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Fotografia: Mínima
Publicado a: 05/02/2024

A porta continua aberta.

Festival Porta-Jazz’24 — Dia 2: fazer a festa dos 100

Fotografia: Mínima
Publicado a: 05/02/2024

A Carimbo é o braço editorial da Porta-Jazz, sendo a expressão para fora de palco da acção contínua do associativismo em torno do jazz nesta casa. Criada em 2012 e alicerçada no espirito empreendedor do DIY — fazer pelas próprias mãos. A estreia foi com o disco da formação seminal de Coreto, espelho sonoro da criativa nova cena jazz no Porto. 11 músicos em torno das composições de João Pedro Brandão. A capa desse Aljamia a mostrar isso mesmo, efeito caleidoscópico, multiverso desde as múltiplas figuras, desde um mesmo núcleo a projectar-se num futuro multicolorido. Nesse número de catálogo PJ001, já se acomodavam três dígitos porque alguém imaginava que seria alcançado um dia o PJ100. Esse dia chegou e é hoje motivo de celebração. Encontramos o centésimo registo cunhado com o trabalho de Hery Paz, River Creatures (com Nate Wooley & Tom Rainey). As capas contam com o imprescindível dedo criativo de Maria Mónica e são inventivamente impressas num expressivo formato 20×20. Parecem conter um disco de vinil, num formato nunca antes visto, um 7 polegadas a caminho de um 10″. As edições são limitadas a 300 discos compactos e piscam o olho a quem entra a caminho dos palcos no multiverso Rivoli nestes dias de celebração.

E como em dias de festa, o programa faz-se entre família e amigos convidados. Começo em pleno palco, com músicos e plateia em partilha do espaço para Corrosion, título de uma edição Carimbo do ano passado, a cargo de Tom Ward (saxofone alto, clarinete e flauta transversa), Nuno Trocado (guitarra e processamento de electrónicas) e Sérgio Tavares (contrabaixo). Deste trio de improvisadores livre, esperava-se uma acção sonora corrosiva, capaz de fazer dano saudável nos que encheram a móvel e limitada plateia de palco. Hora da sesta para alguns, e foi com algo disso feito esta primeira prestação do dia. Uma música contida, cuja liberdade expansiva ficou amarrada no centrado comprometimento da prestação técnica de cada músico, mais cerebral que comunicante em público.



Há discos que têm mais chama de palco que este palco soube revelar. E às vezes, é no subterrâneo lugar que encontramos mais luminosidade. Assim foi. No sub-palco, esse espaço quase inabitado, e fascinante dos teatros, conta-se como lugar neste festival. Encheu-se até aos confins das reentrâncias com a voz vista e ouvida, como absoluto instrumento da berlinense Almut Kühne. No que estava programado para ser um How Noisy Are The Rooms?, revelou antes uma vibrante e estonteante projecção vocal. Música da mais simples e complexa natureza, é o instrumento que habita em cada um, mas experimentado ao mais incomum dos registos. Gutural, trauteante, lírico e verdadeiramente expressivo, ficam como notas que ajudam a descrever a transcendente dinâmica sonoro-coreográfica da autodenominada “maníaca vocal” Kühne, a capella. Viu-se sem os companheiros em palco, por razões impostas que nunca estamos prontos a aceitar nesta vida. Para dar ânimo de eficaz recuperação ao Alfred, que se viu súbita e forçadamente arredado de estar ali, idealizou-se um Vogel Brothers, ensemble solidário e imbuído de vontade curativa, composto por: João Pedro Brandão (saxofone alto), Nuno Trocado (em electrónicas), Pedro Melo Alves, Marcos Cavaleiro (baterias), Demian Cabaud (contrabaixo), juntos para acomodar aquela estonteante voz que todos queriam continuar a ouvir a tarde inteira. A satisfação dos que emergiam de novo ao foyer do Rivoli vinha estampada nos seus rostos. Pausa entre blocos, tão necessária para as primeiras trocas de impressão do dia.



Bloco 3, no pequeno auditório que se tornou enorme face à música desprendida por 3 excepcionais criativos musicais. Denominados por força das palavras como Blaser Trio, são formados pelo helvético trombonista Samuel Blaser, mentor do trio, pelo gaulês guitarrista Marc Ducret e pelo lituano saxofonista Liudas Mockūnas. Com esta formação são quase estreantes, mas acarretam longas trajectórias individuais e noutras combinações jazz. Aliás, os trios de Blaser são mutantes — outrora teve como parceiros o pianista Russ Lossing e o baterista Billy Mintz, como também outra combinação possível com outro baterista em funções, Peter Bruun, mantendo Ducret na guitarra. Mas o que importa para Blaser é desprender a vara e soprar com entusiasmo, falar através do trombone de varas é deveras o seu lugar na música. E que música, a que fazia falta neste lugar, num registo instrumental e criativo que trouxe muita fragrância e aroma. Mockūnas, dos 4 saxofones inventados apenas não fez uso do alto, alternando às dos outros 3 corpos metálicos e fazendo soar outra palheta do clarinete. Sempre intenso, de grande disponibilidade, fôlego circulatório e pleno de cumplicidade com os outros dois, que em muitos desses momentos se apresentavam com um duo mais um, o criativo lituano. Isso ficou bem presente no tema veraneante de sua autoria ali tocado. O repertório do trio é feito dessa admiração e amizade musical mutua. Começaram por tocar duas composições de Blaser, passando por outra de Ducret, que toca uma guitarra deveras afeiçoada ao si mesmo, como que única até na configuração. Esta prestação fica na memória do festival e de muitos de nós, seguramente, até porque apenas a ela se pode recorrer para retomar este desempenho. Em registo discográfico dos três, apenas há combinações em duos, Silent Vociferation por Ducret/ Mockūnas, Audio Rebel por Ducret/Blaser ou Voyageurs com Blaser/Ducret, mas em trio ou mesmo um registo entre os dois sopradores são novos lugares em qualquer parte, o que revestiu de maior relevo o primeiro concerto do fim de tarde de sábado.



