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Fotografia: Inês Aleixo
Publicado a: 12/07/2025

A Garota Não, Cara de Espelho e Cacique'97 dão o mote no arranque.

FESTA – Sons da Lusofonia — dia 1: quando a música se torna manifesto

Fotografia: Inês Aleixo
Publicado a: 12/07/2025

Chegámos a Ovar ainda sob chuva. O receio de que o festival fosse prejudicado pela meteorologia era palpável. Depois de longos dias de calor infernal, não estava previsto um tempo tão atípico. Enfim, alterações climáticas. Foi precisamente à hora da abertura de portas que os raios de sol subitamente perfuraram o manto cinzento, dando ao ecossistema do Parque Urbano de Ovar a cor que caracteriza o Festa – Sons da Lusofonia. De uma cidade que se aparentava fantasma, o povo saiu à rua muito perto de a programação começar. Pais, filhos, habituais frequentadores com as suas geleiras e toalhas de piquenique à tiracolo e novatos começaram por ocupar o espaço infantil. Apesar de a relva ainda estar húmida dos borrifos deixados pela manhã, isso tornou-se um problema menor, especialmente para os mais novos que ambicionavam, por iniciativa própria, escolher o melhor quadrado para montar o piquenique.

A inaugurar as festividades foi apresentado o livro FESTA – Sons da Lusofonia: Da Revolução ao Ritmo – 50 anos do 25 de abril em sons Lusófonos, que preserva conversas entre Rui Miguel Abreu e os músicos que integraram a edição passada, mas também preserva as memórias de um público que foi feliz, embebedado pelo ambiente de festa. Nesta sexta edição, a tradição mantém-se ao expandir as novas musicalidades. Ontem subiram ao palco A Garota Não, Cara de Espelho e Cacique’97, que além de trazerem ritmos e melodias característicos deste leque que é a música lusófona, levantaram bandeiras de princípios como a liberdade, a paz e o amor.



A Garota Não: palavras que libertam um público

E quem recebeu as honras de abertura foi A Garota Não, que subiu ao palco com água na boca das pipocas que estão a ser confecionadas muito perto do palco. Quebrado o gelo, a cantautora leva-nos numa viagem de meditação pelo seu novo disco Ferry Gold (2025), atravessando as suas memórias da zona pescatória e balnear de Setúbal — que hoje está a ser reduzida a praias privadas e elitizadas — mas também sobre o espaço da mulher que vemos novamente ameaçado.

Por coincidência, foram estas últimas semanas que puseram em discussão ambas as situações. Antes de tocar a implacável canção “Este País Não É Para Mães”, chamou a atenção para a tentativa de recuo em relação à lei sobre os direitos da mulher na gravidez e no parto, por iniciativa do PSD. “Esta lei não é um ataque aos profissionais. É uma lei pela dignidade da mulher e da humanidade. Mas ainda há muito por fazer neste país”, afirma. A propósito de terem sido noticiadas dez praias com acesso limitado entre Tróia e Melides, a artista não perde a oportunidade de disparar contra esta realidade com “Ferry Gold”, onde a bateria acompanha com expressividade a poesia amarga de Cátia Oliveira.

O silêncio do público ditava muita atenção e admiração. Viam-se sorrisos de admiração e, muitas vezes, corpos movendo-se quando as cantigas convidavam. Nas introduções às suas canções, resguardou-se para poder tocar mais do seu novo disco, mas tudo ficou dito nas suas canções. Como sempre. Para mim e para muitas mulheres que me rodeavam, foram temas que trouxeram colo. As palavras duras mas sinceras da artista eram necessárias para libertar em nós aquilo que nos arde por dentro. Este é o efeito d’A Garota Não.

Houve espaço ainda para conhecermos outras e nostálgicas facetas de Cátia. Uma admiradora de John Coltrane que encarna no palco o swing popular típico de Sérgio Godinho ao repescar versos de Xullaji em “No Train a Curtir Coltrane”, que também mostra o seu enorme respeito por uma das personalidades esquecidas, mas fulcrais, do cancioneiro nacional, Allen Halloween, com o tema “No Love”. Como já tem feito em outros — o mais recente no último Primavera Sound Porto —, a artista encerra com um texto de Saramago a propósito do “Guião para a reforma do Estado”, elaborado pelo Governo e apresentado por Portas. É a frase “privatizem a puta que os pariu” que se espalha pelo parque e deixa um efeito catártico no público. Não havia palmas que o público pudesse prolongar que chegassem. Para tentar completar essa gratidão, Cátia foi surpreendida não com um, mas com quatro pacotes de pipocas.



