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Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 25/07/2021

Entre tempos.

Festival Porta-Jazz’21 – Dia 2: veteranos e jovens, presente e futuro juntos num jardim de cristal

Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 25/07/2021

A meio do dia de ontem, já depois dos concertos que marcaram o início da segunda jornada do Festival Porta-Jazz, em conversa via Zoom com os apresentadores do podcast brasileiro A Passion For Jazz, explicava o autor destas linhas que tinha que se apressar porque iria daí a pouco arrancar a segunda etapa do cartaz de sábado. “Que saudades de um festival”, admitiu-se do lado de lá do Atlântico. De facto, e ainda que com as mais do que compreensíveis limitações, a verdade é que hoje mesmo, domingo, chegarão ao fim os festivais de jazz que estão a decorrer em simultâneo em Viseu e aqui no Porto e dentro de alguns dias começará, em Lisboa, o Jazz em Agosto, um privilégio que não se deve minimizar. E deve dizer-se que tal ideia foi ontem várias vezes verbalizada por músicos que, a partir dos dois palcos, não se esqueceram de agradecer a presença generosa de público e de manifestar alegria por poderem estar a tocar ao vivo. Privilégio de todos, sem dúvida.

A primeira etapa do segundo dia do Festival Porta-Jazz começou com a apresentação do trio do contrabaixista Filipe Teixeira, um verdadeiro mover and shaker da cena do Porto, cúmplice de aventuras como Espécie de Trio, Baba Mongol e Low Budget Research Kitchen (melhor nome de sempre?…), sideman de vários outros projectos e autor, como líder, de Páginas (2015) e Tao (2019), disco gravado com o baterista Acácio Salero e o saxofonista João Mortágua de onde saiu boa parte da matéria para o concerto de ontem em que além de Salero teve ao seu lado o saxofonista Rui Teixeira, mais um músico com pergaminhos mais do que firmados no jazz nacional.

Filipe Teixeira é um contrabaixista de mão-cheia que não teme assumir um papel mais vincado na arquitectura do trio que dirige, mesmo tendo ao seu lado um instrumento melódico solista: nas suas composições plenas de subtileza, o som que as cordas do seu instrumento debitam ocupa sempre um espaço de relevo, mérito de quem entende o lugar que ocupa. Ontem, o trio soou especialmente entrosado e com fome de concerto, factos que contribuíram para termos logo a abrir um dos pontos altos do dia.

Acácio Salero foi igualmente incrível, um mestre da gramática que sabe bem que é dos seus pulsos que sai a pontuação que enquadra da melhor forma o discurso de prosa livre dos seus companheiros. Capaz de swingar como poucos, Salero usou da melhor forma o seu kit, harmonizando até os rim shots na tarola e timbalões com riffs saídos do alto de Rui Teixeira. Mas é a elegância daquela mão esquerda nos pratos que impulsiona o colectivo. 

Em “Tao”, tema-título do álbum mais recente de Filipe Teixeira, ou “Pequeno Sábio”, outra peça do alinhamento do mesmo disco, o saxofone de Rui Teixeira soou bem distinto daquele que conhecemos das gravações originais, com um nobre e dolente tom rugoso que encaixou na perfeição na cadência meditativa e baladeira dessas composições. Arranque perfeito para um dia recheado.

Logo depois subiu ao palco um projecto especial: Vazio e o Octaedro resulta de uma residência artística no âmbito deste festival, um colectivo dirigido por Gianni Narduzzi (contrabaixo e composição) e Josué Santos (saxofone e composição) e que inclui ainda os préstimos de Hristo Goleminov (saxofone), Afonso Silva (saxofone), João Cardita (bateria) e uma secção de cordas com Alice Abreu e Beatriz Rola (violinos), Rita Proença (viola) e Manuela Ferrão (violoncelo).

Explicam os próprios líderes do projecto no programa que decidiram “juntar a um quarteto de jazz que carece de instrumento harmónico um quarteto de cordas que lhe confere esse suporte e verticalidade”. Grupo muito jovem, que uma hora antes da actuação, numa das esplanadas do Palácio de Cristal, se divertiu a escolher camisas vintage saídas de um bem recheado saco como visual para a sua apresentação, estes Vazio e o Octaedro ainda tiveram que lidar com a logística complexa das pautas em dia de algum vento, problema resolvido com alguma imaginação, umas quantas molas de roupa, elásticos e fio.

Navegando águas que ora se acercavam de algum jazz mais clássico ora espreitavam modos eruditos, o colectivo soou ainda assim mais moderno a espaços. Em temas como “Big Sur”, que o contrabaixista e porta-voz confessou ter escrito depois de ler o romance com o mesmo título da autoria de Jack Kerouac, ou o ironicamente titulado “Please Insert a Fancy Title Here to Pretend That a Void Doesn’t Fill Your Mind” combinaram-se grooves vincados com declinação algo hip hop, bons arranjos que deram para escutar uníssonos de sax e violino de belo efeito, passagens com cordas dedilhadas a acompanharem o balanço do contrabaixo e momentos mais atonais das cordas em contraste com os sopros, de belíssimo efeito final. Ideias, arrojo e inovação mesmo antes do almoço. Nada mau.

