A mulher como artista, como música e como compositora traz a arte no feminino, no som que ousa uma outra sensibilidade, em tanto inaudita — haja espaço para se fazer e deixar acontecer. Premissas que vêm do sonho, mas muito mais da inquietude e do inconformismo face a uma dominância — ainda que disfarçada aqui e ali de paridade — que oculta a afirmação do lugar da mulher como elemento de criação artística na música. O tema é urgente, ainda para mais no meio jazzístico. Veja-se como uma corrente estética musical que na sua génese de afirmação foi feita de minorias feita e profundamente revolucionária nisso esmoreceu em grande medida aos tempos de agora. Tornando-se até pretensiosamente elitista e onde o ser-se mulher deveria ser bandeira desfraldada na frente. O presente traz-nos algumas manifestações de soberania e galhardia — haja quem, é também aqui.
A cantora Rita Maria, convidada a celebrar o dia Internacional do Jazz nesse nada distante 2022, sonhou em ir mais além. E dessa porta aberta à programação no Centro Cultural Malaposta surgia o Festival THEIA – Música Contemporânea e Jazz. Uma história recente, mas relembrada pela própria curadora do festival, agora na sua terceira edição e num novo espaço em 2025 — no Teatro Municipal da Lousã. Conjugadas as forças de uma proposta militante com o reabilitado e ampliado espaço das artes na vila — cheira a tinta fresca, e de forma redobrada pela iniciativa.
A música no festival foi em muito feita de repertório reinterpretado, novo e estreias. O primeiro concerto que assistimos, no final da tarde de sábado (27 de Setembro), trouxe uma mão cheia de novas composições para trio de piano, contrabaixo e bateria da compositora e pianista Rita Caravaca. Sem nomear qualquer dos temas, as palavras ficaram subjugadas aos fraseados do piano que imprimem um sublimado de melancolia e herança pianista portuguesa entre Laginha e Esteves da Silva. Seis composições que apontam identidade e memória, como olhando o presente desde um passado cristalino. Ciclos de vida vibrantes escutados em placidez outonal e onde o contrabaixo teve um exímio suporte do tempo, com Francisco Brito na vez de Emanuel Inácio, habitual impulsionador e cúmplice nos arranjos das composições de Caravaca. Na bateria, Francisco Coelho sustentou, sem mácula, o ritmo da música e fez-nos recordar a sua recente presença na Orquestra de Jazz do Funchal às mãos e música de Maria Schneider. Trio que voltou a palco para um extra em exercício, com “The Unanswered Question” do compositor Charles Ives, originalmente pensado para quarteto de clarinetes, mas de plena função num trio clássico de piano jazz, desafiando sem procurar respostas.
Maria João é sinónimo de jazz e tradição inovadora no feminino e máxima expressividade vocal — pioneira. Como companheiro de palco, dos primórdios duetos, Carlos Bica no contrabaixo retomando a cumplicidade musical com que gravam Close to You para a JACC Records, em celebração. Juntam-se João Farinha no piano e teclados e Gonçalo Neto na guitarra eléctrica, para um efectivo quarteto que se liga num arco temporal. O repertório é em boa dose de retoma de canções que vestem à sua dimensão em perduradas versões como escutadas em “Woodstock” de Joni Mitchell, “Oh My Love” de John Lennon ou “Norwegian Wood” de Lennon e Paul McCartney. Notáveis as ligações telepáticas entre cordas e entre teclas e voz de “Close to You”, duetos de hoje que se ouvem na esteira apreendida da dupla em decana candura entre Bica e João. Histórias de vida contadas na primeira pessoa e que são parte da história do jazz português também. Houve temas que Bica deu aos discos de João e os que receberam a inconfundível voz de João. Finalizaram num regresso ao palco directos ao incontornável “What A Wonderful World”, a provarem a imortalidade das canções também e quando ressignificadas no encanto feminino.
Perdemos em escuta os concertos do quinteto de Maria Fonseca na sexta à noite e da dupla presença nas jam sessions do quarteto de Lucas Santos na sexta e sábado. Contudo, o domingo (28 de Setembro) reservou dois outros no Teatro. Pela manhã, ainda húmida mas promissora e solarenga, subia ao palco o grupo de Estágio THEIA. Uma formação alargada de intérpretes aprendizes das escolas profissionais de jazz de Lisboa, Coimbra e do Hot Clube de Portugal. Estiveram pela primeira vez em grupo durante uma semana na Lousã sob a tutoria musical da cantora Margarida Campelo, do guitarrista João Freitas e do saxofonista Tomás Boto. Uma experiência marcante para Mariana Barros no baixo e contrabaixo, Afonso Teixeira Lopes e Miguel Flaming nas guitarras eléctricas, Henrique Santiago e Inês Gomes nos teclados e bateria, Matilde Vitorino na voz, Catarina Louro no clarinete, Sara Felix e Guilherme Trigo nos saxofones tenores. Além do repertório de outros, foram além e trouxeram “Vai Miguel” como composição colectiva e inédita. Uma demonstração de inventividade e mutante, com alguns dos músicos a trocarem de instrumentos mesmo no decurso de alguns dos temas. De baterista a vocalista, das teclas para a bateria, da guitarra para o teclado — multi-instrumentistas de base.
