O programa do Festival Profound Whatever viu-se e ouviu-se a atingir o seu auge, na extensão como na emoção, no longo dia de sábado (17 de Maio) n’A Moagem do Fundão. Como haviam comentado em entrevista ao ReB João Clemente e Nuno Santos Dias, na antevisão desta 4.ª edição do festival da editora Profound Whatever, há um sentido — mesmo que informal — de comunidade a funcionar. É a amizade e partilha entre músicos locais, e que trazem outros mais a juntar-se, que leva a que nestes derradeiros concertos agradecimentos na forma de “adoro tocar para vocês”, “amo este festival” ou “é um enorme prazer estar aqui” sejam expressões recorrentes em finais de concertos. Acima de tudo, a música aqui faz-se e partilha-se profundamente livre de cargas que criem distância. É música e é para ser tocada, ouvida e usufruída na emoção. A ideia de que linguagens musicais criativas, sejam nos campos experimentais, da improvisação ou tão somente do menos convencional, implicam um qualquer conhecimento prévio musical para aceder ou entender afasta-se, criando uma ligação e aproximação efectiva. É aliás esse o espírito do festival, como recorda João Clemente quando assume, informalmente (por motivos legais), que este é um “festival de música sem merdas”, precisamente livre de filtros e barreiras que travem ou dificultem o acesso à arte em evidência. A presença do festival no Fundão e no espaço d’A Moagem é facilitadora e liga-se ao que vem de trás. Antes deste centenário complexo de moagem cerealífera ter sido readaptado à funções culturais em 2007, quando em situação de abandono e ruína, era visitado e ocupado por uma inquieta comunidade de criativos da cidade e arredores. Nele faziam acontecer diversas manifestações artísticas. Um espaço e gentes profundamente enraizadas na criação livre e espontaneamente genuínas. Hoje há músicos e público presente, que embora não tenha vivido esses tempos prévios, é parte integrante dos que inscrevem este agora e que parecem assegurar o futuro.
A tarde de sábado fez uma ocupação versátil dos espaços d’A Moagem. Com dois palcos mais a serem montados, para além dos outros três onde a música teve e continuará a ter lugar. Têm-se uma imagem de um espaço multiverso. Como noutras edições, a tarde é composta de “Íntimas Miniaturas”, série de curtos concertos, que começam por se partilhar com o som profundamente presente da guitarra portuguesa. Paulo Silva, acompanhado por David Lourenço (guitarra clássica), trouxe temas inéditos muito na esteira das barcarolas de Carlos Paredes, depois de um primeiro tema de livre improviso e que mostra um campo aberto mesmo na abordagem a uma instrumentação aparentemente mais amarrada a uma tradição musical. Foi de um certo tradicional contemporâneo que foi feita esta abordagem. Seguiu-se, em mote de homenagem inesperada, a sentida performance que Kresten Osgood (em bateria) trouxe à sua miniatura no palco do vão da escadas metálicas. Este espaço é verdadeiramente ressoante, com uma acústica e lugar para fazer ascender pensamentos positivos, como os pedidos por Osgood para com a luta pela vida do cantautor e activista Willie Nelson. “So pick up the tempo just a little and take it on home / The singer ain’t singin’ and the drummer’s been draggin’ too long”, como cantou e assim o fez. Usou com intencionalidade, em intensidade e extensão, a sua rudimentar bateria ao corpo. Um todo, a subir. “You’re a lovely octopus”, devolvia em agradecimento final. De volta ao outro palco para outra miniatura, com guitarra eléctrica e contrabaixo, para Leonel Mendrix e Joel Madeira respectivamente. Houve uma dupla que deixou um rasto enorme na música — os Dead Combo —, e aqui fica mais um exemplo que perpetua o legado. Temas inéditos como que a compor bandas sonoras de filmes imaginados. Em “Era uma vez Portugal” encontrou-se um dos melhores temas desses filmes, pela nostalgia e melancolia emprestada por momentos. Ana Albino e Rodrigo Lima foram duo de leitura de pautas glico-doces para guitarra. Como que uma dupla de Amor Fati em cordas amplificadas. Trazendo para perto cumplicidades entrelaçadas que se desejam na vida. A terminar as intimidades vividas esteve João Mortágua, num dos melhores solos que já lhe assistimos. Junto do seu envelhecido saxofone alto, fez uso e abuso de toda a acústica reverberante do lugar. Fez-se actor, soprardor e declamador de uma performance vociferante e cantagiante. Demorou a aparecer — ouviu-se com redobrada atenção e curiosidade. Desceu a escadaria — saboreou-se cada melodia de espontânea criação. Aterrou diante dos presentes — uma vez com os pés bem assentes no rés-dos-chão, fez-se elevador das mentes que escutam o belo.
