[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] Camille Leon
Agosto e Algarve: duas coordenadas — uma temporal, outra geográfica — que são naturais sinónimos de multidões. Pode-se, muito justamente, acrescentar mais uma: o hip hop!
Durante todo o Verão dos Festivais, começando no NOS Primavera Sound e Sumol Summer Fest e prosseguindo nos cartazes de eventos como o Super Bock Super Rock, NOS Alive, Beat Fest, O Sol da Caparica ou MEO Sudoeste, sentiu-se um natural crescendo, com artistas tão diversos quanto Slow J, Wet Bed Gang, GROGNation, Piruka, Kappa Jotta, Sam The Kid e Mundo Segundo, Bispo, Holly Hood, Dillaz ou ProfJam a provarem serem tão capazes de atrair multidões quanto alguns dos maiores nomes internacionais com que competiram nalguns desses cartazes.
E chegados ao “último grande festival do Verão” — é assim que o F se posiciona na sua própria comunicação — é inegável que essa é uma realidade que se confirma e que é neste momento inquestionável: o hip hop tuga é uma vigorosa marca geracional como há muito não se adivinhava. E atrai, para lá dos “millenials”, público mais velho, curioso para perceber o que há afinal nos artistas que os seus filhos não param de escutar no Spotify ou no YouTube. E mesmo que se note por vezes alguma falta de sintonia ou entendimento — Slow J “agradeceu” ao “senhor da voz off” que apresenta os concertos nos palcos principais por se ter enganado no seu nome: “não é Slow Jota…” – a verdade é que a curiosidade ajuda a dilatar as multidões. E ontem, pela Vila Adentro, o núcleo histórico e muralhado de Faro onde decorre o festival, viu-se como artistas como Slow J, Papillon ou Domi conseguem concentrar multidões.
Logo pelo fim de tarde, quando no recinto ainda se sentiam os últimos preparativos logísticos e técnicos a serem afinados, Sacik Brow deu o pontapé de saída no palco Castelo a um dia recheado de emoções. E também assumiu a posição dianteira na representação local, uma das marcas distintivas do cartaz do F que parece perceber que há muito talento local a merecer exposição. Além do rapper de Street-Hop, também Domi ou a embaixada hip hop comandada por Gijoe no íntimo palco Arco representam as cores locais da cultura das rimas e das batidas. E até Slow J fez questão de frisar estar a jogar em casa, em ruas que bem conhece, já que a sua progenitora é de Faro… a palavra “família”, por estes dias tão escutada em concertos de hip hop, parece afinal de contas fazer todo o sentido.
E jogar em casa foi de facto o que Sacik Brow fez, perante um público ainda reduzido devido à hora “madrugadora”, mas conhecedor. O mesmo problema não tiveram Papillon ou Domi, que se apresentaram no mesmo palco pelas 22h00 e 00h00 respectivamente: casas mais cheias do que um ovo, prestações entusiasmantes e seguras, público a demonstrar ter as letras na ponta de uma língua que não podia ser por esta altura mais celebrada. De “Impasse” do homem dos GROGNation a “Não Esqueço” do muito jovem talento algarvio foram muitos os hinos entoados a uma só voz por todos os que preencheram a totalidade do espaço disponível no palco Castelo.
Grande enchente era igualmente o que esperava Slow J pelas 23 horas no Palco Sé. E começam a faltar palavras para descrever a imensidão do talento e da força deste homem. No arranque do mês, em Gavião, no Alentejo, o artista que tem vindo a aperfeiçoar a arte da desaceleração assumia que a guitarra, o riff, a amplificação e o músculo rock podem ser argumentos tão fortes do seu arsenal artístico quanto a rima, a metáfora, o flow ou a cadência matemática dos seus beats. Ontem foi, uma vez mais, claro que Slow J pretende posicionar-se acima de géneros e simplesmente fazer música que toque nas pessoas. “Isto é simples”, garantiu ele referindo-se às suas canções que ele vê como retratos inspiracionais. “Sigam os vossos sonhos. Não há impossíveis. Ainda ontem andava aqui a correr nestas ruas e agora vejam só isto, Faro”. Impressionante, de facto.
O final da noite foi passado no diminuto, mas lindíssimo Palco Arco, uma varanda sobre a Ria que oferece uma vista deslumbrante. Para o primeiro dia da sua curadoria, um dos homens fortes da Kimahera, Gijoe, trouxe Keso das margens do Douro, Praso das planícies do Alentejo e o homem que assina estas linhas, que vem de Coimbra por via de Lisboa e Ericeira.
Os dois primeiros assinaram prestações diferentes, muito personalizadas, com Keso a assumir o palco com o próprio Gijoe a secundá-lo nos beats e a encher o espaço com a sua incrivelmente teatral postura, transformando cada tema de um alinhamento que percorreu os seus três álbuns em pequenos enredos que interpretou com alma, humor e sabedoria. De clássicos como “O fumo que eu fumava” a temas mais recentes como “Bruce Grove”, “Underground” ou “Gente e Pedra”. Keso é um segredo cada vez, e felizmente, mais mal guardado.
Praso levou Subtil e Richard Beats consigo para o palco, passou por clássicos do seu percurso, pelos Álcool Club, e mostrou em palavras, rimas e flows de que se faz, afinal de contas, o seu “artesanacto”, sempre seguro nos ombros de um público conhecedor, que se chegou à frente e encheu de calor humano aquela varanda sobre a Ria.
A noite por ali terminou com uma viagem pelo hip hop tuga, sobretudo o de colheitas mais recentes, começando em Sam The Kid ou Orelha Negra e terminando com os pólos opostos (será?) de Halloween e ProfJam.
Hoje o cartaz promete mais: Mazarin e os Geeks Are de Gijoe e Rhythm no palco Arco e ainda Paus, Piruka, DJ Patife ou Ermo num cartaz diversificado e capaz de olhar para muitas coordenadas.