Se no primeiro dia do FESTA a música de intervenção serviu como fio condutor entre atuações, o segundo e último dia do festival foi uma verdadeira celebração da diversidade sonora da lusofonia, e os artistas em palco corresponderam ao entusiasmo do público. Os protagonistas desta jornada foram Crua, Juliana Linhares, Asa Cobra, Fogo Fogo, Sétima Legião e Mário Lúcio com a sua The Pan African Band (Jery Bidan e Dilson Groove).
O sol voltou a iluminar o caminho até ao Parque Urbano de Ovar muito antes da programação arrancar. A cultura de piquenique dominava o espaço: famílias numerosas montaram extensas mesas de campismo, partilhando refeições à sombra das árvores. Ouviam-se gargalhadas, brindes e até um coro de “Parabéns a Você” — e que belo dia para celebrar um aniversário.
Crua e Sétima Legião: tradição com nova pele
Foi sob o fervilhar do calor que subiu ao palco verde o “clã de cantadeiras, tocadeiras e adufeiras”, as Crua, protegidas por chapéus-de-sol coloridos que dialogavam com o pano de fundo natural. Embora grande parte do público tenha procurado abrigo à sombra, houve quem se deixasse bronzear ao som dos cantos tradicionais que, com raízes no Alentejo e na Galiza, ganharam uma nova vida. “Viajar pela música tradicional como um lugar de encontro”, afirmou uma das cantoras e adufeiras Liliana Abreu.
A viagem fez-se não apenas pelas temáticas, muitas sobre o trabalho agrícola ou histórias do campo, mas também pela riqueza tímbrica dos diferentes adufes, tocados com técnicas e ritmos variados. Um instrumento aparentemente simples, mas de uma expressividade surpreendente. Assim como Michel Giacometti e Tiago Pereira, do projeto Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, foram e têm sido pilares na preservação da música tradicional, as Crua renovam esse legado com frescura, emoção e novas interpretações. Foi impossível não nos rendermos ao encanto.
No final do concerto, convidaram quem soubesse a “cantiga da Ceifeira” a subir ao palco. Mulheres de diferentes idades dançaram e cantaram em coro espontâneo, de timbres diversos, criando um momento comovente de união entre público e natureza. O sol parecia brilhar ainda mais nesse instante. Foi difícil conter as lágrimas. Liliana Abreu tinha razão: “Aqui está menos louco do que no resto do mundo”.
A reinvenção da tradição portuguesa voltou a acontecer a meio da noite com o concerto mais esperado do festival: Sétima Legião. A banda que, como bem disse Rui Miguel Abreu, “inventou um país que não existia”, atraiu um público entre o nostálgico e o entusiasmado por finalmente os ver ao vivo. Eu incluída. Na minha infância, temas como “Por quem não esqueci” marcaram viagens longas de carro — lembro-me de olhar as estrelas, emocionada, ao som do refrão: “Procuro à noite um sinal de ti”. Percebam que tinha apenas 8 anos.
Era expectável que os clássicos estivessem no alinhamento. O que surpreendeu foi o vigor rockeiro com que foram interpretados, através de instrumentos como a gaita-de-foles, flauta transversal e acordeão. Essa fusão de géneros é o que torna a banda tão singular. Francisco Menezes dizia que, sempre que a Sétima Legião se junta, há festa, e assim foi. O palco tornou-se sala de ensaios: víamos gargalhadas, cumplicidade e, acima de tudo, respeito entre os músicos. Pedro Oliveira, vocalista, agradeceu a todos os envolvidos, canção após canção. Destaco ainda o percussionista do bombo, Paulo Abelho, cuja presença explosiva elevou a energia da plateia. Juntou-se ao grupo de amigos o guitarrista José Sousa, membro do projeto “O Castelo”, para encerrar com “Glória”, nascida do texto de Miguel Esteves Cardoso, e foi espantoso perceber que só os fãs mais devotos da linha da frente sabiam-na de cor.