Lá fora, a vida em profundidade de partilha e escuta estava disposta a servir mais. Juntava-se um trio de teclado Waldorf, baixo e bateria. O mesmo foi ver, para ouvir de perto, Rodrigo Pinheiro, Nuno Jesus e Gonçalo Alves respectivamente nas instrumentações. Na edição de 2024 soube-se ter havido Nuno Santos Dias nesse teclado, que é o seu instrumento operativo em Made Of Bones e já havia estado dele ocupado no dia anterior na formação mais alargada de todo este festival. A ideia de como se produz novas possibilidades com outro músico é posta à prova. Um concerto feito de duas partes destintas pelo efeito que se cunhou de imediato como maldição electro-waldorfiana. Começam fulgurantes num groove quase num registo que pedia um grande mestre ou mestra de cerimónia nas palavras. Grande amplitude e embalo. A surreal sonoridade do teclado electrónico trazia um timbre que se assemelhava um vibrafone em palco, tão bem conjugado com aquele baixo, ora obsessivo ora desafiante, que soube próximo ao de Bill Laswell, sobre uma bateria sempre condizente no ritmo. Depois o tal momento de maldição. Sem o Waldorf a operar, Jesus e Alves fizeram por entreter, mas perdeu-se o primeiro grande momento que se desenhava de grande gosto e resultado. Voltaram com grande alivio por recuperarem o trio, mas sem alcançarem o lugar onde tinham sido subitamente deixados. Soube a drama, nem tanto pelo que lhe acontecera, mas até pelas marcas inconscientes deixadas que a música em nada escondeu. Quereríamos ouvir muito mais desta estreia. Talvez saibam voltar a agarrar uma ideia no voltarem a esse promissor lugar — oxalá o façam.
Depois, à noite, o grande efeito surpresa. Talvez nunca se esteja preparado para o maravilhamento quando assim acontece. Em palco sabia-se que ia haver Lume. Mas o primeiro e transcendente impacto foi no tirar as medidas ao vistoso tear de madeira que ali estava. Ao seu lado uma bateria, um sintetitizador modular, uma guitarra campaniça e outra eléctrica, entre outra instrumentação. Uma junção do multinstrumentista Gonçalo Parreirão à artista tecelã e performer Inês Barreiros. O nome Lume vem da ideia em forma de praga rogada que tecedeiras de outrora lançavam aos teares: “Queimo este tear para que quem venha não sofra a vida que eu sofri”. A peça musical parte desse trauma de vida, um tipo de amor-ódio. Para quem assiste à cadência do mecanismo do tear a funcionar, depara-se com o extremamente belo e poético. Contudo, essa sonoridade e ritmo é sinal de extenuante e de árduo afinco de muitas vidas — quase em vão, se dermos a volta ao contexto, ouvindo-se dor e sofrimento. O suor que Inês liberta no rosto é de esforço, mas aqui conjugado com os focos de palco e o prazer de estar a produzir esta música. Os suores das tecedeiras aos teares foram-no (são) tantas vezes de outra natureza. Parreirão alia-lhe em exercícios descontínuos outras instrumentações. Uma textura de modulares, em modo introdutório e de rara beleza, como noutros associa uma bateria — decalcando e sobrepondo por vezes em demasia a sincope dos ritmos, desligando outros ganhos. E a peça decorre muito dessa instrumentação conjugada. Ouve-se a viola campaniça e nisso há um dos mais belos momentos — rumo a um lugar ao Sul. A tecedeira descansa ao teremim e é como se mais uns quantos teares fossem parar à tal fogueira dos tempos. A perda do valor da indústria têxtil é posta em analise histórica — em imagem. A peça havia começado com o apito das fábricas — chamamento ao trabalho, assim termina a possível narrativa, em desfecho de estória contada. E não por acaso se ouvem gravações de campo de viagem para o extremo oriente — o fulgor e valor da industria dos teares (mecanizados), foi para lá que viajou. Perderam-se muitíssimos deles como ferramentas, mas esta dupla fez ganhar em grande medida um instrumento de enorme valência musical. Já em 1984, Adolfo Luxúria Canibal com o desaparecido músico Joaquim Pinto e Miguel Pedro traziam à cena performativa bracarense os PVT Industrial, num breve grupo de trabalho feito dos ciclópicos sons de berbequins e ritmos dos teares manuais — daí surgiriam os Mão Morta. Neste Lume, Parreirão e Barreiros abrem campo para uma ideia que, embora não inovadora, traz muito caminho novo para andar. Razão para muitos dos músicos na plateia do auditório subirem e não arredarem pé do tear em palco — quantos projectos daqui podem ter nascidos? Viu-se como uma sementeira de ideias a acontecer em palco.
