Ao segundo dia, a entrada no recinto do Festival Vapor é quase como que atravessar um portal mágico que nos leva até uma outra dimensão. Depois do “cheirinho” da jornada inaugural, o ambiente que se vive dentro do certame agora permite-nos ficar ainda mais embrenhados no espírito steampunk graças à presença de mais pessoas vestidas a rigor — não apenas do público, mas também em diferentes bancas, onde se pode encontrar à venda diversos tipos de artesanato alusivo a este universo, e várias actividades que vão muito para além da música, como as oficinas para construir autómatos, as sessões de jogos de tabuleiro ou o laboratório de escrita. Este “comboio” parte logo ao meio-dia e não faltam iniciativas para entreter os presentes — da performance e do cinema às históricas carruagens que já fazem parte do cenário natural do Museu Nacional Ferroviário e que também podem ser visitadas por estes dias — até à chegada da hora a que se iniciam os concertos, já perto do pôr-do-sol.
Sinónimo da sua ambição em crescendo, o Vapor deste ano contou no seu cartaz com a presença de uma artista musical internacional pela primeira vez. Foi com grande deslumbramento que assistimos à performance de Sarah McCoy, ela que rubricou a primeira actuação do segundo dia do festival, com arranque marcado para as 19 horas. No palco ao ar livre, deu logo a conhecer ao público o seu poderio vocal quando, ainda sem microfone, começou a cantar encarando-nos de pé e de frente. Expressiva e teatral, a cantautora norte-americana sentou-se de seguida ao piano, demonstrando igual destreza no manuseio das teclas brancas e negras que, com fluidez, faziam a “cama” onde os seus versos se deitavam. Nunca se inibiu de dizer o que pensa e, apesar do tom melancólico que muitas das suas músicas têm, admitiu que até estava num dia bom. Entre jazz, blues, soul e uma certa estética burlesca, expôs as suas fragilidades e desejos em frases que nos falavam sobre ex-amantes, futuros amores e incertezas pessoais, intercalando esse seu lado taciturno com algumas letras e melodias mais optimistas que creem em dias melhores. Sem grande show off, conquistou a audiência graças à técnica aprimorada e à fala sem filtros, algo que lhe valeu uma das maiores ovações desta 5ª edição do Vapor.
Do domínio das dúvidas existenciais passámos para as problemáticas que envolvem a sociedade como um todo, sob a batuta de Adolfo Luxuria Canibal e os seus Mão Morta. O carismático vocalista do histórico conjunto de rock alternativo português foi sagaz na interpretação das letras que compôs para o mais recente registo discográfico da banda Bracarense, Viva La Muerte!, um urgente manifesto antifascista pensado como forma de celebrar os 40 anos de vida dos Mão Morta, o 50 anos do 25 de Abril e, acima de tudo, para ser usado como arma de combate face à ascensão dos extremismos na política e sociedade portuguesa, numa altura em que as ruas fervilham de tensão e as elites procuram silenciar ainda mais os marginalizados. Bebendo de alguns dos maiores vultos da canção de protesto nacional — como José Bário Branco ou José Afonso —, Adolfo Luxuria Canibal faz a luta com doses acrescidas de corrosão e aponta directamente aos seus alvos, sem necessitar de mascarar os poemas com medo da censura. Apesar do descontentamento de alguns dos presentes pela falta de clássicos anteriores neste repertório de Mão Morta, importa sublinhar que este não é o momento certo para o entretenimento, mas sim para a acção. A banda sabe disso e a sua nova proposta para estes últimos meses de estrada recai no teatro musical político de que é feito Viva La Muerte!, onde virtuosismo instrumental se funde com sons de sirenes e versos capazes de armar o povo e decapitar “queridos líderes”. Resistimos juntos.
Depois da marcha, a dança. Bailar também é uma forma de protesto e os Bateu Matou são um grupo que nos quer fazer mexer o corpo ao mesmo tempo que nos mete a cabeça a pensar. Com Ivo Costa ao centro numa bateria de contornos mais tradicionais e ladeado por Quim Albergaria e RIOT, cada um deles com uma estação de trabalho munida de inúmeras percussões, este projecto que nasceu no coração de Lisboa tem-se feito acompanhar também de um par de vozes para complementar as sua performances. Nos microfones, os suspeitos do costume — Raissa e Pité — entraram em cena logo de seguida para adornar as edificações instrumentais do trio. O formato é inovador e ganha pontos por isso. Não só não é normal vermos uma banda tão focada na componente rítmica ao vivo, como fica ainda a sensação de que estamos perante uma performance híbrida que se situa no limbo entre e o live e o DJ set. Há muito material gravado que serve de pano de fundo às percussões, bem como os dois mestres de cerimónias recorrem por vezes a letras de temas que pertencem às discografias de outros projectos que lhes são próximos — nas gravações, também conseguimos escutar vozes de Kendrick Lamar ou Flowdan. Com uma dupla de discos editados nos últimos anos, o single mais recente, “Pomperó”, o único lançado este ano, foi dos que mais reacções arrancou do público — e faz todo o sentido que assim seja, dada a batida frenética e os versos com que a classe operária tão facilmente se associa. Como um verdadeiro grupo de baile, incentivaram-nos (e conseguiram) a fazer um inception — o combóio humano entre os combóios parados compreendidos pelo Museu Nacional Ferroviário. Um feito que ainda ninguém se tinha lembrado até agora e que fica riscado da lista do Vapor à quinta edição.
Findados os concertos no palco interior, a festa prolongou-se até para lá das duas da manhã na rua, por entre o pátio que serve de zona de restauração, onde estava o arquitecto e também DJ forest a servir a blueprint perfeita para que a noite de dança se prolongasse por mais um bocado. Houve clássicos da new wave, electrónica disruptiva britânica dos anos 90 e malhas mais ligadas ao presente num set eclético que embalou os festivaleiros até à hora do regresso ao pousio.