O auditório, sem se esvaziar, voltou a encher para ver e ouvir WIZ, como acrónimo vindo das letras dos nomes de Wilfried Wilde (guitarra), Iago Fernández (bateria) e “Zé”, José Pedro Coelho (saxofone tenor). Mais uma mostra do catálogo Carimbo em palco, oportunidade para conferir ao vivo o disco ou fazer disso a vontade de o ouvir. Com o trabalho WIZ já lançado em 2021, suportaram o alinhamento no recente Mosaico, que teve edição no ano passado. É nesse chão ladrilhado e muito reluzente que é sentida a música deste trio, que não assenta na comum formação de trio jazz pela inexistência de baixo e faz disso um campo aberto de composição e entendimento, nada grave, bem leve e glico-doce. Verdejantes planícies, paisagens desafogadas e amplas, com perfumes a circular, num tempo harmonioso desprendido desde os temas conduzidos pelo tenor e amparado de harmonia pelas cordas como em “Twin Peaks”, ou no reverso da composição como em “Pretty Sure”, ou nas cascatas produzidas por Wilde com “L’oeil”.  Em “Mosaico” mostram-se capazes de uma abordagem com mais nervo a intrometer-se pelo desconhecido espaço, e num sedutor ladrilhar mais enigmático e incomum que desperta um querer mais desse lugar.



Sem esquecer que de uma festa se trata, momentos há que nos fazem entediar um pouco no decurso festivo. Como alguém que, por cansaço ou num momentâneo desligar, fica emocionalmente desconectado com o festim em redor. O concerto de abertura do bloco da noite foi algo disso mesmo para alguns. Amostragem sobranceira esta, certamente, mas sendo a música uma linguagem emocional, pode servir para ilustrar o vivido no contexto. Dez músicos em palco é um daqueles momentos maiores em potencial sonoro, pelo menos isso traz invariavelmente consigo. A ligação entre as associações congéneres e parceiras, Porta-Jazz e Robalo, tem um espaço expressivo de construção conjunta que é o Ensemble Robalo/Porta-Jazz, até então na forma de sexteto e agora ainda mais alargado. Depois da estreia na passagem pela Festa do Jazz, no CCB em Dezembro ultimo, trouxe agora ao Rivoli o Decateto Porta-Jazz/Robalo com as composições e arranjos do pianista e compositor berlinense, assente em Londres, Hans Koller. Porem a expansão em número de músicos não se traduziu em igual medida na emoção. Foi um repertório, num relevo pouco significativo, que transpôs em comedida forma a massa sonora ali em palco, cheio de grandes músicos. Hans Koller no piano e condução, James Banner no contrabaixo, João Lopes Pereira na bateria, Eurico Costa na guitarra, Joana Raquel na voz, João Almeida e Gonçalo Marques em trompetes, e um quarteto de saxofones com Bernardo Tinoco, João Paulo Silva, Hristo Goleminov e Gil Silva.



Para o final, a razão da festa em torno da centésima edição. Um palco feito de Rivers Creatures, que neste multiverso universo jazzístico são um trio idealizado e composto pelo aqui saxofonista tenor cubano Hery Paz, com Nate Wooley em trompetes e Tom Rainey na bateria. Dois sopradores de grande craveira, dispostos a encher a plenos pulmões o volume de palco reservado para o efeito. A ligá-los ao chão, que nem fios de balões garridos amarrados aos braços de uma irrequieta criança numa tarde ensolarada pelo parque, esteve Tom Rainey. A ligação rendida ao som potente vindo daquele trio ficou comprometida no inicio pelo desfasado ajuste sonoro da propagação em sala, com o tenor e a bateria a fazerem-se ouvir em acústico e o trompete a ouvir-se notoriamente das colunas. Pormenores que perturbaram a fruição puramente emocional da música, tornando-se uma inquietude permanente que a esforço se tentou esbater. Retomar a música e a poesia de Paz como construção de um lugar, o tal onde habitam as criaturas dos rios: “Mas allá del reflejo… (ESPACIO) / Los sueños se esconden / Entre los dedos de los pies. / Fango. / Piedras…(ESPACIO) La realidad solo habita en la superficie. / El Río… (ESPACIO) / Calla para siempre”. É fundamental ceder o espaço necessário para que se revelem as palavras, as frases musicais e até as criaturas. Paz mostra-se em igual dimensão criativa nas palhetas e nas chaves do instrumento, como na poesia trazida. Está enraizado na cultura cubana que herdou do olhar do pai a ver no rio para além da água, o que ela faz surgir e o que nela habita e que nem todos vêm. É por isso que precisamos da arte e da visão partilhada dos artistas — ver melhor, ouvir melhor, ser-se melhor. E foi tão efémera a partilha para o que precisamos de saber. Fica o disco 100 da Carimbo Porta-Jazz a razão afinal para estarmos ali com quem nele verteu o que tinha a partilhar. É por isso, afinal, que os discos existem, para retomar sempre que for necessário e apetecer, num eternizar deste presente aqui vivido.


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