De novo lá fora — nas traseiras d’A Moagem — para ver a formação mais cúmplice, à partida, no programa. Entre José Lencastre e Kresten Osgood têm havido palcos desde tempos passados e em trio, com João Hasselberg, tocaram antes de aqui chegar na ZDB. Ainda assim, é uma aventura a seis mãos o que se espera. Lencastre oscila entre o alto de velha patina e o tenor resplandecente. Osgood traz ímpeto de sobejo e Hasselberg é inquieto num sobe e desce manipulando até dois baixo à vez, mas em que toma os pedais e cassetes como base de trabalho preferencial. A certa altura vem de gravador na mão para um vox pop: “O que está a achar do concerto?” A resposta foi pronta e imediata: “Lascivo, muito lascivo”. E por esses campos continuaram, com Osgood a fazer todo o papel de mestre de cerimónias. Foi por isso que as palavras finais foram qualquer coisa como: “I don’t trust in my inner feelings. My feelings go and go”. Foram transgressores em metamorfoses e por isso são bem capazes de nem se lembrarem ao certo do que fizeram. Aconteceu… Ainda que contar como foi seja todo um outro departamento.
Palco para o sexteto constituído por Ana Albino (guitarra), Joana Guerra (violoncelo), João Lucas (baixo), Nuno Santos Dias (Waldorf), João Mortágua (saxofone alto) e João Valinho (bateria). Uma das formações que melhor soube equilibrar as doses no momento do empratamento ou de uma roda alimentar equitativa. Mais uma das muitas estreias que este festival trouxe ao mundo. Ainda bem que tudo (ou quase tudo) ficou gravado, já a perspectivas futuras edições da Profound Whatever. Foram ricos nas texturas e linhas narrativas, trazendo, e dado a hora tardia, conforto em amparos melódicos com frequência. A presença de um violoncelo foi um ponto de equilíbrio ao ímpeto mais destilado do saxofone. As cordas da guitarra, quase sempre em trabalho de filigrana, fizeram com que a ternura não se devesse só à cor da Stratocaster. A habitar no baixo, uma coesão quase discreta, mas efectiva na função. O Waldorf talvez tenha sido a sonoridade mais sacrificada no se fazer ouvir — quem sabe ainda a recuperar do susto. No entanto, nos momentos com mais espaço lá estavam as teclas que sempre nos devolvem essa paisagem meio surreal. Todos contaram com a bateria de Valinho, um poço profundo de força motriz e cheio de matizes e detalhes. Juntos cresceram para um vortex que aglutinou sem mácula, o dano era tão somente do adiantado da hora…
O desfecho da noite foi com Etkar — que pelo relógio já era o dia derradeiro. Trata-se de uma crónica visita ao programa das festas, desde a primeira à presente edição do festival. Trazendo um dispositivo multimédia com ele, em que na tela mostrou sinopses de um mundo em catarse e imagens transfiguradas por processos desobstruídos por vias digitais. Como que um mundo em descomposição como narrativa. Poderão ter sido as imagens a justificar até o som praticado, assente em esteiras sonoras pré-gravadas sobre as quais sobrepunha lânguidos acordes de guitarra eléctrica. A ida frequente de um leitor de cassetes ao campo sonoro, em modo de fast-forward, denotava a pressa em que a narrativa se processava.
O festival este ano teve um dia extra, ou melhor, uma apresentação que justificou um final de tarde de mais um dia. Esse domingo (dia 18 de Maio) cumpriu-se lento e dolente, até por fim se abrirem portas. Muitos da comunidade Profound Whatever tinham levantado âncora, havia um indelével tom de fim de festa. Em que a feira de venda e trocas de discos e livros possibilitou mais momentos de convívio e enriquecimento das prateleiras de cada um e cada uma. O desfecho musical programado fez-se “No Silêncio das Flores”, trazendo a palco António Malta Gomes, Bruno Mazeda (do duo Batucada) mais Gonçalo Alves e João Clemente (músicos da Profound). Um concerto que é uma co-produção entre os municípios do Fundão e de Macedo de Cavaleiros. Tendo já tido palco em terras transmontanas, era a vez da Cova da Beira. Um processo resultante de uma residência artística, partindo de identidades de cada território. Se Trás-os-Montes tem tradição musical de gaita de fole ou em flauta de tamborileiro, nenhuma foi executada tal qual — houve gaita e flauta, mas de outras paragens. Para os músicos da Beira Interior, entre uma guitarra eléctrica e bateria não há propriamente uma tradição a manter-se. Mas estes motivos de encontro servem para reinventar, mesmo que uma qualquer estratégia no programa de os fazer juntar sirva melhor esses discursos da dita tradição. Precisamente João Clemente referia a Rui Eduardo Paes para o Passos na Floresta, no desfecho da edição transacta, que com todos estes anos de actuação da Profound Whatever no território: “Talvez daqui a cem anos se entenda que o que estamos a fazer agora é a música tradicional desta região. Quem sabe? Seria curioso, não seria?” Ainda faltam para ai uns setenta anos, se for o caso de alguém querer saber. Neste agora houve como que uma sonoplastia para um corpo de actores não presentes em palco. Soou a uma música onde as forças vieram dos que escutam os dias nestes confins do território — fazendo novos epicentros — e onde as palavras escutadas de “quem ha-de fazer as serras?” fazem pleno sentido para o futuro.