e portanto só nos conhecemos mais tarde. Mas digamos que o Fidalgo… Eu sinto que ele tem um espectro musical também muito aberto. E depois foi fácil, porque passou da fase em que ele está só a tocar saxofone para se ir sentindo confortável em fazer outro tipo de sugestões e de juntar outro tipo de brinquedos. Sinto que ele tem uma visão parecida comigo, nesse sentido de procurar referências musicais que não são necessariamente do jazz, e misturá-las quando elas fazem sentido para o trabalho colectivo, digamos assim.

Já mencionaste aí que há uma mudança, uma transformação daquilo que era a inspiração principal do primeiro disco, o Prelúdio. Para este trabalho, Como Se Matam Primaveras, abordas a ideia da canção usando a música tradicional portuguesa e o jazz como ingredientes numa nova fórmula. Esta mudança é uma coisa intencional ou foram as próprias canções e a escrita das mesmas que te foram atirando para essa direcção? Há um momento, até antes da escrita, em que tu dizes “eu quero explorar mais este caminho assim”, e procuraste produzir, escrever, criar com esse objectivo em mente?

Eu acho que é um bocadinho a mistura das duas coisas. Na verdade, eu senti que a guitarra era limitadora para o que eu queria fazer enquanto músico, enquanto compositor, enquanto letrista, e fui fazendo essa transição. Quando saiu o primeiro disco, eu já estava assim num processo de ir à procura dessas outras referências. Eu sinto que foi intencional, que estava à procura, porque queria coisas que só o piano me permitiria fazer, não só a solo, mas também nesse contexto de trio ou de banda. Eu acho que tinha referências muito específicas, caminhos onde eu queria ir, também porque, depois do primeiro disco, eu estava um bocado cansado do jazz, do processo de ter ido para a escola de jazz e de algumas dinâmicas muito específicas. E com o amadurecimento, agora sei o que é que posso ir buscar ao jazz, ou que referências é que eu quero pôr e que processo é que eu tenho que fazer para chegar lá. Sinto que essa escrita foi demandada com essa mudança intencional, mas também porque as minhas referências estavam a mudar. A certa altura, eu andava a ouvir muita cena do UK jazz, Mammal Hands, Portico Quartet, passei anos a ouvir o Tigran Hamasyan — tudo bandas que tinham universos de piano muito próprios, também muito cinematográficos, em que, às vezes, a improvisação é muito, muito na frente, em que está aqui o solista, mas é toda uma viagem de camadas, texturas, feita para que o ouvinte se embrenhe nisso. Eu senti que fui numa tentativa de começar a navegar esses horizontes, em que a canção pode estar diluída nisso, quando há canção ou quando há uma letra, e que também pode assumir que, às vezes, eu posso querer compor alguma coisa que não tem que ter letra. A introdução do disco, por exemplo, claramente não tem letra. Ando a navegar, e quando eu sentir que preciso dizer alguma coisa ou tenho que escrever alguma coisa, está lá; mas quando precisar que a música por si fale só por si, sem qualquer tipo de letra, também é importante que o faça. Ou seja, é uma tentativa de ir navegando esses dois registros com naturalidade, do que estar só a assumir o formato de canção, em que a voz e a letra têm que comandar, digamos assim, de início ao fim, quase no papel principal. Eu gosto dessa ideia de que a letra pode estar no papel principal num momento, mas depois pode estar perdida na ideia geral da canção ou do tema.

Nem todas as grandes canções têm letras. Estou-me a lembrar, sei lá, do “Verdes Anos” do Carlos Paredes.

Exacto, exacto.

Ela não tem essa dimensão poética. Ou melhor, terá uma dimensão poética, mas é aquela que ressoa dentro da nossa cabeça, não necessariamente explícita num conjunto de palavras. Mas fala-me sobre isso, sobre a dimensão poética do disco. Entre o evocar do 25 de Abril e uma certa procura de uma harmonia com a natureza, tu acabas por traçar aqui um universo muito próprio, não é? De onde é que isso vem?

