Um ano depois, o Rimas e Batidas voltou ao Entroncamento para marcar nova presença no Festival Vapor, naquela que é a quinta edição do certame organizado pelo Museu Nacional Ferroviário no seu próprio espaço, onde a arte se manifesta entre carruagens recheadas de história em exposição. Ontem, dia 12 de Setembro, o evento arrancou a meio gás, numa espécie de aquecimento para aquelas que se prevêem ser as duas jornadas mais movimentadas — hoje e amanhã. Fomos recebidos às 19 horas com uma apresentação que teve início na entrada do museu e que passou pelas diferentes zonas do recinto, visita que foi pontuada com breves manifestações por parte do projecto teatral comunitário que junta a Leirena, o CERE e a Carruagem23, do Coro dos Comuns (que no domingo nos brindará com uma actuação especial liderada por Bia Maria) e da instalação Reflection. O espírito steampunk, a grande imagem de marca do Vapor, já se fazia sentir através das vestimentas de alguns dos festivaleiros e de umas quantas bancas de venda de produtos, mas esse imaginário ganhará mais força nos dois dias principais que se seguem, em que a afluência é maior devido à ampliada oferta de espectáculos reunidos no programa.
Neste dia inaugural da temporada de 2025 do Vapor, tínhamos à nossa espera um par de concertos. Notámos desde logo que a maquinaria corporal dos visitantes estava perra e enferrujada. Afinal de contas, parece uma eternidade o facto de termos de aguardar um ano inteiro por mais uma iteração dos nossos festivais favoritos — e o Vapor não é excepção. Mas tivemos a sorte de contar com a melhor anfitriã possível na primeira actuação: Selma Uamusse polvilhou-nos de óleo sob a forma de amor e ajudou-nos a sacudir as engrenagens para que a adesão à música ao vivo fosse total. Perante uma plateia muito parada e dispersa, a cantora moçambicana, que reside em Portugal há mais de três décadas, foi insistindo para que a massa adepta se tornasse mais compacta na frente do palco e, aos poucos, a moldura humana foi-se tornando cada vez mais bonita. “Eu deixei de dar amor aos meus quatro filhos que ficaram em casa para estar aqui com vocês”, referiu ainda numa fase inicial do espectáculo, sublinhando que, por esse mesmo motivo, tinha muito afecto para nos oferecer, mas que também precisava receber de volta. Esse câmbio foi-se fazendo e, ao final da actuação, Uamusse parecia que estava há dias consecutivos a cantar para todos nós, tal era a forma com que segurava o público na mão, já completamente desinibido e a manifestar o seu apreço pela via da dança ou dos aplausos. Não foi por acaso que, nos derradeiros minutos, várias pessoas se juntaram a si em cima do palco depois do repto geral lançado pela artista — se tivesse sido no início da actuação, provavelmente a vergonha teria falado mais alto.
Ao lado de Selma, Nataniel Melo foi um verdadeiro xamã das percussões, adocicando cada uma das canções com uma mestria incrível nos diferentes apetrechos de origens africanas que tinha à sua disposição. Augusto Macedo, principal compositor que auxilia a artista na hora de criar novas canções, segurou as bases com o baixo e mostrou uma enorme destreza em momentos que teve de dividir o trabalho de mãos entre as cordas e umas teclas que tinha à sua frente. A prestação de Milton Gulli reflectiu na perfeição as várias décadas que já leva ao serviço da música lusófona, enfeitiçando a performance com a sua cirúrgica guitarra e completando alguns momentos com a sua bela voz. Na bateria, Marcos Alves socorreu-se de todas as peças do seu kit e foi constantemente inventivo na manipulação dos grooves que esta sonoridade tanto exige. E apesar de todas as individualidades, funcionaram sempre como um organismo só, cujo batimento cardíaco é ditado por Selma Uamusse, ela que não recorre a fórmulas e se deixa levar pelo que cada altura do concerto pede — uma música tanto pode durar cinco ou dez minutos, tudo depende do que a líder da banda quer fazer pelo meio. Entre temas dos seus discos, covers de Nina Simone e mensagens anti-guerra, o climax da actuação foi quando a artista desceu para cantar entre nós enquanto distribuía abraços por algumas das pessoas por que passava.
Não seria tarefa fácil para aqueles que viessem a seguir igualar os níveis da performance da cantora moçambicana. Mas se têm o seu co-sign, então é porque devem ter a força que se requer para o conseguirem. Selma avisou várias vezes que seria sucedida em palco por uma banda amiga e que muito aprecia e os Expresso Transatlântico não a deixaram ficar mal depois de verem a fasquia tão elevada. Os irmãos Sebastião e Gaspar Varela também são veículo de uma outra tradição musical lusófona, a portuguesa, e têm sabido muito bem como a reformular para o contexto sonoro actual. O seu fado mistura-se com um rock poeirento cheio de distorção e, tudo junto, cria uma paisagem bem cinematográfica que, estamos em crer, podia muito bem ser uma daquelas trilhas obscuras a que Quentin Tarantino tanto gosta de recorrer para dar vida às bandas sonoras dos seus filmes — é urgente que alguém lhe faça chegar isto.
A mostrar que a saudade também se dança estiveram o habitual baterista Rafael Matos — que junto dos irmãos Varela forma o trio base do projecto — e ainda o baixista Tiago Martins mais o teclista e soprista Zé Cruz, dando vida a um formato que expande as possibilidade sónicas de Expresso Transatlântico. Em pouco mais de uma hora de espectáculo, o quinteto passou em revista o EP homónimo de estreia e o álbum Ressaca Bailada, apontando também ao futuro com a mostra de material inédito e do single “Flor Trovão”, uma das baladas mais fuzzy do grupo que abre caminho para o seu muito aguardado segundo LP e contou com a produção do inconfundível The Legendary Tigerman. Também trouxeram consigo para o palco um par de covers que foram repescar ao melancólico cancioneiro do fado, um deles o brilhante “Movimento Perpétuo” do eterno Carlos Paredes, de quem se celebra o centenário neste ano de 2025, que valeu a Gaspar Varela, ao leme da guitarra portuguesa, o melhor solo da noite pela mestria que demonstrou em recriar uma das composições mais intrincadas do grande mestre.