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Fotografia: Joana Linda
Publicado a: 22/02/2023

Uma double bill que fez todo o sentido.

Festival Rescaldo’23 (17 de Fevereiro): espelhos desiguais

Fotografia: Joana Linda
Publicado a: 22/02/2023

Desde a sua primeira edição, o festival Rescaldo tem tido como premissa estabelecer um encadeamento para o futuro próximo da música que foi mais relevante na cena nacional no ano (ou nos anos) anterior(es). O modelo de dois concertos por cada dia ficou estabelecido como uma característica do evento. Poucas vezes, no entanto, uma double bill fez tanto sentido como aquela que foi apresentada no passado dia 17 de Fevereiro, e isso apesar da desigualdade dos resultados. A primeira parte fez-se com Cândido Lima e a segunda com um quarteto formado por André Gonçalves, Maria da Rocha, César Burago e Violeta Azevedo.

Porquê? Bom, porque associou um compositor e pianista fundamental na história da música electroacústica e electrónica do nosso país, Cândido Lima, com um grupo de ainda jovens músicos que (à excepção de Burago) utilizam dispositivos electrónicos, mesmo quando os seus instrumentos primeiros sejam outros, o violino no caso de Maria da Rocha e a flauta no de Violeta Azevedo. Foi como se cada performance se reflectisse na outra, em termos de evolução da electroacústica, em termos de enquadramento (o da electroacústica erudita e o da experimental, criada fora dos cânones da música contemporânea, mas devedora dos seus abrires de caminho) e em termos geracionais, com uma maior ligação do segundo concerto à actualidade – diga-se já que nem sempre da melhor maneira, com pastiches de várias figuras do mesmo domínio hoje em actividade.

Para todos os efeitos, Lima foi um pioneiro em Portugal no uso de dispositivos electrónicos e de vídeo ou filme nas suas actuações, tendo estudado (e privado) com Xenakis, Stockhausen e Ligeti, ligações que podem evidenciar-se nos formatos, mas nunca por mimetismo. E lá estava, com o seu piano, num canto do palco, enquanto se sucediam imagens suas no fundo, em tamanho gigante. A parte electrónica, essa, estava pré-fixada, tendo sido essa a principal diferença com o que se ouviu de seguida, que foi improvisado, mesmo que se tornasse evidente que havia um guião e ensaios realizados. Ainda assim, a forma como Cândido Lima tocava era adaptada ao momento, ao modo como a música ia decorrendo, com as projecções também a influírem na sucessão, e na interligação, das peças. Ou seja, havia também elementos improvisacionais, ou pelo menos indeterminados, não longe do que fez a New York School em tempos idos (Cage, Feldman, Wolff, etc.), relegando para a interpretação em cena cada configuração das obras.

Aliás, nas composições do pianista encontravam-se diversas adopções daquilo que ficou definido como “música contemporânea”, como o pós-serialismo ou até o minimalismo, dadas as repetições de motivos e ainda que seja de imaginar que Lima negasse tal filiação. Passagens houve que foram uma delícia, ora quando dançou as mãos nos dois extremos do piano, puxando pelos mais graves e pelos mais agudos, ora quando o que fazia pareciam chilreios ou pequenas ondas do mar.

Depois de um intervalo fumante, veio o quarteto. André Gonçalves e Violeta Azevedo estabeleceram uma “cama” para o que mais acontecia. O primeiro, estranhamente, optando pelos drones típicos da música por computador destes dias, muito embora estivesse munido de um sintetizador de sua própria confecção. A segunda ligou a flauta a pedais de efeitos, raramente se ouvindo o instrumento de sopro, mas assim dando corpo, substância e volume à sua contribuição electrónica. Couberam a César Burago e Maria da Rocha furar esse plano, um com os “cortes” das suas pequenas, mas poderosas, percussões, a segunda abraçando um papel solístico, algumas vezes parecendo que estava fora de contexto, porque o que demais acontecia era iminentemente colectivo.

Burago é conhecido pela forma ultra-concentrada e cheia de espaços com que toca, mas tal não se verificou neste concerto. Mudava de instrumento continuamente e, contra o que é seu hábito, desdobrou-se em sons. Rocha estava igualmente suportada por pedais, agachando-se frequentemente para ligar, desligar ou manipular efeitos, mas regra geral não se notou alguma alteração no timbre do violino. Não foi um mau concerto (talvez algo entediante, convenhamos), mas podia ter sido excelente, ou era essa a nossa expectativa. Os trajectos dos intervenientes prometiam-no. Se a actuação de Cândido Lima teve tudo de retrospectiva e foi inserida no programa, certamente, em homenagem ao compositor de 84 anos, ficaram dúvidas quanto ao que fará, daqui por diante, este projecto a quatro. O potencial está lá.


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