Bem, a escrita… Sinto que há uma mudança, que também vem do amadurecimento com a idade, que me leva a procurar escrever coisas. Eu sinto que quero escrever coisas que tenham sentido onírico, nessa ideia de poesia em geral ou idílica, mas também acho que é normal que a música vá revelando facetas da maneira como vemos o mundo, e essa faceta tem que ser, obviamente, também política, tem a ver com sentirmos os problemas do dia-a-dia e do mundo na nossa pele. Portanto, eles também nos ocupam a mente durante a composição. Eu acho essa parte poética do disco, na verdade, se aprofundou com o título, que acabou por lhe dar assim esse corpo, que é uma ideia de, ao mesmo tempo, querer que haja espaço para que essa leitura política, filosófica ou estética do disco, mas ao mesmo tempo marcando alguns pontos que eu sinto que são importantes. O “Cravos”, por exemplo, foi uma canção que senti que agora, se calhar, ainda faz mais sentido do que quando o disco saiu, dado as eleições, dado uma série de coisas que se passam no mundo. O “Como Se Matam Primaveras”, o tema que dá o mote para o disco, foi, na verdade, o último a ser escrito, e é uma viagem assim, meio surreal, mas é inspirada no genocídio da Palestina. Andava a ver notícias todos os dias e aquilo fazia — e continua a fazer — muita impressão. Mas tentei manter uma certa poesia no meio disso tudo. Sinto que o disco tenta navegar uma série de coisas que são percepções. Eu sinto que… Por exemplo, eu prefiro o Outono, porque nasci em Novembro e sou das ilhas, então há muito nevoeiro. Mas essa brincadeira de Como Se Matam Primaveras pode ir no sentido das leituras políticas que isso pode ter, ou das percepções das estações do ano, da passagem do tempo. Sinto que isso ajuda nessa dinâmica. E os poemas, acho que fazem uma pauta, às vezes mais notória, mais política, ou mais certeira, mas também é aberta. O “Transplantar é possível” é um poema sobre desenraizamento, mas que, na verdade, acho que também se liga a esta ideia de encontrar novos sítios onde as raízes possam crescer. O “A Primavera Pode Brotar” explica a ideia textural ou poética que eu queria dar ao disco, é um poema maior que eu andava a escrever e que, na verdade, aquilo acaba por ser uma parte que eu achei que era a mais sumarenta dessa explicação, dessa ideia de que as Primaveras podem nascer num dia qualquer. E lá está, uma vez mais, o que é que é Primavera? Pode ser uma Primavera política, pode ser o 25 de Abril, pode ser um amor novo, pode ser um projecto de comunidade, sei lá. Eu gosto de abrir espaço para que isso tenha um sentido para cada leitura e para cada ouvinte. Mas, para mim, ter essas múltiplas leituras, essa procura de um espaço no mundo, está sempre perdido entre esses universos todos que nos ocupam.

És um artista desencantado, ou mesmo perante tudo aquilo que nos assalta quando ligamos a televisão ou quando abrimos uma rede social qualquer, em que o mundo parece estar a desmoronar-se cada vez mais, ainda assim achas que existe alguma esperança na tua escrita, na tua poesia?

A minha mãe diz que eu sou um bem-disposto, que estou sempre com ar de brincalhão e a fazer piadas. Mas há dias em que me sinto menos optimista. Embora eu ache que seja uma pessoa relaxada e extrovertida, isso contrapõe-se com esta parte mais melancólica de quando escrevo canções. E quando tenho um processo de reflexão a sério sobre estas coisas, não sinto que estejamos melhor ou a caminhar para um sítio melhor, porque, na verdade, a humanidade trabalha em círculos, em repetições ad aeternum, e nós estamos condenados a cometermos os mesmos erros. Portanto, há dias em que o meu lado utópico, de sentir que podemos melhorar, vai perdendo força com base naquilo que vou vendo e lendo. Na verdade, nada se vai alterar, quanto menos só vai piorar, ou vai piorando mais para uns do que para outros. E, se calhar, não teremos tempo de ver isso tudo no nosso espaço de vida. Mas às vezes sinto um pouco que, inevitavelmente, tudo ficará pior.

Esperemos que não. Que estejamos todos enganados nessas nossas percepções. Olha, tu vais apresentar agora o disco ao vivo no programa da Feira do Livro, não é?

Dia 24 de Junho.

Será a primeira apresentação? Como é que estão a correr esses ensaios?