Com o dia a resistir valentemente à ameaça matinal de chuva, ousando até os céus abrirem-se ao astro rei, a tarde trouxe apresentações do Ensemble Robalo / Porta-Jazz e de Nuno Campos.

O Ensemble que resulta da manifestação prática da amizade existente entre as associações lisboeta e portuense que lhe dão nome reuniu em palco Gonçalo Marques no trompete, Joana Raquel na voz, Hugo Caldeira no trombone, João Carreiro na guitarra, Demian Cabaud no contrabaixo e João Pereira na bateria. E ainda uma surpresa que Cabaud apresentou como o seu contrabaixista favorito da actualidade, o japonês Masa Kamaguchi que coincidentemente estava também pelo Porto.

O som apresentado, como Cabaud ironicamente referiu, é “algo freak”, apoia-se em composições de diferentes membros do colectivo, explora ângulos um pouco inusitados da ideia de canção, com ecos do Brasil evidentes na voz e nalgumas construções harmónicas, e busca caminhos mais exploratórios ou talvez desconstruídos, como se olhassem para as peças do puzzle da tradição e as procurassem encaixar de outra maneira. 

Seguiu-se o Nuno Campos 4tet que apresentou o seu belíssimo TaCatarinaTen (trabalho de 2020): Nuno Campos em contrabaixo, José Pedro Coelho no sax tenor, Miguel Meirinhos no piano e Ricardo Coelho na bateria, todos músicos de seríssima craveira.

José Pedro Coelho, de máscara presa com os elásticos no braço a servir como discreto símbolo destes tempos, traduziu da melhor maneira a carga emocional profunda que a música de Campos carrega, assinando alguns dos melhores solos do dia, plenos de alma, de pensamento, de certezas absolutas quanto à melhor nota a tocar em cada momento. Um verdadeiro mestre. Com Ricardo Coelho a, muito literalmente, dançar na bateria, comandando o swing geral a partir dos seus pratos de brilho intenso, o quarteto bopou forte e esta foi, claramente, a melhor receita para abrir o apetite colectivo para o jantar em que diferentes músicos voltaram a partilhar histórias à volta das mesmas mesas. E um festival também vive dessa dinâmica.

A noite trouxe, enfim, apresentações de Empa do baterista Miguel Rodrigues e o resultado prático de uma encomenda dirigida ao jovem saxofonista Hristo Goleminov.

Rodrigues trouxe para a sua beira o contrabaixista Demian Cabaud e o pianista José Diogo Martins para uma hora de classe. Curioso ver os pássaros que perante a eminência do crepúsculo buscavam o pouso para o descaso do seu frenesim diário, parecendo assim dançar ao som de uma música que é tão imprevisível como o padrão dos seus ziguezagueantes voos. Entre a exuberância rítmica e o silêncio recortado pelas baquetas com bolas de feltro, escutaram-se temas como “Inácio” ou “Borrado da Mosca” (uma casta de uvas do Dão, explicou o baterista – as coisas que se apendem em concertos de jazz!), peças incluídas no álbum Empa que mereceu produção da associação viseense Gira Sol Azul (a entidade que promove o festival Que Jazz é Este?) e foi editado no âmbito da iniciativa Cena Jovem PT da revista jazz.pt. E como a empa, estaca que apoia o crescimento de plantas, também esta é uma música que cresce com ímpeto orgânico, fruto de perfeito entendimento entre três músicos que nitidamente amam a liberdade.

O jovem baterista Miguel Rodrigues não escondeu a alegria por pisar um palco do festival a que se lembra de vir desde pequenino. E o mesmo foi sublinhado por João Pedro Brandão, o ponta de lança da Porta-Jazz a quem coube apresentar o último concerto da noite, a encomenda feita ao jovem saxofonista Hristo Goleminov, presença assídua nas plateias do Porta-Jazz desde criança e hoje um estudante, em Amesterdão, de avançadas matérias académicas, ele que partiu do mergulho curricular nas músicas eruditas e acabou a explorar as possibilidades que o jazz lhe oferece.

À frente de um ensemble que inclui músicos que conheceu na agitada cena de Amesterdão, como o baterista Ilia Rayskin, o contrabaixista Omer Govreen e o guitarrista Siebren Smink, além de José Soares, saxofonista, Hristo conduziu uma música que se inspira, como ele mesmo sublinhou, em obras barrocas, mas que procura a dinâmica do jazz mais clássico como moldura para as suas criações. Ainda com muito rigor académico dentro, este jovem grupo não deixa de dar azo ao nervo que a juventude impõe. E a noite termina com a certeza de que há por ali argumentos para o futuro.

Hoje o último dia do programa reserva actuações de Hugo Raro e Yudit Vidal (pelas 15h00), João Martins e Mazam (17h00) e, finalmente, João Pedro Brandão e André Silva (20h30).

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