Beatriz Nunes, cantora e autora que actua neste festival como co-curadora, propôs e moderou a mesa-redonda “Cantando a Resistência: Mulheres na Música de Intervenção em Portugal”, um ponto central da programação ligando as palavras à música. A hora dedicada ao tema soube a escassa, pareceu uma introdução, pediu mais dedos de conversa. No campo musical que contesta o poder, pretendendo-se uma mudança social — mulheres na música e música de intervenção soa a dupla acção nesse domínio. Relembrado como primeiro disco feminista português o 7” Mulheres Guerrilheiras, editado em 1974. De Teresa Paula Brito, com dois poemas de Maria Teresa Horta e música de Pedro Jordão, estava dado o mote à pergunta, passados mais de 50 anos, se “ainda existe música de protesto?” Do painel escolhido para reforçar que o tema é de hoje, intervenientes do presente onde Mynda Guevara como mulher, rapper e negra, afirma em triplo significado a sua presença no espaço de intervenção. “Sim existe e eu sou a prova disso! (…) O meu posicionamento não podia ser distante, como artista, daquilo que sou enquanto pessoa — procuro sempre a verdade, a consciência e o justo. (…) Descobri ao longo destes anos que não somos muitas mulheres a fazer rap. É como pegar numa bandeirinha no meio da multidão e dizer ‘estamos aqui!’”. Mas nesse modo de fazer, Mynda considera que não há que pedir espaço: “Simplesmente chegamos e ocupamos — metemos o pé na porta sem pedir licença, numa forma de afirmação”. Paula Oliveira, interveniente e autora com 40 anos de actividade no campo musical, como cantora de jazz e pedagoga, responde que é necessária hoje essa música, como antes: “Essa necessidade sempre a senti”. Relembra que “isto está a voltar, [há] um ciclo perigoso”, num “isto” que se relaciona como uma ameaça presente e latente, que pede justamente (música de) intervenção, retomando repertório que existe — “temos que continuar com essa memória”.
“Qual o papel do canto de intervenção e desse repertório na perspectiva actual, onde a fala dominante é masculina, branca?”, interpela Beatriz Nunes. O musicólogo e compositor Hélder Bruno aponta o momento actual e que justifica plenamente esse papel: “Estamos a assistir a um discurso de vingança em relação ao passado, a uma vivência das elites em relação às massas. Nós somos sempre o outro para alguém em alguma circunstância”. Há um divisionismo social a operar, como salientou, porém e ligando a música e sociedade, “sabemos da musicologia que toda a música intervém, mesmo aquela que se diz neutra”. A intervenção na música está presente e não tem que ser vista numa única pertença, isto apontando aquela que se cunhou como de emancipação de valores de liberdade e igualdade. Este é o ponto que nos traz ao aqui e agora, precisamente e através da música dominante e dos seus efeitos.
A fechar, o Ensemble THEIA, uma formação mutável do festival que parte de um convite à composição. A vocalista Nazaré da Silva apresenta um inédito que trabalhou com as intérpretes convidadas, Teresa Costa na flauta transversal, Margarida Vieira no violoncelo e Mafalda Lemos na guitarra portuguesa. Um trio nada visto para uma música a descobrir no imediato. Um tríptico audaz para uma tríade instrumental que se assome ao universo da sonoridade banhada pelos acordes a doze cordas de aço. A guitarra é voz predominante mas em regime dócil, dançando a par do violoncelo, em que a flauta é lírica como ave do paraíso. A atmosfera do primeiro andamento é de assombro camarístico, serenidade descritora da paisagem. O segundo andamento traz a contemplação, entrelaçam-se as pausas e silêncios e há duetos combinados, alguém escuta as outras e na resposta encontra o convite a seguir. Para o terceiro andamento fica a aceitação do desafio, para o desconhecido dos demais sons, das ilhargas também, da guitarra ao violoncelo, para o voo picado da flauta e sobretudo para o fundamento da voz. Nazaré da Silva traz aragem profunda e melodiosa no registo — própria de quem compôs para se escutar num interior (re)velado. Momentos que assim se eternizam, e com a promessa de que o que se escuta se imortalizará num registo a editar. A música assim intervém, e de que maneira — os reflexos vêem-se em seguida!