Brasil e Portugal: um oceano transposto em palco
No palco Ria, a conversa entre Rui Miguel Abreu e Juliana Linhares terminou com uma provocação: “Porque é que a fronteira [Portugal-Brasil] é tão dura?” O concerto que se seguiu veio desfazê-la por completo. Juliana Linhares, oriunda do Rio Grande do Norte, precisou apenas de uma canção para conquistar o público — especialmente os mais pequenos, que se juntaram junto ao palco como mariposas atraídas pela luz.
Com formação em teatro e artes cénicas, Juliana fez do palco um espetáculo vivo: guarda-roupa vibrante, danças expressivas e interpretações teatrais transformaram o espaço numa celebração do seu disco Nordeste Ficção (2021). O público brasileiro, presente em força, emocionou-se. E quando surgiram os temas mais dançáveis, ninguém resistiu: formou-se uma roda de samba espontânea.
Mas ainda havia mais para ouvir e dançar. Asa Cobra, banda luso-brasileira formada por Carollyne Barreira (voz), Marco Castro (sintetizadores) e Igor Domingues (bateria) — dois elementos também de Throes + The Shine — fez a sua estreia em palco com groove brasileiro e as melodias eletrónicas. Apesar da estreia do grupo ao vivo, a sua presença parecia familiar. O público, ainda a recuperar da roda de samba anterior, voltou a levantar-se. A vocalista Carollyne terminou pedindo algo improvável: encontrar um pão de ló, doce tradicional de Ovar, sem glúten. Quem sabe para o ano se não o encontramos no Festival de Pão de Ló?
Cabo Verde: onde a memória é dança
O clímax deste FESTA deu-se com Fogo Fogo. A banda lisboeta, composta por Francisco Rebelo (baixo), João Gomes (teclas), Edu Mundo (bateria), Danilo Lopes e David Pessoa (vozes e guitarras), levou-nos diretamente ao universo do funaná, ritmo tradicional cabo-verdiano de pulsação contagiante. Entre pais, filhos, jovens e idosos, criou-se uma bolha de euforia. A pista de dança já não bastava. “Puxa!”, exclamava David Pessoa, convidando o público a subir ao palco. Foi ali, nesse gesto de partilha, que se percebeu o verdadeiro espírito do FESTA: comunhão, olhos nos olhos, através da música. Como disse o vocalista, “são estas memórias que não nos deixam voltar para trás”.
O mesmo se pode dizer da atuação de Mário Lúcio. A encerrar o festival, o músico cabo-verdiano, acompanhado pelos excecionais The Pan African Band, celebrou os 50 anos da independência de Cabo Verde. “Cabo Verde é a casa do mundo”, afirmou. Senti pena daqueles que decidiram abandonar o recinto assim que Sétima Legião terminou, pois em palco o cantautor cabo-verdiano estava acompanhado por uma banda que dominava os seus instrumentos com tanta fluidez e groove que era impossível desviar o olhar. Os curiosos ficaram, certamente. Mário Lúcio evocou a sua terra, e, num momento comovente, procurou no público rostos africanos. Eram poucos, mas visíveis, e durante uma hora, Mário Lúcio transportou-os até casa.
Como disse Luís Pinto, designer e paginador do livro FESTA – Sons da Lusofonia: Da Revolução ao Ritmo: 50 anos do 25 de Abril em Sons Lusófonos, durante a apresentação do mesmo: “O FESTA não aconteceu só nos palcos.” E é verdade. Nos bastidores, vi artistas de repertórios distintos trocarem ideias e conhecerem-se. Entre concertos, os rostos começavam a tornar-se familiares. Sorrisos e cumprimentos à distância. Conheci um dos mais dançarinos do festival e também um blogger que, tal como eu, ia apontando momentos dos concertos sentado na sua cadeira de praia. No último dia do FESTA, ficou claro que a música é uma linguagem universal, que transcende barreiras e une pessoas. No Parque Urbano de Ovar, a Lusofonia soou a festa, a partilha e, acima de tudo, a casa.