Cara de Espelho: a música que reflete todos nós

Chegou a vez de passar o testemunho à super banda Cara de Espelho — nome batizado por Rui Miguel Abreu numa das suas conversas integrantes da programação de “Dar à Língua” — que se apresentava pronta para provar dos seus superpoderes em palco. “Nós somos os Cara de Espelho e estamos aqui para vos refletir”, desafia a vocalista, Maria Antónia Mendes, ou Mitó para os amigos. A ironia agridoce das letras Pedro da Silva Martins, compositor de Deolinda, Ana Moura, António Zambujo, Lena d’Água, é a engrenagem de toda a sonoridade do grupo. As palavras que saem da boca de Maria Mendes são como balas certeiras no público. Vejo casais a olharem uns para os outros e partilharem um desconforto e de seguida uma gargalhada. “Agora chega de dançar, porque vamos falar de coisas sérias”, anuncia a certo momento, e num concerto que começou por flutuar entre géneros como o corridinho ou o fado, para falar de coisas sérias, os Cara de Espelho precisaram de passar para um rock distorcido. 

É aqui que o segundo superpoder se destacou. Carlos Guerreiro, instrumentista dos Gaiteiros de Lisboa, José Afonso, Fausto e GAC, trouxe para cima do palco o seu laboratório musical composto por instrumentos únicos, inspirados em muitos sons oriundos da nossa portugalidade e não só. É neste espaço de testes e experiências sonoras que o público aprecia com entusiasmo e adere cada vez mais às suas canções. Alguns ficaram inclusive demasiado curiosos para entender que sonoridades eram aquelas que faziam a diferença. Enfim, Cara de Espelho compôs um espaço para que pudéssemos nos expressar, como “criaturas da liberdade” que somos, tal como diz a canção do grupo, espetando o dedo no meio para os doutores coisinhas que existem por aí.

O grupo despede-se deitando abaixo uma cadeira, assim como em 1968, quando António de Oliveira Salazar cai de uma cadeira e sofre lesões cerebrais que obrigam o regime a afastá-lo do poder. Referência ou não, foi posto um fim ao concerto, apesar de a vontade do público ser totalmente oposta. Ao meu lado, encontrava-se uma miúda pequena que pedia com grande pena por mais uma canção.



Cacique’97: Vinte Anos de Afrobeat

A pista de dança foi preparada para que os Cacique 97 pudessem encerrá-la. “Sintam-se à vontade”, como se o público já não tivesse a sua roda de dança preparada. Este ano, o grupo luso-moçambicano, composto pelos irmãos Milton Gulli e Marisa Gulli, Marcos Alves, Renato Almeida, Tiago Romão, João Cabrita, Zé Lencastre, Vinícius Magalhães e Zé Raminhos, celebra 20 anos de carreira como defensores do afrobeat em Portugal. É neste contexto que o público decide entregar-se e celebrar com eles.

Mais importante do que dançar é dançar com propósito. Naquela noite, o grupo ensinou-nos uma coreografia de resistência. Já com os corpos bem soltos, os Cacique’97 fazem questão de explicar o que é o afrobeat através do tema “Come From Nigeria”. Novamente as canções bastam para o público perceber. Escutamos a mistura de géneros como o funk, o boogie e o jazz, e percebemos que o afrobeat é afinal o agregador destes géneros que foram em tempos retirados à comunidade negra. Foi nesta viagem até aos sons de África que se formou um baile ao ar livre, um ambiente familiar de amigos e família. Uns com um copo na mão, outros até mesmo a segurar com carinho o livro do festival. Levantou-se ainda a última bandeira. Cantou-se sobre a libertação do povo palestiniano. O público gritou: “Palestina Livre”, enquanto ao alto se viam kufiya, os lenços palestinianos. E assim se fez um dia.

Hoje, já com o calor de volta à cidade, o Parque Urbano de Ovar recebe agora uma programação mais recheada com as atuações de Crua, Julia Linhares, Asa Cobra, Fogo Fogo, Sétima Legião e Mário Lúcio.


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