Esta será a primeira actuação em que as pessoas podem ouvir o disco na sua totalidade. Mas já há algum tempo que nós começámos a introduzir temas novos ao vivo. Como eu acho que somos os três animais de palco, no sentido em que valorizamos a experiência de tocar ao vivo, como um momento sagrado, esse é também um espaço privilegiado para testar material novo. Desde que fizemos a primeira sessão de estúdio, demos uma série de concertos em que fomos alterando aos poucos, introduzindo cada vez mais temas novos, permitindo que eles ganhem músculo. Para este de dia 24, sendo na Feira do Livro, vamos também reforçar essa parte da poesia, sem alterar muito os universos e a viagem que costumamos fazer quando tocamos.

Em que circuito te vês a navegar com este disco? Esteticamente, ele existe entre mundos, entre universos. Em termos de carreira ao vivo, por onde é que te vês a circular? Festivais de jazz, clubes orientados para a cena independente portuguesa, festivais de música popular portuguesa?

Eu acho que dá para ir a muito sítio, de facto [risos]. É assim, eu gosto muito de tocar em clubes. A cena das salas de pequena e média de dimensão, onde estamos muito próximos do público, isso combina muito com certos momentos dos nossos concertos ao vivo. Nós aí sentimos o que o público está a sentir e eu acho que esses sítios são, por norma, muito confortáveis para o set que nós andamos a fazer. Eu vejo-nos a tocar em festivais de jazz, mas faço aqui a ressalva [risos]. Por ter estudado jazz e não tendo entrado naquele universo mais hardcore, sinto-me sempre um outsider comparando com outros instrumentistas, que respeito e que admiro muito e que me influenciam também. Mas eu sinto que estão numa linguagem que, às vezes, é mais ortodoxa, do jazz norte-americano. Então eu sinto sempre um peso quando me dizem que a música é jazz. É, mas não é. Ou seja, se calhar, se morássemos no Reino Unido, seria muito fácil catalogar a nossa música e estava tudo bem. Mesmo que tenha laivos de música popular ou que tenha coisas de música electrónica, principalmente ao vivo, ver-me-ia a tocar nesses clubes. Mas também há uma série de festivais em que a música portuguesa tem presença e que me parece que são os sítios onde, se calhar, conseguimos chegar a um tipo de gente que se surpreenderia também com os nossos concertos, porque às vezes não estão à espera de como é que é o nosso concerto ao vivo ou só têm referências dos temas antigos, e depois quando nos vêem surpreendem-se um bocado com essa viagem. Portanto, acho que pode ser assim uma mistura do dois. E quem sabe um festival ou outro de jazz, mas assim mais abertos em termos de caixas e de como catalogam e encaixam os músicos.

E, sobretudo agora com este disco, vês-te como um corredor solitário ou sentes que fazes parte de alguma vaga maior dentro da música portuguesa? Vês outros artistas como teus pares ou que andam a procurar explorar caminhos idênticos?

Acho que há. Estou-me a lembrar de uma conversa com o grande João Mortágua, que há muitos anos foi meu professor, mas é um grande camarada e também alguém que, volta e meia, apanho nos concertos e na vida. Tive uma conversa com ele, em que ele dizia uma coisa muito engraçada: “Pá, eu sinto que tu e o André Júlio Turquesa, vocês estão assim numa onda parecida.” Por acaso somos amigos e damo-nos bem. Já apanhei algumas coisas do André e percebo que possa haver algumas semelhanças em algumas coisas, mas, para mim, é difícil. Não me vejo muito… Entre pares de pessoas ou projectos, por exemplo, estou-me a lembrar de uma estética totalmente diferente, mas penso numa geração que saiu dos Açores e que está a fazer coisas sempre com essa espécie dessa raiz presa lá. Por exemplo, os WE SEA, de quem sempre fui fã, desde a primeira hora. Quer dizer, partilhámos editora no primeiro disco, a MARCA PISTOLA dos Açores. Mas eu senti que embora fossem caminhos muito diferentes, identificava-me muito com a maneira como o Rufino escrevia. Além de serem amigos e camaradas, sempre senti que, no futuro, eu quero fazer alguma coisa com eles, porque sinto que a linguagem deles, de alguma forma, vai-se mesclar bem com isto que estou a tentar fazer. Agora, não sei, acho que é difícil, porque há tanta gente, há sempre tantos discos, que é difícil eu me balizar dessa forma. Se calhar, daqui a 20 anos, será possível perceber. Agora sinto-me mais um a tentar fazer com que as coisas aconteçam, a gravar essas músicas e a fazê-las chegar ao maior número de pessoas possível.


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